Copa do Mundo Feminina
Tendência

A história dos torneios internacionais que precederam a Copa do Mundo Feminina

A Copa do Mundo Feminina inicia sua história oficial em 1991, mas décadas antes surgiram os primeiros campeonatos mundiais sem a chancela da Fifa

A Copa do Mundo Feminina oficialmente existe desde 1991. Entretanto, se o espaço das mulheres no futebol precisou ser conquistado através de muita luta, a história das competições internacionais de seleções também é bem mais antiga. Foram necessárias diversas iniciativas para que a Fifa se abrisse e chancelasse um torneio mundial feminino. Duas décadas antes do pontapé inicial da Copa em 1991, mais de 110 mil pessoas lotavam o Estádio Azteca para assistir a uma decisão entre Dinamarca e México. Os projetos das mulheres no futebol internacional passaram por diferentes continentes e envolveram vários países. Todavia, somente na década de 1980 é que os cartolas passaram a ceder às pressões – ainda com ressalvas, a ponto de a Fifa criar uma “Copa Experimental” três anos antes de lançar o Mundial de verdade.

Abaixo, contamos a história dessas competições internacionais que abriram alas à Copa do Mundo. Confira:

A Copa do Mundo “extraoficial” (1970 e 1971)

A organização do futebol feminino começou a desabrochar especialmente a partir da década de 1960. Num período de maiores liberdades em amplas frentes na sociedade, as mulheres passaram a ganhar os gramados de maneira mais sistematicamente organizada e contínua – ainda que sob restrições e olhares tortos de cartolas. Algumas competições nacionais surgiam. E o futebol italiano seria importante não apenas pela vanguarda que representava no cenário doméstico, mas também por liderar a iniciativa de organizar um torneio internacional de seleções. Foi assim que surgiu a primeira versão da Copa do Mundo Feminina.

Em novembro de 1969, aconteceu um “evento teste” com a Coppa Europa per Nazioni, um protótipo da Eurocopa Feminina.  Aquela competição era organizada pela FIEFF, a Federação Internacional Europeia de Futebol Feminino, uma entidade criada na Itália pelos empresários que financiavam os times femininos do futebol italiano. A competição realizada na própria Itália reuniu apenas quatro seleções e aproveitou o embalo do fim da proibição ao futebol feminino na Inglaterra. Na decisão, as italianas fizeram as honras da casa e derrotaram a Dinamarca por 3 a 1. Diante da boa recepção ao torneio, uma versão expandida aconteceu meses depois. Reuniu mais países e mirou participantes além da Europa.

Assim, em julho de 1970, a Itália também sediou a chamada Coppa del Mondo Martini & Rossi, batizada assim por causa do patrocínio da empresa homônima de bebidas alcoólicas – que já tinha financiado a Coppa Europa per Nazioni. O patrocínio seria importante para garantir as viagens das delegações e as estadias em hotéis. Seria um torneio de tiro curto, em mata-matas a partir das quartas de final. Mesmo com apenas oito partidas realizadas, o certame se espalhou por sete cidades italianas: Bari, Bolonha, Gênova, Milão, Nápoles, Salerno e Turim. Já a lista de participantes de início incluía Argentina, Dinamarca, França, Itália, Brasil, Tchecoslováquia, Inglaterra e União Soviética. No entanto, poucas semanas antes do pontapé inicial, entraram Alemanha Ocidental, México, Áustria e Suíça, nas vagas de argentinas, francesas, brasileiras e soviéticas. As tchecoslovacas também deixaram a competição por problemas nos vistos.

Com apenas sete times, a Coppa del Mondo Martini & Rossi permitiu que a Alemanha Ocidental disputasse duas vezes as quartas de final – o que pouco adiantou, com duas derrotas. A decisão reuniu Dinamarca e Itália de novo, agora com vitória das escandinavas por 2 a 0 em Turim. O futebol feminino dinamarquês era outro com nascentes investimentos, embora ainda se restringisse ao amadorismo. Fato é que, do ponto de vista do público, a Coppa del Mondo se provou um acerto da FIEFF. Algumas partidas chegaram a superar os 30 mil nas arquibancadas, com a decisão reunindo mais de 50 mil torcedores em Turim. Estava claro como o torneio poderia se expandir.

