Uma guerra fria com duelos efervescentes: O ápice do Clássico do Pacífico nos movimentados anos 1970

A rivalidade entre Chile e Peru carrega consigo uma história muito além do futebol. As animosidades entre os países se iniciaram antes mesmo que a bola começasse a rolar no continente. A Guerra do Pacífico, que envolveu ambos e também a Bolívia, permanece como um passado delicado entre as populações. Após décadas tumultuadas na região e atritos desde o processo de independência, as desavenças pela reivindicação de territórios levou ao estopim em 1879. Os chilenos venceram o conflito armado que durou até 1883, tomando o sul do território peruano e também a saída boliviana rumo ao Oceano Pacífico. Entre idas e vindas desde então, as relações entre os governos se estreitaram neste século, ainda que os limites marítimos tenham sido motivo de disputa no Tribunal Internacional de Haia em 2014. Desta maneira, enquanto seguem reduzidas no plano político, as antigas cisões acabam muitas vezes refletidas no clássico entre as duas seleções.
A primeira partida entre Chile e Peru aconteceu na década de 1930, justamente num contexto de aproximar diplomaticamente os dois países através do esporte. Naquele período, inclusive, jogadores de Colo-Colo e Universitario chegaram a formar uma equipe binacional para promover a relação entre chilenos e peruanos. Além disso, o primeiro confronto das seleções, pelo Campeonato Sul-Americano de 1935, foi regido por um discurso de reconciliação. Apenas seis anos antes havia sido assinado o Tratado de Lima, que garantiu um acordo entre os países e demarcou as fronteiras mais de quatro décadas após o fim dos conflitos da Guerra do Pacífico.
“Foi uma verdadeira festa esportiva, da qual me encontro satisfeito. Tanto os peruanos quanto meus rapazes jogaram bem, talvez tenha influenciado em algo o fator sorte. Mas, não obstante a isso, estou encantado que esta festa foi, uma vez mais, um vínculo de amizade entre peruanos e chilenos. Cumprimos a finalidade que abrigam estes torneios internacionais”, declarou na época Arturo Flores, chefe da delegação chilena, ao jornal La Prensa. Vivendo um momento mais reluzente no futebol, os peruanos venceram a partida por 1 a 0.
Até a década de 1940, o clássico se limitava às ocasiões em que as seleções se enfrentavam pelo Campeonato Sul-Americano. Já nos anos 1950, tornou-se mais frequente graças aos amistosos. Os embates eram costumeiros neste período, ocorridos praticamente todos os anos. Já o momento mais relevante da rivalidade no futebol aconteceu na década de 1970, justamente quando as relações diplomáticas voltavam a se recrudescer. Os peruanos viviam a sua década de ouro, completando três participações em Copas do Mundo durante um intervalo de 12 anos. Os chilenos, ainda assim, mantinham a importância com dois Mundiais no mesmo período. As seleções exibiam força na reformulada Copa América e os clubes também se mostravam competitivos na Copa Libertadores, com finais a ambas as nações. Enquanto isso, os ranços do passado, contextualizados na Guerra Fria, quase culminaram em outro conflito.
Apoiado pelos Estados Unidos, Augusto Pinochet deu um golpe de estado em 1973, iniciando sua ditadura no Chile. Mais ao norte, Juan Velasco Alvarado também havia deflagrado um golpe militar cinco anos antes e Há discussões sobre as reais intenções do ditador, embora realmente os peruanos se reforçassem militarmente.
Morales refutou as intenções de um conflito com os vizinhos. No entanto, ainda que tenha colaborado com os americanos na Operação Condor e desacelerado as reformas de seu antecessor, os atritos com o Chile permaneceram. Em 1976, Pinochet abordou a possibilidade de uma invasão no território vizinho, em conversa com o secretário de estado americano Henry Kissinger. Já em 1978, dois chilenos foram detidos em território peruano, acusados de realizarem espionagem militar. Até o fim de seu regime, Pinochet chegou a colocar 180 mil minas terrestres nas fronteiras do país, sobretudo nos limites com o Peru. O abrandamento das relações só aconteceu nos anos 1990, graças às democracias estabelecidas em ambas as nações.
Foi neste contexto que aconteceu também o período mais intenso de jogos decisivos entre Chile e Peru. Os primeiros se deram em 1973, pelas Eliminatórias da Copa de 1974. Naquele momento, os chilenos ainda eram governados por Salvador Allende – que, apesar da orientação à esquerda, não tinha necessariamente uma boa relação com o ditador Velasco. Após a desistência da Venezuela, os vizinhos eram os únicos oponentes no Grupo 3 das Eliminatórias. E vinham embalados pelas bases formadas por seus principais clubes: enquanto a Blanquirroja desfrutava do Universitario vice-campeão da Libertadores em 1972, o Colo-Colo também chegaria à decisão continental em 1973. Os treinadores, aliás, eram os mesmos. O uruguaio Roberto Scarone havia montado o esquadrão do Peñarol nos anos 1960, antes de aportar nos Merengues. Já Luis Álamos era o responsável pelo famoso Ballet Azul da Universidad de Chile, até causar impacto no Cacique.
