Copa do Mundo Feminina

Dez grandes passos do futebol feminino desde a última Copa

Listamos dez pontos em que o futebol feminino evoluiu nestes últimos quatro anos, nos mais diferentes âmbitos - dos games à realidade

O futebol feminino experimenta um crescimento exponencial. A cada ciclo de Copa do Mundo, se torna mais claro como o esporte entre as mulheres ganha visibilidade, investimentos, praticantes e público. O Mundial de 2019 tinha sido importante nesse sentido, a princípio para consolidar passos largos dados nos anos anteriores. Porém, quatro anos depois, fica mais nítida a percepção de que ele catapultou novas conquistas das mulheres desde então. O ciclo até o Mundial de 2023 permitiu números mais expressivos em diferentes áreas.

O futebol feminino acumulou recordes – de gente nas arquibancadas, de financiamento de grandes empresas, de audiência na televisão. As competições se tornaram mais encorpadas, não apenas pela expansão da Copa do Mundo, mas sobretudo pela atenção direcionada para o futebol de clubes. A profissionalização, tão necessária, se tornou uma prática mais comum. E a equalização de direitos também saiu da teoria, com medidas mais concretas na equiparação de premiações e na distribuição de dinheiro em relação ao que acontece com os homens. Ainda há muito a crescer, até pela sustentabilidade comercial que o futebol feminino cada vez mais comprova. Os últimos quatro anos também foram essenciais para vislumbrar quão amplos são os horizontes.

Abaixo, listamos dez pontos em que o futebol feminino evoluiu nestes últimos quatro anos, nos mais diferentes âmbitos – dos games à realidade. Confira:

– Recordes, recordes e mais recordes de público

Recorde mundial de público do futebol feminino no Camp Nou (Eric Alonso/Getty Images)

“Jogo de futebol feminino quebra recorde histórico de público”. Muito provavelmente, você se deparou algumas vezes com tal manchete durante os últimos quatro anos. Em diversos cantos do mundo, multidões lotaram os estádios para ver mulheres jogarem. Vários e vários recordes de público acabaram pulverizados no período. O Barcelona foi o grande responsável pelas marcas inéditas. Com a imensidão do Camp Nou ao seu dispor e uma máquina de jogar bola em campo, o Barça botou mais de 90 mil nas tribunas duas vezes. Aconteceu primeiro contra o Real Madrid e depois contra o Wolfsburg, em duelos válidos pela Champions League Feminina 2021/22. São os dois maiores públicos da história em partidas oficiais – embora, em 1971, mais de 110 mil pessoas tenham visto no Estádio Azteca a final da Copa do Mundo extraoficial não reconhecida pela Fifa.

Entretanto, outros tantos recortes podem ser feitos para exaltar mais recordes. O maior público feminino na Inglaterra? Mais de 87 mil pessoas abarrotaram Wembley para ver a Lionesses serem campeãs da Euro 2022, meses antes de 83 mil assistirem à Finalíssima contra o Brasil. A febre na ilha também garantiu recordes no Campeonato Inglês e na Copa da Inglaterra. Outros países europeus atingiram marcas inéditas no âmbito de clubes, mesmo os mais tradicionais: a Alemanha viu 45 mil encherem as arquibancadas em Colônia pela liga nacional, a França contou com mais de 43 mil no Parc des Princes numa semifinal de Champions, a Itália teve 45 mil no Estádio Olímpico também para a Champions. Até os Estados Unidos bateu recordes, com o público total da NWSL passando de um milhão de pessoas pela primeira vez em 2022.

Mas se por um lado chama atenção como o futebol feminino cativou as massas em países com investimentos mais robustos, outros tantos recordes foram quebrados em nações nas quais a modalidade tenta se estabelecer de maneira mais profissional. São provas de força importantíssimas. A decisão da Copa Africana de Nações, por exemplo, reuniu 51 mil torcedores em Marrocos e quebrou o recorde da África. Na América do Sul, países como a Argentina e o Peru tiveram marcas inéditas, com festas da torcida das mais impressionantes – da Bombonera ao Estádio Matute. Mesmo o Brasil teve sua melhor marca entre clubes, com mais de 36 mil no Beira-Rio para a decisão do Brasileirão Feminino de 2022. Definitivamente, não é um fenômeno isolado.