O México foi a sensação na Coppa del Mondo de 1970, ao alcançar a terceira colocação. Ao mesmo tempo, o país tinha acabado de receber a Copa do Mundo Masculina, num dos eventos mais emblemáticos da história do esporte. Isso abriu alas para que a FIEFF organizasse a segunda edição da Coppa del Mondo nos estádios mexicanos, em agosto de 1971. De início, a própria federação mexicana se colocou contra o evento, mas o apelo comercial falou mais alto. As partidas aconteceram na Cidade do México e em Guadalajara, incluindo o uso do Azteca e do Jalisco, os dois principais palcos do Mundial da Fifa em 1970. Além disso, a Martini & Rossi continuava como principal financiadora da competição. Pagou as viagens, os hotéis e os uniformes. Existia um projeto de marketing muito mais robusto ao redor do agora rebatizado Campeonato de Fútbol Femenil.

Desta vez, a Copa do Mundo extraoficial contou com apenas seis seleções participantes. No entanto, um avanço aconteceu com a realização de eliminatórias. A Argentina viajou como representante da América ao lado do anfitrião México, depois que Chile e Costa Rica abandonaram a competição qualificatória. Enquanto isso, as representantes europeias seriam Itália, Inglaterra, Dinamarca e França. O jogo das eliminatórias entre França e Holanda, em abril de 1971, é o primeiro duelo feminino a ser oficialmente reconhecido pela Fifa – após a aprovação do futebol entre mulheres pela federação francesa. As jogadoras que participaram da partida, entretanto, sequer foram avisadas de que o vencedor disputaria uma competição internacional. A seleção holandesa entrou com um recurso pela falta de informação, sem sucesso.

“Todo aquele período foi um sonho que se tornava realidade. Um paraíso”, declarou Marie-Louise Butzig, então goleira da França, ao site da Fifa. “Ouvimos muitos comentários desagradáveis na época. Onde trabalhávamos, algumas pessoas diziam que eu deveria ficar cerzindo meias em vez de sair para jogar futebol. Mas as coisas então começaram a mudar um pouco. Eu até vi um jogo feminino atrair mais de mil pessoas na minha cidade natal, enquanto o clube masculino nunca levava mais de 150 pessoas”. O futebol feminino tinha sido admitido pela federação francesa em 1970 e, naquele primeiro período, se concentrava na região fronteiriça com a Alemanha. Cerca de 1,5 mil pessoas assistiram à vitória francesa sobre a Holanda por 4 a 0.

A fase final da Copa do Mundo de 1971 contou com o apoio de vários patrocinadores mexicanos, além da Martini & Rossi. Ocorreu um investimento na imagem do torneio, com vendas de produtos oficiais que iam de bonecas a revistas. Existia inclusive uma mascote, chamada Xochitl, que representava uma moça vestida em trajes esportivos. As traves foram pintadas com faixas rosas e os funcionários da competição vestiam também camisas rosas. Os estereótipos, inclusive, levaram a uma hipersexualização do evento. As atletas usavam shorts mais curtos e camisas mais coladas. As stewards das partidas eram mulheres e vedetes se apresentavam nos intervalos. Além disso, existiam salões de beleza nos vestiários para que as futebolistas se apresentassem maquiadas e penteadas nas entrevistas pós-jogo.

Tais estereótipos eram um projeto comercial daquela Copa de 1971. “Vamos realmente enfatizar o ângulo feminino. Vamos unir as duas paixões da maioria dos homens ao redor do mundo: futebol e mulheres”, declarou Jaime De Hargo, chefe do comitê organizador, em entrevista ao The New York Times na época. Em compensação, a competição também permitiu que as mulheres apresentassem sua capacidade em campo além das barreiras. Assim analisou a pesquisadora Jean Williams, em entrevista à BBC em 2019: “A Copa do Mundo do México, em 1971, foi um sucesso porque os organizadores não presumiram o torneio como um fracasso comercial ou esportivo. Foi vendido e promovido como um torneio de futebol, que contava com mulheres. Eles também esperavam conseguir grandes multidões nos dois estádios, que tinham sido usados no Mundial de 1970”.