A primeira partida aconteceu em Lima. Diante de quase 45 mil pessoas, o Peru fez jus ao alto investimento realizado na seleção durante aquele momento – que contava com Cláudio Coutinho na sua comissão técnica. A Blanquirroja venceu por 2 a 0, com dois gols de Hugo Sotil. Entretanto, o Chile deu o troco em Santiago. Também venceu por 2 a 0, com tentos de Julio Crisosto e Sergio Ahumada. A igualdade provocou a realização de uma partida extra, em campo neutro, para definir o classificado à repescagem do Mundial. Mas, se Carlos Caszely lideraria os chilenos, os peruanos não contariam com o craque Teófilo Cubillas, lesionado.
O novo duelo ocorreu no Estádio Centenario, em Montevidéu. Favorito apesar do desfalque, o Peru saiu em vantagem com Héctor Bailetti. Antes do intervalo, Francisco Valdés empatou à Roja, cobrando pênalti. E a virada chilena por 2 a 1 se consumou no segundo tempo, com Rogelio Farias aproveitando o erro do goleiro Manuel Uribe. Com o triunfo, o Chile ganhou o direito de encarar a União Soviética na repescagem. Entre um jogo e outro, se consolidou o golpe de Pinochet. Após o empate por 0 a 0 em Moscou, o reencontro em Santiago nunca seria realizado, com a recusa dos soviéticos em atuarem no Estádio Nacional, que servia de prisão política ao novo regime. Com isso, a Roja avançou à Copa do Mundo.
A chance de revanche surgiu em 1975, já dentro do contexto político particular entre os dois países. Na primeira edição da Copa América sem sede fixa, os rivais figuravam no Grupo B, ao lado da Bolívia. Logo na estreia pela competição, se desencadeou o embate no Estádio Nacional de Santiago. Crisosto voltou a balançar as redes contra os rivais, mas desta vez Percy Rojas sairia ao resgate dos peruanos para garantir o empate por 1 a 1. Seria uma partida marcada por um futebol burocrático e pelo público ruim, com apenas 14 mil presentes. Depois dos confrontos de ambos contra os bolivianos, o clássico aconteceria novamente na última rodada do grupo. Com dois pontos de vantagem, o Peru precisava apenas segurar o empate contra o Chile para avançar às semifinais. Os Incas foram à forra, com a vitória por 3 a 1.
A inflamada torcida no Estádio Nacional de Lima viu um show da seleção peruana durante o primeiro tempo. Percy Rojas abriu o placar aos três minutos. Depois, Juan Carlos Oblitas anotou um gol fabuloso, ajeitando a bola com estilo e emendando a acrobacia dentro da área. E o terceiro viria antes do intervalo, com Cubillas. O Chile descontaria apenas a 15 minutos do final, em cobrança de falta de Carlos Reinoso. Segundo relatos da revista Estadio, a torcida incaica ainda teria deixado o estádio um tanto quanto insatisfeita. Esperava mais gols no segundo tempo, quando o time preferiu tirar o pé e jogar com o regulamento sob os braços.
A alegria maior provocada por aquela seleção peruana, todavia, viria dentro de algumas semanas. Nas semifinais, a Blanquirroja eliminou o Brasil. Venceu no Mineirão e perdeu no Estádio Matute, mas acabou avançando graças ao cara ou coroa. Já na decisão, a conquista se consumou em cima da Colômbia – com direito a um jogo-desempate em Caracas. Sotil definiu a taça, a única daquela geração fantástica. O país completava o bicampeonato na Copa América, encerrando um jejum de 38 anos.
Não demoraria para que o clássico tivesse outro episódio ferrenho. Em 1977, mais dois jogos pelas Eliminatórias da Copa. Os peruanos queriam tirar os chilenos de uma vez por todas da garganta, em chave que também contava com a presença do Equador. Pela segunda rodada, as duas equipes empataram por 1 a 1. Sergio Ahumada abriu a contagem para o Chile em Santiago, enquanto Juan Jose Munante recobrou o prejuízo ao Peru. Já na rodada final, valendo a classificação à etapa seguinte do qualificatório, mais um clássico decisivo em Lima. A Roja estava em vantagem na tabela e dependia apenas de um empate. Outra vez sucumbiu à pressão no Estádio Nacional.
Diante da situação, o Chile se trancafiou na defesa. A zaga liderada por Don Elias Figueroa conteve a pressão peruana durante todo o primeiro tempo. Porém, cedeu na etapa complementar. Uma cabeçada fulminante de Sotil abriu o marcador aos quatro minutos e, aos dez, Oblitas já ampliava aproveitando o rebote. A vitória heroica fez com que a torcida incaica carregasse seus heróis nos braços, mesmo que a vaga na Copa ainda não estivesse confirmada. A classificação ao Mundial só foi carimbada em um triangular com Brasil e Bolívia, no qual La Verde teria que disputar a repescagem contra a Hungria.