– A Champions se valorizou e outros torneios continentais nasceram

A consolidação do futebol feminino precisa de continuidade. Não é só se empolgar na Copa do Mundo ou nas Olimpíadas, mas sim o investimento diário na modalidade. E as mulheres ganharam mais força com o impulso da Champions League, se consolidando como principal palco da elite do esporte. A expansão da competição continental foi um dos grandes marcos da modalidade nos últimos quatro anos. Até 2020/21, os principais clubes se limitavam a poucos jogos no torneio, que resumia suas fases principais a mata-matas. Nas duas últimas edições, porém, finalmente a Champions Feminina ganhou uma fase de grupos com 16 clubes.

A fase de grupos na Champions Feminina é importante para garantir um calendário mais recheado, mais partidas em alto nível para os principais clubes do mundo e um interesse maior ao redor da competição. Não à toa, os públicos se alavancaram desde então, com vários dos recordes mencionados acima. Outro acerto da Uefa foi dissociar a final feminina como se fosse um evento secundário na mesma sede da final masculina. Desde o fim da pandemia, as decisões do torneio continental levaram pelo menos 32 mil torcedores aos estádios em Turim e Eindhoven – ambas no Top 3 histórico de público em finais do certame.

E o passo mais importante está no financiamento da Champions Feminina. A partir da temporada 2021/22, a competição passou a contar com transmissões para todo mundo. O acordo com o DAZN foi revolucionário para a competição, com a visibilidade garantida pelo streaming e também pelo YouTube gratuitamente. Com mais dinheiro entrando, as premiações se alavancaram. Além disso, a Uefa passou a destinar uma fatia importante do montante para categorias de base e times que sequer se classificaram à fase de grupos, com mecanismos de solidariedade mais robustos que no futebol masculino. É uma maneira de todos caminharem juntos, além da concentração de dinheiro entre as principais equipes.

E vale salientar como outros continentes também desenvolveram seu cenário de clubes. Até 2018, existiam apenas a Champions Feminina e a Libertadores Feminina. Desde então, outras confederações iniciaram suas competições continentais para mulheres. A Champions Asiática teve sua primeira edição no segundo semestre de 2019 e coroou três campeãs. A Champions Africana acontece desde 2021 e encerrou duas temporadas. No último mês de junho, a Champions da Oceania aproveitou a onda da Copa do Mundo para inaugurar sua história com a primeira edição. Apenas a Concacaf não tem sua competição continental feminina, limitada a um torneio regional entre clubes da América Central – sem incluir Caribe e principalmente América do Norte, onde há o maior público e o maior potencial de investimento.

– A Super League inglesa explodiu e outras ligas se profissionalizaram

Emirates Stadium, em Londres (Clive Rose/Getty Images)

As competições nacionais do futebol feminino também se fortaleceram em diversos países. O melhor exemplo disso acontece com a Women’s Super League, o Campeonato Inglês Feminino. O torneio surgiu em 2011 e teve uma mudança importante em 2017, quando se tornou completamente profissional. O investimento de patrocinadores se tornou maior e os clubes mais ricos da Premier League passaram a se dedicar mais aos projetos. Como consequência, os elencos se tornaram mais competitivos e mais estrelas internacionais chegaram. O efeito positivo também se estendeu com aumento do público nas arquibancadas e da audiência na televisão.

O banco Barclays dobrou o investimento na Super League em 2021, com £30 milhões pagos no novo acordo. Pode parecer um valor pequeno se comparado com as cifras do futebol masculino, mas é um patamar inédito para o feminino. A Euro 2022 realizada na Inglaterra também auxiliou na visibilidade do campeonato doméstico, ainda mais com o título das Lionesses. Os públicos aumentaram substancialmente, com vários jogos acima dos 20 mil pagantes. O uso dos principais estádios da Inglaterra também auxiliou a atrair as massas. Já na televisão, a audiência da liga cresceu em 70%, com 8,4 milhões de espectadores ao vivo.

E a capacidade de atração da WSL se reflete na própria Copa do Mundo. Pela primeira vez, o Campeonato Inglês é o torneio que mais cede jogadoras ao Mundial Feminino: foram 106 convocadas, mais que o dobro das 49 presentes em 2019. Cinco clubes ingleses liberaram nove ou mais futebolistas à competição: Chelsea, Arsenal, Manchester City, Everton e Manchester United. Ao todo, 19 das 32 seleções têm jogadoras dos clubes ingleses em seus elencos. Há uma concentração de talento, mas também cria-se condições para o desenvolvimento da modalidade, com uma competitividade perene ao longo do ano.