A Copa do Mundo de 1971 contou com uma fase de grupos, em que as seis equipes se dividiram em dois triangulares. México e Argentina eliminaram a Inglaterra no Grupo 1, enquanto Dinamarca e Itália avançaram sobre a França no Grupo 2. A Dinamarca goleou a Argentina por 5 a 0 numa semifinal e, na outra, o México passou pela forte Itália por 2 a 1. Já na decisão, as dinamarquesas levaram mais um título com os 3 a 0 sobre as mexicanas. Os três gols foram anotados por Susy Augustesen, garota de 15 anos que depois viraria uma lenda do futebol feminino, sobretudo na Serie A italiana. E o maior sinal do sucesso daquele mundial vinha nas arquibancadas: dezenas de milhares de pessoas foram aos estádios a cada partida. A decisão contou com 110 mil presentes no Azteca.

Tal relevância da Copa do Mundo organizada pela FIEFF não passaria despercebida diante das outras entidades esportivas do futebol. Fifa e Uefa trabalharam, então, para minar o poder da entidade italiana. A Fifa prometeu “investigar o torneio”, enquanto a Uefa passou a pressionar seus países membros para que boicotassem o certame. O episódio mais drástico aconteceu na Inglaterra, onde a Football Association não tinha autorizado a participação de uma seleção e impediu até mesmo o atacante Geoff Hurst, herói na Copa de 1966, de viajar como treinador. As jogadoras que compuseram a seleção inglesa no México foram punidas e suspensas. O técnico Harry Batt terminou banido do esporte.

A ideia da FIEFF era organizar sua terceira Copa do Mundo em 1972, na Espanha. Entretanto, a perseguição foi tamanha que a federação espanhola desistiu do torneio. Enquanto isso, as “entidades oficiais” tomaram atitudes que ficaram só na promessa. A Uefa criou em 1971 um comitê de futebol feminino (composto apenas por homens), que planejava a realização da Eurocopa Feminina. O grupo foi dissolvido em 1978, sem implementar a competição. Já a Fifa chegou a discutir a criação de regras específicas às mulheres em 1972, mas o projeto também morreu em pouco tempo. Ao menos, o futebol feminino deu saltos próprios ao longo dos anos 1970, independentemente dos cartolas que acusavam a modalidade de ser “inapta” às mulheres. Tornaram-se comuns as excursões de clubes femininos por outros países naquela década. Muitos times europeus geraram impactos em nações da América do Norte e da Ásia, sobretudo.

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O Mundialito (de 1981 a 1988)

O fortalecimento do futebol feminino na década de 1970 permitiu que novas iniciativas surgissem, independentemente da chancela da Fifa. Assim nasceu o chamado Mundialito. Em 1981, para comemorar os 50 anos da Copa do Mundo, a Fifa organizou no Uruguai uma pequena competição masculina com os campeões anteriores do Mundial – a Inglaterra declinou e acabou substituída pela Holanda. Aquele Mundialito “original” inspirou outra competição de mesmo nome entre as mulheres. Seria um torneio de tiro curto que envolveria diferentes seleções femininas.

A primeira edição do Mundialito Feminino aconteceu em setembro de 1981, no Japão. A competição foi organizada em sistema de pontos corridos, mas as participantes do quadrangular se enfrentaram apenas parcialmente. Japão, Inglaterra, Itália e Dinamarca entraram em campo. As partidas foram realizadas nas cidades de Tóquio e Kobe. No fim das contas, as italianas provaram sua força no período e terminaram com o título, à frente das dinamarquesas no saldo de gols – muito por conta dos 9 a 0 da Azzurra sobre as anfitriãs japonesas.

