O outro 11 de setembro
Aviões cruzando a cidade, terror da população pela incerteza do que estaria acontecendo. Até edifício do governo era alvo. Sim, 11 de setembro deixou de ser uma data para se tornar nome de um acontecimento histórico. Na maior parte do mundo, a descrição de eventos e a página no calendário se refere a 2001, aos atentados terroristas a Nova York e Washington que completam 10 anos neste domingo. Realmente, nenhum fato influenciou tanto o mundo neste começo de século 21 quanto o seqüestro sincronizado de quatro aviões em uma manhã de terça nos Estados Unidos. Mas 11 de setembro também teve aeronaves sobrevoando grande cidade e alvos governamentais antes disso.
[foo_related_posts]Foi em Santiago, 1973, quando Augusto Pinochet, chefe do Exército chileno, comandou um golpe para derrubar Salvador Allende. O presidente, acuado no bombardeado Palacio de la Moneda (o Palácio da Alvorada chileno), acabou se suicidando. Caía um presidente comunista eleito para um ditador de direita. Independentemente da posição política de cada um, não dá para ignorar o papel simbólico daquele momento. Ele deixou o Chile dividido ideologicamente até hoje, o que pôde ser visto nas manifestações estudantis do mês passado.
O esporte, sobretudo o futebol, sentiu as consequências. O estádio Nacional de Santiago se transformou em prisão política (e local de tortura de oposicionistas). O que foi lembrado quando o local recebeu o jogo de volta da repescagem das Eliminatórias da Copa de 1974. Justamente a União Soviética. Foi um momento patético do futebol, em um evento do qual até o Santos fez parte. Fiz, ao lado de Cassiano Gobbet, uma reportagem sobre isso na Revista Trivela de janeiro de 2007.
A aproximação de 11 de setembro é um bom momento para relembrar esse momento praticamente esquecido na história do futebol.
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O JOGO FANTASMA
Em 1973, o Santos disputou um amistoso com o Chile. Um jogo cujos registros são escassos, sobretudo pelas circunstâncias políticas pelo qual foi envolvido
por Cassiano Ricardo Gobbet e Ubiratan Leal
A cena é uma das mais patéticas da história do futebol. No estádio Nacional de Santiago, o Chile dá início à partida, mas não há adversário. Os jogadores trocam passes e, diante de um gol vazio, Valdés finaliza e comemora a vitória. A União Soviética cumprira a promessa de boicotar o jogo e dava aos sul-americanos a classificação para a Copa do Mundo de 1974 por WO. Essa parte do episódio é bastante conhecida. O que ficou quase escondido foi o segundo capítulo da história, que teve participação do Santos.
Para entender as nuances, é preciso conhecer o contexto que vivia o Chile na época. A partida ocorreu em 21 de novembro de 1973. Exatos dois meses e 10 dias antes, o ministro do exército Augusto Pinochet liderou um golpe militar que tirou do poder Salvador Allende, presidente de esquerda que governava o país desde 1970. Com isso, o país dava uma guinada política violenta, deixando o alinhamento com a União Soviética para integrar o bloco de nações latino-americanas com ditaduras militar próxima aos Estados Unidos.
Era compreensível porque um encontro entre chilenos e soviéticos na repescagem das eliminatórias para a Copa de 1974 não seria dos mais calmos. Ainda mais quando chegou à comunidade internacional a notícia que o estádio Nacional fora transformado em prisão política e palco de tortura a opositores. Foi o pretexto usado pela União Soviética a não irem a Santiago. “Por considerações morais, os esportistas soviéticos não podem jogar nesse momento no estádio de Santiago, salpicado de sangue de patriotas chilenos”, informou o governo de Moscou por meio de sua agência de notícias oficial.
Sem oponente, a classificação dos sul-americanos estaria assegurada. Uma boa oportunidade para o novo governo criar um evento pomposo e patriótico. Os presos políticos continuaram no estádio, mas em setores ainda mais escondidos. Os ingressos foram vendidos normalmente e, para o caso de não haver jogo, a federação chilena convidou o Santos como plano B.
Realmente, a União Soviética não apareceu. Os jogadores chilenos deram saída e fizeram o gol, que ficou como símbolo da situação triste de dois países que misturavam política e futebol. “Ficou-se discutindo quem faria o gol de honra. Que gol de honra? Foi uma coisa absurda”, comentou o ex-atacante Carlos Caszely, presente àquela partida, em entrevista recente à televisão chilena. Francisco “Chamaco” Valdéz, capitão do Chile, foi o autor do “gol”.
Depois da encenação, foi a vez de o Santos entrar em campo. O time estava desfalcado de Pelé e tinha como principais estrelas o goleiro argentino Cejas, o lateral Carlos Alberto Torres e o ponta-esquerda Edu.
Apesar das circunstâncias políticas que envolviam o encontro, os santistas viram o jogo como mais um amistoso no exterior que o clube fazia. “Lembro-me de pouca coisa daquele jogo. Só que foi em um dia de semana à noite e que eu fui deslocado para o meio-campo e, modéstia à parte, joguei muito”, conta Carlos Alberto. “De resto, foi um jogo normal, em que não aconteceu nada de extraordinário para nós a ponto de merecer alguma lembrança especial.”
Em campo, o Santos impôs uma goleada de 5 a 0, atrapalhando um pouco a festa arrumada pelo governo chileno. Oficialmente, o amistoso serviria para “comemorar a classificação ao Mundial’74”. O resultado foi considerado surpreendente porque, no papel, o Chile tinha uma equipe forte, com Figueroa, Caszely e Leonel Sánchez, três dos maiores jogadores de sua história. Para os chilenos, o motivo da goleada sofrida foi a falta de concentração para jogar após conseguir a vaga na Copa do Mundo de maneira estranha.
Apesar da goleada santista, a imprensa brasileira deu pouco espaço à partida. Mas não o fez por opção editorial. O Pasquim, por exemplo, havia preparado uma cobertura da partida. “A gente tinha esse jogo na pauta e até pediu para um cartunista nosso preparar um desenho, mas o cartum acabou não saindo”, conta Ivan Lessa, editor do lendário Pasquim, que brigava com a censura semana sim, semana não. Em 1973, o Brasil vivia sob o governo de Emílio Garrastazu Médici e ditadura militar estava em seu momento de maior repressão aos direitos civis.
No final das contas, as circunstâncias políticas foram tão fortes que acabaram quase escondendo a partida. O dia em que o Santos foi contratado para fazer parte da festa de um governo chileno que misturava futebol com populismo político. E, ainda assim, atrapalhou os planos de Pinochet com cinco gols.
FICHA TÉCNICA
CHILE 0 x 5 SANTOS
Amistoso
Data: 21 de novembro de 1973
Local: Estádio Nacional (Santiago)
Público: 20 mil pagantes
Árbitro: Rafael Hormazabal
Gols: Nenê (2), Eusébio (2) e Edu
Chile: Olivares; Machuca (Paez), Quintano, Figueroa e Arias; Eladio Rojas (Rodríguez), Valdés (Yavar) e Reynoso; Caszely, Ahumada e Leonel Sánchez (Crisosto, depois Veliz)
Santos: Cejas (Williams); Hermes, Marinho, Vicente e Roberto (Turcão); Carlos Alberto e Léo (Nelsi); Nenê (Cláudio Adão), Mazinho, Eusébio e Edu (Ferreira)