Copa América 2024

Ao longo de sua história, a Copa América moldou a identidade do futebol sul-americano

Não há torneio de seleções ainda em vigor mais antigo do que a Copa América. A competição sul-americana celebrou o seu centenário com uma edição extra (e um tanto quanto excessiva) em 2016. No entanto, independente dos interesses comerciais que preponderam, não há como negar o peso do torneio para construir a identidade futebolística do continente, assim como para fomentar trocas culturais. Assim aconteceu principalmente em suas primeiras edições, quando o então chamado ‘Campeonato Sul-Americano’ servia para estreitar os laços de rivais íntimos.

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Durante estas dez décadas, a Copa América atravessou diferentes momentos. Ganhou e perdeu importância, se realizou em todos os cantos, se espalhou pelos países. E continuamente seguiu explicando as relações que se construíam através do futebol. Atualmente, pelo alto nível de competição e pelos desafios nas constantes viagens, as Eliminatórias na América do Sul costumam atrair maiores interesses. Mas não dá para se negar o valor do torneio continental, especialmente revigorado por seus últimos campeões. Uruguai e Chile ajudaram a ressaltar o peso que a competição segue possuindo.

Abaixo, reconstruímos a história da Copa América a partir de sua própria identidade. A maneira como o torneio serviu para alimentar rivalidades e construir a reputação de verdadeiros esquadrões no continente.

O início de uma paixão (1916-29)

1919

Durante o início da década de 1910, os torneios amistosos eram comuns entre as seleções da América do Sul. O embrião do Campeonato Sul-Americano aconteceu em 1910, durante a comemoração do centenário da Revolução de Maio na Argentina, com a organização de um certame contando também com as presenças de Chile e Uruguai. Além disso, alguns países colocavam uma taça em jogo anualmente durante os seus confrontos – casos da Copa Newton (Argentina x Uruguai, a partir de 1906) e da Copa Roca (Argentina x Brasil, a partir de 1914). Assim, bastou a iniciativa de reunir as equipes durante algumas semanas para que o torneio continental saísse do papel.

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A primeira edição do Campeonato Sul-Americano se deu em 1916, na Argentina. Além dos anfitriões, também participaram Brasil, Chile e Uruguai – únicos países com seleções formadas até então, enquanto a falta de desenvolvimento no futebol, os custos e as questões logísticas atrapalhavam os demais. O formato era simples, em turno único no qual todos se enfrentavam. E os uruguaios aproveitaram para se provar um passo à frente dos vizinhos, ficando com a taça. A realização da competição, inclusive, impulsionou a criação da Conmebol durante aquele mesmo período, com os dirigentes reunidos em Buenos Aires.

A partir de então, a Copa América ganhou um troféu oficial para as suas edições seguintes, realizadas anualmente (até o fim da década seguinte, as exceções se deram em 1918, adiado por conta de um surto de gripe espanhola no Rio de Janeiro, e em 1928) e rodando as suas sedes. O Brasil recebeu e conquistou o torneio pela primeira vez em 1919, com partidas no Estádio de Laranjeiras. A ocasião ficou marcada principalmente pelo jogo-desempate com o Uruguai, disputado ao longo de 150 minutos – em uma época na qual prorrogações não eram determinadas pela Fifa, o árbitro optou por dois tempos extras de 30 minutos. Já em 1922, os brasileiros voltaram a sediar o certame, como parte das comemorações pelo centenário da Independência. Novamente ergueram a taça.

laranjeiras

O Paraguai se juntou ao grupo de participantes em 1921, em uma época que dificuldades internas levavam a ausências intercaladas das seleções. De qualquer forma, o Campeonato Sul-Americano significava bastante aos países, até mesmo como elemento diplomático. O torneio era uma maneira de realizar intercâmbio cultural e, claro, tentar se impor de alguma maneira sobre os vizinhos. O que acabou levando até mesmo à interferência do poder público em algumas decisões das federações. O caso mais emblemático foi protagonizado pelo Brasil e representa o pensamento extremista da República na época. Em 1921, o presidente Epitácio Pessoa se reuniu com a diretoria da CBD para que apenas jogadores de “pele mais clara” fossem convocados ao torneio disputado na Argentina, onde brasileiros foram chamados de ‘macaquitos’ por um jornal local em 1916. Felizmente a imbecilidade não se estendeu e o Brasil campeão em 1922 era estrelado pelo mulato Friedenreich.