Já a partir de 1984, o Mundialito teve mais quatro edições, todas elas realizadas na própria Itália. Mais uma vez, pesava a importância da Serie A num contexto internacional. Não apenas os times italianos eram fortes, com apoio dos grandes clubes masculinos e investidores em comum, como também atraíam as craques de outros países. Isso facilitava o chamariz. Havia uma estrutura já preparada, um público mais aberto e uma capacidade maior de promover a modalidade.

O Mundialito de 1984 contou com quatro seleções, todas europeias: Alemanha Ocidental, Inglaterra, Itália e Bélgica. As italianas conquistaram o troféu. Já em 1985, as alemãs-ocidentais acabaram substituídas pelos Estados Unidos. Foi a primeira participação das americanas num torneio internacional, mas terminaram na lanterna. Desta vez, a Inglaterra desbancou a Itália na decisão. Em 1986, seis times integraram o Mundialito, com o Brasil entre as novidades. As brasileiras foram eliminadas na primeira fase, numa chave que tinha EUA e China, enquanto Itália e Japão superaram o México na outra. A decisão teve triunfo das italianas sobre as americanas. Por fim, em 1988, de novo foram seis times: Itália A, EUA, Alemanha Ocidental, Inglaterra, França e Itália B. As inglesas foram campeãs novamente.

O detalhe do Mundialito é que também havia uma versão disputada por clubes. E as brasileiras fizeram bonito em 1986, com o título conquistado pelo Esporte Clube Radar. A equipe era presidida por Eurico Lyra, advogado e economista que oferecia uma ótima estrutura no Rio de Janeiro, assim como reunia as melhores jogadoras em atividade no país. As atletas costumavam ganhar um salário mínimo ou então empregos paralelos. Assim, o Radar dominou as primeiras competições nacionais e passou a excursionar pelo mundo com apoio do Grupo Pão de Açúcar, elevando sua fama internacional.

O Radar era justamente a base da seleção brasileira que disputou o Mundialito de Seleções em 1986, antes de entrar em campo no Mundialito de Clubes semanas depois. As cariocas conquistaram o título em decisão contra o Bayern de Munique. Cabe dizer que, antes disso, também ocorreu uma versão do Mundialito no Brasil, misturando clubes e seleções. O torneio realizado em Cabo Frio no ano de 1985 teve o Radar como vice-campeão, derrotado na decisão pelos Estados Unidos.

A Copa da Ásia e a Eurocopa (a partir de 1975)

Outro passo importante para o futebol feminino de seleções aconteceu a partir da organização das entidades continentais. Em 1968, foi criada a Confederação Asiática de Futebol para Mulheres (ALFC). A entidade contava com quatro países participantes e levou sete anos para organizar sua primeira competição internacional. Ainda assim, a Copa da Ásia de 1975 foi essencial. Mesmo que as partidas tivessem apenas 60 minutos de duração, era um torneio pioneiro ao aglutinar as principais equipes nacionais do continente e também por contar com a chancela da AFC. A presidente e a vice da ALFC eram esposas do presidente e do vice da AFC, que se concentrava nos torneios masculinos. Desta maneira, os asiáticos foram importantes para apoiar abertamente o esporte entre as mulheres em meio à resistência dentro da Fifa.

Seis seleções participaram da Copa da Ásia Feminina em 1975. Hong Kong, Malásia, Singapura e Tailândia eram membros da ALFC, enquanto Austrália e Nova Zelândia entravam como convidadas. O torneio foi realizado em Hong Kong, onde havia tradição de competições e amistosos internacionais entre os homens. A Nova Zelândia provou sua força e levou o título inédito, em final vencida contra a Tailândia. Mais de 11 mil torcedores viram a partida vencida pelas Ferns por 3 a 1. A partir de então, mais seleções asiáticas passariam a fomentar o futebol feminino.