Outros países parecem entender como a profissionalização é importante e tentam seguir os passos da Inglaterra. A Serie A Feminina é uma competição que já cresceu bastante nos últimos anos, com o envolvimento dos grandes clubes italianos. A profissionalização total foi adotada a partir de 2022/23. O mesmo aconteceu na Liga F, o Campeonato Espanhol. A profissionalização também se tornou completa em 2022/23. Será importante inclusive para aumentar a competitividade, num torneio dominado pelo Barcelona nos últimos anos. Na América do Sul, o Campeonato Argentino adotou o profissionalismo em 2019, enquanto o Campeonato Chileno criou um programa de desenvolvimento a partir de 2022. Já o Campeonato Colombiano, após ficar à beira da extinção, ganhou o apoio do governo em 2022 para se reestruturar.

– As mulheres ganharam mais importância entre os clubes gigantes

Um dos principais caminhos para fidelizar o público do futebol feminino é aproveitar a paixão ao redor dos clubes. Alguns bons projetos de desenvolvimento de atletas muitas vezes não dão o passo além de forma sustentável porque não conseguem atingir as massas. Enquanto isso, os times tradicionais no futebol masculino possuem um caminho bem mais aberto para ganhar relevância no feminino através de suas torcidas. O torcedor quer exaltar seu time do coração e as mulheres tantas vezes oferecem uma experiência mais próxima da vivência do jogo, num esporte pasteurizado e blindado no alto nível masculino. Basta ver como, no Brasil, muitos clubes entenderam isso melhor e passaram a confiar no futebol feminino como uma parte importante de sua estrutura, não só obrigação.

O mesmo acontece em outras partes do mundo, em especial na Europa. A explosão do futebol feminino no continente também está ligada à relação mais forte com os clubes tradicionais. Se a Champions Feminina de início era dominada por equipes específicas como o Umea e o FFC Frankfurt, na última década os finalistas entre as mulheres são quase sempre os mesmos que sonham com o troféu entre os homens. A fase de grupos está recheada com as camisas mais importantes do continente. E algumas equipes deram esse salto pela valorização do futebol feminino nos últimos quatro anos. Talvez o melhor exemplo seja o Real Madrid. Enquanto o Barcelona entendeu antes a importância de ser uma potência feminina, os merengues iniciaram seu projeto em 2020. Florentino Pérez já faz contratações de peso, como Linda Caicedo oferecendo uma aposta de fenômeno ao futuro, e bota o time com frequência na Champions.

Obviamente, há um interesse comercial nessas empreitadas. Os clubes conseguem não apenas atrair um novo público com o futebol feminino, mas ampliam o envolvimento dos torcedores costumeiros do futebol masculino. Há mais eventos, e com um investimento inicial até mais baixo. E tal mentalidade também se nota em outros continentes. Na Libertadores, essa presença dos “clubes tradicionais” se tornou mais efetiva nos últimos anos. Times como o Formas Íntimas e o Sportivo Limpeño abriram espaço para camisas como América de Cali e Nacional de Montevidéu. O mesmo se deu nas primeiras edições da Champions Africana criada em 2022. Mamelodi Sundowns e FAR Rabat foram as primeiras campeãs – um time atrelado ao atual presidente da CAF e outro historicamente apoiado pelo governo marroquino. Já nas arquibancadas, mais gente de um público cativo pode ver seus clubes sendo campeões.

– As minas também fazem parte dos games

Sam Kerr, atacante do Chelsea, é capa do FIFA 23 (divulgação)

O futebol feminino está presente nos games desde 2000, quando o Mia Hamm Soccer 64 foi uma iniciativa pioneira para o Nintendo 64. Desde o Fifa 16, as seleções femininas passaram a integrar continuamente os jogos da EA Sports. Ainda assim, a expansão do futebol feminino trouxe novidades, sobretudo no último ano. O Fifa 23 se tornou o primeiro a incluir clubes femininos, com as equipes do Campeonato Inglês e do Campeonato Francês, além da expansão com a Champions League e com a NWSL dos Estados Unidos. Sam Kerr se tornou símbolo desses novos tempos, ao virar a estrela da capa ao lado de Kylian Mbappé. A Copa do Mundo de 2023 também ganhou uma DLC, o que havia ocorrido em 2019.

Mais recentemente, outro game que anunciou a inclusão do futebol feminino foi o Football Manager. As jogadoras estarão presentes a partir do FM25, que será lançado no segundo semestre de 2024. A promessa da Sports Interactive é criar o ambiente do futebol feminino integrado ao masculino, sem ser um modo à parte ou uma versão independente. Os treinadores poderão trocar equipes de mulheres por de homens no desenvolvimento do jogo e vice-versa. Há um investimento em direitos autorais das jogadoras, na mecânica do jogo e nas análises de dados.