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Não só na América do Sul, o futebol de seleções expandia fronteiras na década de 1920. Assim, o torneio de 1923 serviu como classificatório para os Jogos Olímpicos de Paris. Melhor para o Uruguai, que começou a construir a mística da Celeste Olímpica com a conquista consumada no Gran Parque Central. O mesmo aconteceu em 1927, carimbando o passaporte dos uruguaios novamente e também da Argentina. Além disso, o final da década marcou a inclusão de Peru e Bolívia aos participantes.

Em 1929, porém, a Copa América sofre sua primeira quebra. A importância da competição era inegável, mas tinha os seus desgastes. A ausência do Brasil começou a se tornar constante, diante das disputas internas que impediam a organização da Seleção. Enquanto isso, a rivalidade entre Argentina e Uruguai atingia os seus maiores níveis, especialmente após a realização da Copa do Mundo de 1930. O Mundial contou sete seleções sul-americanas, mais do que qualquer competição continental realizada até então. Tirou um pouco o embalo do torneio local, ao mesmo tempo em que acirrou os ânimos de dirigentes argentinos e uruguaios – que também lidavam com os entraves internos, às vésperas do estabelecimento do profissionalismo. Assim, o Campeonato Sul-Americano sofreu um hiato de seis anos.

Os profissionais sem Mundial (1937-49)

brasil 49

A Copa América teve uma edição especial em 1935, para determinar os classificados às Olimpíadas de 1936. Porém, Uruguai e Argentina abriram mão da vaga, após ficarem entre os primeiros no quadrangular realizado no Peru – e que não teve a presença do Brasil, em meio a mais jogos de poder na CBD. O Campeonato Sul-Americano só voltou com força mesmo em 1937. A edição daquele ano, realizada na Argentina, teve seis participantes e os confrontos entre os profissionalizados de clubes argentinos, brasileiros e uruguaios. Uma disputa digna dos anos áureos. Até que, nos anos 1940, com a suspensão da Copa do Mundo por causa da Segunda Guerra Mundial, a Copa América voltasse a ganhar o status de grande objetivo para os craques do continente.

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Uruguai, Argentina e Brasil consagraram verdadeiros timaços naquele período. Enquanto isso, o Campeonato Sul-Americano crescia, com o surgimento das seleções de Equador e Colômbia em 1937. Em 1941, depois de sofrer uma série de goleadas, o Brasil preferiu desistir da disputa. Mas, entre 1942 e 1946, o certame sempre contou com ao menos seis países e o seu trio de ferro com força máxima. Chile e Paraguai se tornaram mais fortes, deixando a competição ainda mais interessante. Com Zizinho, Pedernera, Gambetta, Livingstone e outras lendas do continente em campo, a América do Sul atravessou a ausência da Copa do Mundo.

O problema é que a própria desorganização boicotou o Campeonato Sul-Americano. Não havia uma regularidade nas datas. Já em 1946, na Argentina, o Monumental de Núñez foi palco da gota d’água. Em um clima de tensão imenso, o duelo entre os anfitriões e os brasileiros se transformou em batalha campal. Alguns policiais chegaram a agredir os jogadores de Flávio Costa e o ponta Chico caiu desacordado. Mesmo assim, o Brasil foi obrigado a voltar a campo, sob a ameaça de uma confusão ainda maior com a multidão, caso o duelo fosse cancelado. Depois disso, as federações vizinhas romperam. Os brasileiros declinaram à participação em 1947, no Equador, enquanto os argentinos não vieram ao Brasil em 1949. Naquela edição, o Uruguai também enviou um time remendado, fruto da greve que afetou os países do Prata.