A Copa da Ásia de 1977 não contou com a participação das convidadas da Oceania. Taiwan, Indonésia e Japão eram estreantes. E as taiwanesas se deram bem, com o título em cima da Tailândia. Em 1980, a Austrália voltou como convidada, enquanto a Índia estreou e sediou a Copa da Ásia. Taiwan levou o bicampeonato. Já em 1981, as taiwanesas seriam tricampeãs em Hong Kong. A Tailândia finalmente se deu bem com o caneco em 1983. Já a partir de 1986, a China despontou como uma força dominante no contexto regional – foram sete títulos consecutivos, até que a Coreia do Norte finalmente rompesse a hegemonia em 2001. A Copa da Ásia continua realizada em edições quadrienais, a mais recente sediada pela Índia em 2022, com mais um troféu das chinesas.

O sucesso inicial de Taiwan na Copa da Ásia ainda motivou a ilha a sediar uma das mais importantes competições internacionais dos anos 1970 e 1980. O Torneio Mundial Feminino para Convidadas misturava a seleção local com outras equipes nacionais e também com clubes. Times da Europa, dos Estados Unidos e da Oceania estiveram presentes. Foram quatro edições realizadas entre 1978 e 1987, com destaque aos dois títulos conquistados pelo Bergisch Gladbach, da Alemanha Ocidental. Seria outra competição a chamar atenção das entidades tradicionais sobre o potencial do futebol feminino.

Enquanto isso, a Uefa finalmente caminhava com as próprias pernas. A Europa já tinha registrado algumas iniciativas pontuais em competições femininas para seleções. A primeira delas aconteceu em 1957, num quadrangular em Berlim Ocidental que reuniu Alemanha Ocidental, Holanda, Áustria e Inglaterra. A competição gerou uma forte repressão das federações. Já em 1969, surgiu a igualmente efêmera Coppa Europa per Nazioni, da supracitada FIEFF. Seria outra competição desbaratada pelas confederações tradicionais. Já a maior iniciativa se deu em 1979, na Itália. A Competição Europeia de Futebol Feminino reuniu 12 seleções, com 16 partidas disputadas em apenas nove dias nas cidades italianas de Nápoles e Rimini. A Dinamarca foi campeã na decisão em cima das italianas.

Aquela competição de 1979 não teve muito sucesso financeiro. No entanto, criou um pouco mais de pressão em relação ao futebol feminino. Claramente as federações estavam mais dispostas a iniciativas do tipo. Por fim, a partir de fevereiro de 1980, a Uefa deu sinal verde para criar a Eurocopa Feminina. O pontapé inicial aconteceu em 1982, com o início das eliminatórias que culminaram na fase final da Euro 1984. Todavia, a competição ainda não teria sede fixa, com semifinais e finais disputadas em partidas de ida e volta.

Enquanto a Suécia despachou a Itália em uma das semifinais, a Inglaterra se deu melhor contra a Dinamarca na outra. A primeira decisão da Euro Feminina atraiu 5,6 mil espectadores para as arquibancadas do Estádio Ullevi, em Gotemburgo. A Suécia ganhou a ida por 1 a 0, gol da então atacante Pia Sundhage – a atual técnica da seleção brasileira. Já a volta em Kenilworth Road, casa do Luton Town, levou 2,5 mil torcedores. A Inglaterra até deu o troco com o 1 a 0 no tempo normal, mas as suecas se sagraram campeãs com o triunfo por 4 a 3 nos pênaltis. Pia Sundhage, aos 24 anos, anotou o gol que selou o título.

Apenas a segunda edição da Eurocopa Feminina teve sede fixa, em 1987. A Noruega recebeu a fase decisiva do torneio e aproveitou o mando de campo para ser campeã, com vitória sobre a Itália na semifinal e sobre a Suécia na decisão.  A partir de então, durante uma década, a Uefa organizou a Euro Feminina de maneira bienal. As sedes continuaram concentradas nos países mais fortes do futebol entre mulheres (Alemanha Ocidental, Dinamarca, Itália, Suécia), enquanto a edição de 1995 voltou a não ter sede fixa. Depois de 1997, a Euro Feminina se tornou uma competição quadrienal, intercalada a cada dois anos com a Copa do Mundo.