“Nós também sabemos que adicionar o futebol feminino ao Football Manager irá custar milhões e que o retorno a curto prazo que entrega será mínimo. Mas esse não é o ponto. Não há como esconder que atualmente existe um teto de vidro para o futebol feminino e queremos fazer o que pudermos para ajudar a quebrá-lo. Acreditamos na igualdade para todos e queremos ser parte da solução. Nós sabemos que nossa voz é muito poderosa e nós podemos usar isso para o bem. No longo prazo, conforme o futebol feminino cresça em popularidade, as recompensas financeiras podem vir, mas no momento, nós estamos embarcando nesta jornada porque sabemos que é a coisa certa a se fazer”, declarou Miles Jacobson, diretor do Football Manager.

– Mais rostos femininos no esporte masculino

Stephanie Frappart (FRANCK FIFE/AFP via Getty Images)

Não são apenas mulheres que consomem o futebol feminino, obviamente, assim como não são apenas os homens que consomem o futebol masculino. Segundo um estudo realizado em 2022 pelo instituto Kantar Ibope, 44% da base de fãs de futebol (feminino e masculino) no Brasil é composta por mulheres. Nada mais justo, então, que faces femininas passassem a ocupar os espaços na modalidade independentemente do gênero. A representatividade importa e aproxima ainda mais as mulheres do esporte em geral – podendo estimular inclusive que outras garotas sigam os passos, em campo ou não.

Uma das grandes pioneiras neste sentido é Stéphanie Frappart. A árbitra francesa quebrou diversas barreiras nos últimos quatro anos. Em agosto de 2019, ela apitou a Supercopa Europeia e se tornou a primeira mulher numa competição da Uefa. Em dezembro de 2020, virou a primeira mulher a arbitrar um jogo da Champions League masculina. Em maio de 2022, seu pioneirismo a garantiu na final da Copa da França. Já o grande momento aconteceu em dezembro de 2022, pela primeira vez no apito de uma Copa do Mundo, na movimentada partida entre Alemanha e Costa Rica.

Outro espaço amplamente ocupado pelas mulheres foi a cabine de transmissão. Cresceu exponencialmente o número de comentaristas e sobretudo de narradoras nos jogos de futebol. O Brasil é um grande exemplo, com a política de introdução expressa realizada por emissoras como a Globo e a ESPN, sem restringir essas mulheres ao futebol feminino. Mesmo em outros países, como na França e na Inglaterra, tornou-se tornou mais comum ouvir vozes femininas nas partidas. Na Copa Feminina de 2023, como deveria ser corriqueiro (e não era antes), as faces femininas serão bem mais frequentes – e naturalmente.

– A luta por prêmios iguais deu frutos em grandes seleções

Rapinoe e Morgan, dos EUA (Foto: SUSA / Icon Sport)

A luta por premiações iguais entre mulheres e homens no futebol de seleções não vem do último quadriênio. Algumas seleções tiveram essa conquista anteriormente, como a Noruega, cujo sistema funciona desde 2017 – sob ressalvas de parte das atletas, no entanto. Ainda assim, a maior conquista neste sentido se confirmou em maio de 2022. A vitória da seleção americana é significativa, não apenas pela dimensão que o US Team possui no esporte feminino, mas também pela mobilização ao redor do tema. Foi uma longa disputa, que envolveu as principais jogadoras da equipe e causou uma ampla discussão também entre o público.

A queda de braço entre as jogadoras e a federação começou em março de 2016, quando cinco atletas (Alex Morgan, Hope Solo, Carli Lloyd, Megan Rapinoe e Becky Sauerbrunn) formalizaram uma acusação de que os dirigentes infringiam a legislação ao oferecerem premiações maiores ao time masculino. As futebolistas justificavam ainda que o time feminino gera receitas maiores à federação local. Já em março de 2019, 28 atletas da seleção denunciaram a entidade nacional por discriminação de gênero, também pelas discrepâncias nas premiações em relação aos homens. A questão ganhou mais visibilidade por conta da Copa do Mundo de 2019, com gritos das arquibancadas em apoio às americanas, campeãs do torneio.