Um novo declínio (1953-67)

argentina-campeon-1957

O contexto do momento, outra vez, interferiu na realização da Copa América a partir dos anos 1950. A Copa do Mundo voltou com força, redirecionando o interesse das seleções locais. Mas muito pior foi o impacto do El Dorado Colombiano, que fez uma limpa entre os craques das seleções do continente. Assim, o retorno do Campeonato Sul-Americano em 1953 teve apenas Brasil e Paraguai como candidatos reais ao título. E, nas edições seguintes, sem uma periodicidade contínua, o que se viu foi uma variação no interesse das potências pelo torneio.

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O fim da sangria realizada pelos clubes colombianos voltou a reforçar as seleções a partir de 1956. Naquele ano, em 1957 e na primeira edição de 1959, o Campeonato Sul-Americano voltou a viver o seu esplendor. Acabou marcado por equipes tarimbados de Uruguai e Argentina, que impediram a conquista do Brasil campeão mundial em 1958 – mesmo levando Pelé e Garrincha à disputa em Buenos Aires no ano seguinte ao título na Suécia.

O problema é que o Campeonato Sul-Americano voltaria a perder apelo, em um momento no qual a Copa Libertadores da América ascenderia entre os clubes do continente. O fato de duas edições diferentes terem sido realizadas em 1959 já evidencia os problemas. Em 1963, a Bolívia sediou um torneio esvaziado pelos craques do trio de ferro. Já o último suspiro na antiga fase da competição se deu em 1967. Sem o Brasil, o Uruguai realizou e conquistou o certame, antes da mais longa interrupção de sua história, se estendendo por 11 anos.

A Copa América itinerante (1975-83)

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A Conmebol ressuscitou a Copa América (enfim, oficializada com este nome) em 1975. Pela primeira vez, o torneio contaria com os 10 países filiados à confederação. Porém, ela se assemelhava mais ao modelo das Eliminatórias, com times divididos em grupos, se enfrentando em jogos de ida e volta em seus respectivos países. Aquele formato demorou a emplacar entre os países. A ponto de nem sempre Argentina e Brasil convocarem o seu elenco principal.

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Assim, aquele momento se abriu para seleções de segundo escalão se tornarem protagonistas no continente. Não sem qualidades próprias, claro. Anos que marcaram o sucesso do timaço do Peru, estrelado por Cubillas, e que se tornou participante costumeiro na Copa do Mundo. Também retomou a taça para o Paraguai, despontando sob o talento de Romerito e Roberto Cabañas. Enquanto isso, o Chile de Caszely e a Colômbia de Willington Ortíz também chegaram a ser vice-campeões.

Organizada de quatro em quatro anos, aquele formato de Copa América só durou até 1983. A debandada de jogadores à Europa, sobretudo ao futebol italiano, os impedia de integrar as seleções em várias datas espalhadas. Assim, Brasil e Argentina, por mais que contassem com times fortes, precisaram prescindir de seus craques. Melhor para o Uruguai, que vivia a eclosão de uma geração dourada e pôde erguer a taça mais uma vez. Nomes como Francescoli, Aguilera e Rodolfo Rodríguez despontavam no time que bateu o Brasil de Carlos Alberto Parreira nas finais.

O renascimento da Copa América (1987-99)

dunga maradona

Naquele momento, estava claro que o modelo de disputa precisava ser mudado urgentemente. Era inviável o torneio extenso no calendário, combinando-se com longas viagens. Nada mais natural que se readotasse a sede única. Todavia, o torneio também necessitava firmar-se como copa. Desta maneira, a Copa América voltou a viver ótimos momentos a partir de 1987. A organização da competição passaria de dois em dois anos a cada país do continente. Era o momento de reunir craques e medir forças botando em prova as rivalidades, como nos velhos tempos.

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Durante a virada dos anos 1980 para os 1990, a Copa América voltou a emplacar grandes edições. O encaixe no calendário garantia os craques no exterior, assim como as federações entenderam a representatividade que o torneio poderia recobrar. Neste intervalo, ressurgiram os grandes times das potências. O Brasil teve times inesquecíveis em 1989 e 1997. A Argentina arrancou o bicampeonato em 1991 e 1993. O Uruguai teve o gosto de se impor aos vizinhos campeões do mundo em 1987 e 1995. E isso sem contar as grandes equipes que figuraram por Colômbia, Chile, Bolívia.