Aquele jogo em Lima, aliás, possui o seu pano de fundo político. Após Pinochet aparecer no Estádio Nacional de Santiago durante o primeiro duelo, o ditador Morales fez o mesmo no Peru. E o general estava entre as pessoas que invadiram o campo após o apito final, comemorando efusivamente e pedindo ainda a camisa ao capitão Julio Meléndez. Em meio à festança, os torcedores aproveitaram o momento para vociferar pelo fim do toque de recolher no país. A manifestação surtiria efeito. O que os militares peruanos não desconfiavam é que, naquele exato momento, a ditadura chilena deflagrou um ato de espionagem. Aviões da aeronáutica sobrevoaram a região de Arequipa e fotografaram La Joya, uma base militar secreta dos peruanos sob a areia. “No futebol, está claro que o Peru ganhou. Mas, em termos de geopolítica, é possível que o Chile tenha vencido”, afirmou o jornalista chileno Luis Urrutia O'Neill, responsável pela descoberta.
Tanto na Copa América de 1975 quanto nas Eliminatórias da Copa de 1978, o Chile não contou com o seu principal craque. Carlos Caszely atuava na Espanha e passou cinco anos longe da seleção, a partir do Mundial de 1974. o ídolo começou a ser vetado nas listas da equipe nacional, só recobrando o espaço após voltar ao Colo-Colo, em 1978 – quando já não dava mais para negar a sua importância à Roja.
Caszely, assim, seria um personagem fundamental para que o Chile se desse melhor no último clássico significativo dos anos 1970. Como atual campeão, o Peru entrou diretamente nas semifinais da Copa América de 1979. Cruzou justamente com o Chile, que superara o seu grupo ao lado de Colômbia e Venezuela. Não parecia o melhor momento para que a rivalidade fosse revivida. Naquele ano, afinal, completava-se o centenário da Guerra do Pacífico. O clima de animosidade era óbvio, sentido principalmente pelos chilenos durante a partida de ida, em Lima. Os visitantes levaram água e comida ao país vizinho, temendo alguma arapuca.
O Peru ainda contava com um time forte, embora alguns destaques da geração estivessem fora da competição. Não foi isso que diminuiu a façanha do Chile, finalmente derrubando o fantasma do Estádio Nacional de Lima. Caszely comandou a Roja e anotou os dois gols no triunfo por 2 a 1. O atacante abriu o placar no primeiro tempo, aproveitando um rebote dentro da área. A seleção peruana pressionou bastante na segunda etapa e arrancou o empate aos 26, com Roberto Mosquera. Todavia, cinco minutos depois, Caszely se confirmou como o herói. A partir de uma cobrança de falta, acertou a cabeçada fatal, silenciando a multidão. A Blanquirroja ainda tentou descontar, mas não conseguiu superar a defesa, em grande atuação de Figueroa.
O reencontro ocorreu uma semana depois, no Estádio Nacional de Santiago. O Chile não decepcionaria os 75 mil torcedores presentes. Desta vez, Caszely seria bem marcado pela defesa peruana. Todavia, os chilenos sairiam na bronca por dois pênaltis não assinalados sobre Pato Yañez. Reclamavam da arbitragem “suspeita”, que expulsou Percy Rojas de um lado e Figueroa do outro. Ao final, o empate por 0 a 0 seria suficiente para os chilenos finalmente experimentarem sua revanche. Avançaram à decisão, na qual acabaram sucumbindo diante do Paraguai. Como prêmio de consolação, Caszely terminou eleito como o melhor jogador daquela edição da Copa América.
As partidas competitivas se tornariam menos frequentes na década seguinte. Em compensação, reflexo do clima mais brando entre os países, a Copa do Pacífico foi retomada em 1981. O torneio, uma espécie de Copa Roca entre os rivais, permaneceu adormecida a partir de 1971. Sua retomada garantiu 15 amistosos entre os vizinhos ao longo da década de 1980. No mesmo período, ambos também se enfrentariam pelas Eliminatórias da Copa de 1986, que viu a classificação chilena, embora a vaga no Mundial tenha acabado com o Paraguai.
Com o novo formato das Eliminatórias em pontos corridos, o clássico voltou a aquecer em 1997. A vitória do Chile por 4 a 0 em Santiago foi cabal para a classificação da Roja à Copa de 1998, assim como desbancou as pretensões da Blanquirroja. E os últimos episódios emblemáticos ocorreram nos últimos quatro anos. Em uma quente semifinal, os chilenos eliminaram os peruanos na Copa América de 2015 e rumaram ao seu primeiro título. Pouco depois, a revanche incaica viria com a classificação ao Mundial de 2018, mesmo diante das derrotas em ambos os clássicos. A rivalidade chegará ao seu 81° capítulo em Porto Alegre. Com um pano de fundo imenso, sobretudo pelos anos mais tensos.