O Torneio Experimental da Fifa (1988)

O crescimento do futebol feminino se tornava cada vez mais evidente. O Mundialito na Itália e o Torneio Mundial Feminino em Taiwan atraíam público, ao passo que a Copa da Ásia e a Eurocopa se fixavam nos calendários de suas entidades. A Fifa se via cada vez mais cobrada para apoiar as mulheres em campo. Em 1986, durante o congresso da entidade realizado no México, na época da Copa do Mundo, a norueguesa Ellen Wille, delegada da federação de seu país, pegou o microfone e expressou uma posição firme que demandava uma atitude mais ativa dos dirigentes em prol do futebol feminino.

“Eu tive que lutar para que o futebol feminino fosse reconhecido na Noruega e queria continuar isso internacionalmente. Então, subi ao palco no Congresso da Fifa e apontei que o futebol feminino não era mencionado em nenhum documento. Também disse que já era hora de as mulheres terem sua própria Copa do Mundo e de participarem do torneio olímpico de futebol”, recontou Wille, ao site da Fifa. “Foi um grande sucesso. Eu estava muito nervosa, porque ia falar diante de 150 homens. Conversamos sobre isso antes, na Noruega, e concordamos que uma mulher deveria fazer o discurso, não um homem. Depois disso, era lógico que eu deveria viajar ao México. No meu país, me chamam de mãe do futebol norueguês. O futebol feminino deu um grande passo adiante”.

Presidente da Fifa na época, João Havelange se comprometeu com Wille que a entidade se envolveria mais com o futebol feminino. A primeira iniciativa concreta aconteceu em 1988, mas de maneira experimental. A Fifa organizou um evento-teste na China, para estudar melhor o impacto do futebol feminino. Organizou uma competição com 12 seleções convidadas, de todas as seis confederações continentais. O Torneio Experimental da Fifa ocorreu durante 13 dias em junho de 1988, em quatro cidades da província de Cantão – com destaque para a capital Guangzhou.

As 12 seleções convidadas pela Fifa se dividiram em três grupos, com quatro times cada. Passariam os dois primeiros colocados de cada e os dois melhores terceiros. O Grupo A reuniu China, Canadá, Holanda e Costa do Marfim, com a passagem das três primeiras citadas. O Grupo B teve Brasil, Noruega e Austrália avançando, além da eliminada Tailândia. Já no Grupo C, passaram Suécia e Estados Unidos, com as quedas de Tchecoslováquia e Japão. Por mais que chinesas e suecas chamassem atenção pelo alto aproveitamento, as brasileiras estiveram entre as sensações do início do torneio.

Mais uma vez, o Brasil se apoiava no trabalho realizado pelo Esporte Clube Radar. O time pentacampeão carioca e pentacampeão brasileiro servia de base à Seleção, enquanto o técnico João Varela assumia o comando da equipe nacional. O próprio Eurico Lyra, presidente do Radar, seria convidado como chefe da delegação e ajudaria a financiar a viagem para a China. Apesar do destaque na imprensa e de uma homenagem às jogadoras antes do embarque, no intervalo de um Fla-Flu no Maracanã, as condições eram limitadas. As atletas receberam apenas um jogo de uniformes, que havia sobrado dos homens. Também não tiveram a alimentação ideal, não foram acompanhadas por tradutores e sequer receberam diárias para gastos pessoais – como bem detalha este artigo dos parceiros do Ludopédio.

Acervo Museu do Futebol / Suzana Cavalheiro

A seleção brasileira passou por períodos de treinamentos num centro de educação física da Marinha e depois na Granja Comary. O elenco final reunia 18 jogadoras, oito delas do Radar. Destacavam-se nomes como Pelezinha, Michael Jackson e Fanta. No entanto, outros tantos clubes brasileiros cediam talentos. Sissi vinha do Bahia, Roseli defendia o Juventus da Mooca, Cebola pertencia ao Brasília. Ainda havia o caso da meio-campista Lúcia, única em atividade no exterior, com o italiano TKV Train. Chamava atenção ainda a juventude do grupo, sem que nenhuma atleta passasse dos 27 anos. Não à toa, aquele time que viajou à China garantiu uma experiência valiosa para o que se viveria nas Copas a partir de 1991.