Obviamente, nem sempre a Copa América neste período contou com força máxima de seus participantes. Por se colocar entre os Mundiais, muitas vezes servia para dar sequência a um processo de renovação. Mas a ausência do time principal do trio de ferro só se deu em raras exceções – como nos elencos “nacionais” do Uruguai em 1991, do Brasil em 1993 e da Argentina em 1997. No mais, craques do calibre de Maradona, Romário, Batistuta, Ronaldo e Francescoli aproveitaram o torneio para engrandecer suas trajetórias nas seleções.

Só que, de novo, parecia impossível evitar o desgaste com a Copa América. A realização de dois em dois anos contribuía um pouco para isso. O sucesso contínuo do Brasil nas Copas do Mundo aumentava a obsessão pelo torneio. Além disso, para padronizar o formato, a participação de convidados a partir de 1993 tirou o caráter local da competição. México e Estados Unidos entraram nos dois primeiros anos. Em 1997, com a ausência dos americanos, quem os substituiu foi a Costa Rica. E os interesses comerciais falaram mais alto em 1999, quando o Japão integrou a disputa.

Tentando retomar os rumos (2001-15)

Copa America Final 2004

Desde os tempos de Campeonato Sul-Americano, o torneio não teve uma organização tão desastrosa quanto a Copa América de 2001. A realização na Colômbia, a despeito do conflito armado que se vivia no país e que gerava ameaças à integridade das seleções, esvaziou o sentido da competição. A Argentina optou por renunciar sua vaga, abrindo espaço para Honduras. Brasil e Uruguai não chamaram seus protagonistas. Assim, quem se deu bem foi a Colômbia, derrotando o México na decisão e conquistando o título inédito.

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Depois disso, a Copa América demorou um pouco para recuperar seu moral. As principais seleções sul-americanas continuavam sem chamar seus principais astros. Além disso, o padrão de realização de três em três anos adotado pela Conmebol não criava uma sequência uniforme. Ainda assim, as edições de 2004 e 2007 tiveram o seu apelo, principalmente pelos clássicos nas fases decisivas. O empate por 2 a 2 entre Brasil e Argentina em Lima, com vitória da equipe de Parreira nos pênaltis, entrou para a galeria de grandes jogos do torneio.

Em 2011, o torneio voltou ao seu berço, a Argentina. E as expectativas voltaram a crescer, entre o jejum da seleção local e a renovação do Brasil. Melhor para o Uruguai, que apresentou o melhor futebol e abocanhou a taça. Por fim, em 2015, a Copa América serviu para consagrar a melhor geração da história do Chile, em meio à crise política do país. Com as seleções em força máxima nas duas últimas edições, de certa forma elas também serviram para reunir os craques no continente, diante da sangria que cresceu nos anos 1990 os levando à Europa.

Isso tudo até a celebração do centenário do torneio, com sua primeira realização fora da América do Sul. A Copa América de 2016, aliás, indicou uma nova fase. O lucro da edição nos Estados Unidos falou mais alto. A disputa perdeu um pouco de sentido, diante da proximidade com o torneio anterior, da mesma forma como parecia fora de contexto. E que 2019 servisse para recobrar o peso da Copa América, realizada no Brasil, saber que a competição voltará a ser disputada em 2020 para readequar o calendário é um anticlímax tremendo. Neste ciclo de altas e baixas, desta vez a Conmebol sai como principal culpada pela desvalorização. O futuro do certame é duvidoso e ensaia-se uma junção com os países mais ao norte. Seria a alteração mais drástica da identidade surgida em 1916.

Foto de Leandro Stein

Leandro Stein

É completamente viciado em futebol, e não só no que acontece no limite das quatro linhas. Sua paixão é justamente sobre como um mero jogo tem tanta capacidade de transformar a sociedade. Formado pela USP, também foi editor do Olheiros e redator da revista Invicto, além de colaborar com diversas revistas. Escreveu na Trivela de abril de 2010 a novembro de 2023.
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