Já em maio de 2022, ocorreu um acordo entre as jogadoras da seleção e a federação, através do sindicato de atletas que representa mulheres e homens. O novo acordo coletivo garantiu os pagamentos igualitários reivindicados pelas jogadoras, inclusive com a divisão do dinheiro das Copas do Mundo. O Mundial de 2022, com premiações mais polpudas, também rendeu dinheiro às mulheres. Já o Mundial de 2023 terá seu bônus compartilhado com os homens, independentemente do sucesso da campanha. Os futebolistas do time masculino ratificaram o acordo. Também serão divididos os prêmios de torneios como a Copa Ouro, a Liga das Nações e a Copa América. Os dois elencos ainda ganharão parcelas de acordos comerciais, direitos de transmissão e vendas de ingressos – áreas nas quais as mulheres geram mais receitas. Outra promessa da federação foi oferecer condições iguais em acomodações, infraestruturas e viagens.

Mais ao norte, o Canadá também realizou uma luta importante nos últimos meses. O acordo financeiro entre a federação e as atletas expirou logo após a conquista do ouro olímpico nos Jogos de Tóquio, em 2021. A entidade realizou cortes, o que gerou uma onda de protestos das jogadoras. O time masculino apoiou a luta desde o início e, meses depois, passou a reivindicar junto seus direitos, após o término de seu próprio acordo. No último mês de fevereiro, o presidente da federação canadense renunciou. As seleções chegaram a um acordo provisório, com pagamento igualitário entre mulheres e homens, embora a entidade tenha publicado logo depois dados confidenciais sem permissão dos atletas.

– A licença maternidade finalmente foi regulamentada pela Fifa

Tamires, lateral da seleção brasileira (Daniela Porcelli/CBF)

Até 2020, o futebol feminino não tinha uma regulamentação internacional específica sobre gravidez. A Fifa tomou uma iniciativa sobre o tema a partir de então, com a criação de uma licença maternidade obrigatória para os clubes. A medida era importante para proteger o direito das atletas e impedir os riscos de serem demitidas ou de não terem o contrato renovado por causa da maternidade. Os times que descumprirem a regulamentação estão sujeitos a serem banidos no mercado de transferências e também multados, com o valor redirecionado à atleta prejudicada.

As jogadoras ganharam um direito mínimo de 14 semanas de licença maternidade, com pelo menos dois terços de salários garantidos. As treinadoras e outras funcionárias da comissão técnica ganharam a mesma proteção. O regulamento também concedeu garantias às mães quanto ao direito de amamentação. Enquanto isso, os clubes também receberam direitos adicionais além dos riscos de punição. Passaram a ser permitidas contratações fora das janelas de transferências em caso de reposição no elenco por licença maternidade. Tais determinações da Fifa não impedem regulamentações próprias das federações nacionais, caso as entidades ofereçam benefícios maiores às grávidas.

“Esta é uma mudança impactante e significativa para o nosso esporte”, afirmou a jogadora da seleção inglesa Jodie Taylor, que faz parte do conselho de jogadoras da Fifpro. “As jogadoras de futebol precisam desse tipo de regulamento para garantir que possamos continuar nossas carreiras confiantes de que as provisões adequadas estão em vigor, caso decidamos ter filhos, o que é tanto reconfortante para nós como jogadoras como um reflexo do que o futebol profissional precisa para continuar crescendo”, continuou Taylor. “Espero que este seja o começo de políticas ainda mais progressivas e inclusivas para as jogadoras”.

– As marcas esportivas passaram a olhar mais para as mulheres

Ada Hegerberg, da Noruega (Icon Sport)

As principais fornecedoras de materiais esportivos se tornam cada vez mais conscientes de que o público feminino configura uma fatia importante de consumidores do futebol. Uniformes exclusivos para mulheres não são exatamente novos, mas se tornam cada vez mais comuns. Um dos exemplos é a própria seleção brasileira. As camisas para a Copa de 2023 foram pensadas exclusivamente para a equipe. Trazem padrões parecidos com o modelo da Copa de 2022, mas com identidade própria. A camisa reserva azul, com os detalhes verdes na manga que representam a biodiversidade, é o carro chefe. A própria tecnologia do material também foi pensada para as mulheres, não apenas pelos moldes, mas também com um sistema nos shorts preparado para ciclos menstruais.

Neste sentido, a produção de artigos esportivos para a prática do futebol entre as mulheres também evoluiu. Um exemplo disso veio com o lançamento de novas chuteiras desenhadas para os pés das mulheres. A Nike lançou um modelo especial na véspera da final da Copa do Mundo de 2019. Já a australiana Ida Sports se voltou a pesquisar sobre o assunto e a produzir chuteiras especificamente para mulheres, do zero. Muitas vezes, as jogadoras precisam usar chuteiras criadas para pés de homens e inclusive de crianças. Os modelos inadequados de calçados podem forçar as articulações e deixam as mulheres inclusive mais suscetíveis às lesões, como rompimentos ligamentares.