O Brasil estreou com derrota para a Austrália por 1 a 0. Os problemas de fuso horário e com a culinária local impactaram no rendimento do time. A melhora se deu a partir da segunda partida, com um resultado visto como histórico para a Seleção: o time bateu a campeã europeia Noruega por 2 a 1, gols de Roseli e Michael Jackson. Já no encerramento do Grupo B, a Canarinha goleou a Tailândia por impiedosos 9 a 0, incluindo quatro tentos de Cebola. Com isso, as brasileiras terminaram na liderança do grupo graças ao saldo de gols, num empate triplo com norueguesas e australianas.

Nas quartas de final, a China goleou a Austrália por 7 a 0 e a Suécia anotou 1 a 0 no Canadá. Já a Noruega derrotou os Estados Unidos por 1 a 0 e reapareceria no caminho do Brasil, que fez 2 a 1 na Holanda. A virada contou com gols de Cebola e Sissi. Porém, a eliminação das brasileiras ocorreu na semifinal, diante das norueguesas. As escandinavas conseguiram a revanche com o triunfo por 2 a 1, em partida elogiada pela qualidade do futebol. Mesmo com desfalques, a Canarinha chegou a empatar com Sissi e só cedeu o resultado nos minutos finais. Na outra chave, a Suécia venceu a China por 2 a 1. O Brasil ainda levou o bronze ao derrotar as chinesas nos pênaltis, na decisão do terceiro lugar. E o troféu inédito ficou com a Noruega, que venceu as suecas por 1 a 0, gol de Linda Medalen. Oito norueguesas titulares na final foram vice-campeãs da Copa Feminina em 1991 e três delas levariam o título em 1995 – incluindo a capitã Heidi Store.

O teste realizado pela Fifa no Torneio Experimental foi muito bem sucedido. A média de público se aproximou dos 15 mil espectadores por jogo, enquanto a decisão passou dos 30 mil. Como reconhecimento, a Copa do Mundo de 1991 aconteceu nas mesmas quatro cidades da província de Cantão que tinham sediado a competição experimental três anos antes. A entidade internacional, entretanto, ainda não usou o nome “Copa do Mundo” naquela que é reconhecida como a primeira edição do Mundial. Oficialmente a nomenclatura foi de Campeonato Mundial da Fifa de Futebol Feminino. A confederação ainda concordou em ceder os naming rights para a marca de chocolates M&M’s.

Outras decisões questionáveis da Fifa foram tomadas naquele evento. As partidas tiveram apenas 80 minutos de duração, não 90, como se as mulheres não pudessem aguentar o ritmo do tempo completo. Também sugeriu-se que as partidas usassem uma bola de tamanho menor, o que acabou descartado. A abertura do Mundial teve 65 mil torcedores nas arquibancadas de Guangzhou, para ver os 4 a 0 aplicados pela China sobre a Noruega. Já na decisão, foram 63 mil presentes nos 2 a 1 dos Estados Unidos sobre as norueguesas. A história “oficial” estava inaugurada, para se consolidar com a Copa do Mundo de quatro em quatro anos virando tradição e sublinhando a conquista das mulheres após décadas de empenho.

*Por fim, como complemento à leitura, fica a recomendação ao último podcast do ótimo Copa Além da Copa, que fala sobre as proibições do futebol feminino em diversos países e traz informações sobre várias das competições citadas.

Foto de Leandro Stein

Leandro Stein

É completamente viciado em futebol, e não só no que acontece no limite das quatro linhas. Sua paixão é justamente sobre como um mero jogo tem tanta capacidade de transformar a sociedade. Formado pela USP, também foi editor do Olheiros e redator da revista Invicto, além de colaborar com diversas revistas. Escreveu na Trivela de abril de 2010 a novembro de 2023.
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