“Comecei a pesquisar, encontrar todas as razões médicas de por que as mulheres não deveriam calçar as chuteiras masculinas ou de crianças”, afirma Laura Youngson, cofundadora da Ida Sports. “As mulheres têm pés fundamentalmente diferentes. A revolução que aconteceu nas corridas com calçados específicos por gênero não aconteceu no futebol. Há chuteiras meio que sendo feitas, mas há um termo na indústria que todo mundo diz que é ‘encolha e pinte de rosa’: pegue uma chuteira de homem, encolha e coloque um pouco de rosa”.

Já no marketing, as empresas também apresentaram projetos mais incisivos a partir de grandes estrelas do futebol feminino. Um marco nesse processo aconteceu em 2020, quando Ada Hegerberg deixou a Puma e assinou um contrato de exclusividade com a Nike. Foi um acordo apontado como “histórico”, especialmente do ponto de vista financeiro. A norueguesa assinou por dez anos com a empresa americana, com salário anual estimado em €1 milhão – 2,5 vezes mais do que seu salário no Lyon naquele momento. A Nike passou a oferecer valores mais próximos dos pagos aos homens patrocinados pela marca, numa postura condizente com seu apoio ao discurso de igualdade de gênero – como no caso da seleção americana em sua luta pela equalização dos prêmios.

– Os investimentos se alavancaram

Tazuni, a mascote da Copa

O novo acordo televisivo da Champions League e a explosão de patrocínio da Super League da Inglaterra são exemplos mais claros de como há um interesse maior por se investir no futebol feminino. Há um potencial claro e muitas empresas perceberam como o impulso financeiro neste momento é essencial à modalidade. Mais importante: isso não se limita apenas aos países mais desenvolvidos ou aos principais centros. Há um movimento paulatino que, se ainda não se equipara ao que acontece na Europa ou nos Estados Unidos, dá mais atenção às mulheres em campo ao redor do globo. Conforme a Fifa, o número de ligas com patrocinadores aumentou de 11% para 77% após 2021.

A própria Conmebol, quem diria, se tornou um exemplo. A premiação da Libertadores Feminina teve um salto expressivo a partir de 2022: os valores pagos pela participação no torneio foram 18 vezes maiores. O Corinthians, campeão em 2021, recebeu apenas US$85 mil da entidade. Já o Palmeiras recebeu US$1,5 milhão pelo troféu conquistado em 2022. Vice-campeão, o Boca Juniors embolsou US$500 mil no mesmo ano. Ainda são valores menores do que os pagos aos homens, mas reduzem o abismo e oferecem uma capacidade maior de desenvolvimento. Já no Brasil, o Campeonato Brasileiro ganhou patrocínio inédito, a partir do apoio do Guaraná Antárctica em 2020, e também alavancou valores a partir da venda dos direitos de transmissão, com o acordo fechado com a Globo a partir de 2022.

A Fifa, como responsável pelo fomento do esporte no mundo, tem um papel de liderança importante. A própria Copa do Mundo Feminina de 2023 ganhou uma injeção financeira significativa. O Mundial da Austrália e da Nova Zelândia destinará US$152 milhões aos times participantes, três vezes mais do que em 2019 e dez vezes mais do que em 2015. Pela primeira vez, uma porção desse montante foi destinada diretamente às jogadoras como remuneração à participação – a parcela das federações também é distribuída às atletas em forma de premiação, assim como serve para investir no desenvolvimento da modalidade. Outra novidade da Fifa (que era obrigação) foi igualar os padrões de sua infraestrutura para as mulheres tal qual na Copa masculina. Em outubro de 2019, o presidente Gianni Infantino havia anunciado um investimento de US$1 bilhão no futebol feminino, visando os anos seguintes – um valor que, apesar das perdas com a pandemia, foi mantido segundo a Fifa.

Foto de Leandro Stein

Leandro Stein

É completamente viciado em futebol, e não só no que acontece no limite das quatro linhas. Sua paixão é justamente sobre como um mero jogo tem tanta capacidade de transformar a sociedade. Formado pela USP, também foi editor do Olheiros e redator da revista Invicto, além de colaborar com diversas revistas. Escreveu na Trivela de abril de 2010 a novembro de 2023.
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