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Bin Salman: “Se sportswashing aumentar meu PIB em 1%, então continuarei fazendo”

Questionado sobre as acusações de que os investimentos da Arábia Saudita no esporte tiram o foco das violações de direitos humanos, Bin Salman respondeu dizendo que a economia é mais importante

O termo ‘sportswashing‘ se tornou bastante comum no vocabulário do noticiário esportivo durante os últimos anos. A capacidade de estados e figuras poderosas investirem em esporte para “lavarem suas imagens” é cada vez mais corriqueira ao redor do mundo. O grande impacto atual é provocado pela Arábia Saudita. Há uma postura mais agressiva do governo local nos últimos cinco anos, de diversificar a economia e se voltar para uma pretensa modernização da sociedade – tomando diferentes modalidades, sobretudo o futebol, como uma ponte. Ao mesmo tempo, os sauditas são acusados de tentar tirar o foco das inúmeras violações de direitos humanos no país e também da atuação na guerra do vizinho Iêmen.

Príncipe herdeiro da Arábia Saudita, Mohammad bin Salman assumiu a posição principal no governo em 2017. Desde então, realiza ações de abertura às tradições e diversificação econômica, mas também é acusado de violar direitos humanos e perseguir opositores políticos. Seu programa “Visão 2030” inclui diversas medidas de desenvolvimento para diminuir a dependência da economia local em relação ao petróleo. Entre as medidas tomadas, há tanto diretrizes econômicas quanto também questões de impactos culturais, como o investimento em turismo e entretenimento. O futebol é uma ferramenta poderosa que inclui a compra de 80% das ações do Newcastle em 2021 e a contratação de dezenas de estrelas ao Campeonato Saudita. Diante das acusações de que faz ‘sportswashing', porém, Bin Salman indicou pouco se importar com os comentários.

O que Bin Salman falou

As declarações de Bin Salman foram dadas em uma entrevista ao canal Fox News, dos Estados Unidos. Nada muito surpreendente, ainda mais falando diretamente com um público mais reacionário: “Se sportswashing for aumentar meu PIB em 1%, então eu continuarei fazendo sportswashing. Não me importo com o termo. Tenho um crescimento de 1% do PIB através do esporte e ainda pretendo aumentar mais 1,5%. Pode chamar como você quiser. Vamos conseguir esse 1,5%”.

“Quando você quer diversificar a economia, você tem que trabalhar em todos os setores: mineração, infraestrutura, manufatura, transportes, logística, tudo isso. Parte disso é turismo e, se você quer desenvolvê-lo, parte disso é cultura. Parte disso é o seu setor esportivo, porque você quer criar um calendário”, adicionou o príncipe herdeiro. “Podemos ver que o turismo costumava contribuir para o PIB em 3%, agora é representa 7%. O esporte era 0,4%, agora chegou a 1,5%, então isso é crescimento econômico, empregos, calendário, entretenimento. Estamos em primeiro no Oriente Médio, mas há dez anos não estávamos no Top 10. Nosso objetivo é ter 100 milhões de turistas em 2030, talvez 150 milhões. Ano passado atingimos quase 40 milhões”.

O chamado Fundo de Investimento Público (PIF), o fundo soberano do governo saudita, possui ativos estimados em US$620 bilhões. Assim, o investimento recente no futebol, mesmo com valores sem precedentes nestes moldes de negócio, representa apenas uma pequena cifra de toda a capacidade dos sauditas. A intenção é que esse investimento se reverta em visibilidade para o país e outras maneiras de recuperar o dinheiro – inclusive com vendas futuras das equipes a companhias privadas. Bin Salman é o presidente do conselho do PIF, enquanto o presidente do Newcastle é outro dos responsáveis pelo fundo.

Mohammed Bin Salman, dono do Newcastle
Mohammed Bin Salman fez do Newcastle o time mais rico do mundo (Foto: Kay Nietfeld/dpa – by Icon sport

Os laços sauditas com o esporte

A Arábia Saudita se envolveu em diferentes eventos esportivos nos últimos anos. Grandes competições de artes marciais, automobilismo, tênis e golfe passaram a acontecer no país. Entretanto, o crescimento paulatino da ligação com o futebol é o que mais chama atenção. A partir da chegada de Bin Salman ao poder, tornaram-se mais comum os amistosos internacionais de seleções de peso e mesmo algumas competições menores envolvendo clubes, como a Supercopa da Espanha. O Newcastle serviu como um passo além, ao colocar os sauditas na vitrine da liga nacional mais importante do mundo, a Premier League. Mas há um movimento mais incisivo no futebol local.

O Campeonato Saudita já realizava uma abertura maior aos jogadores estrangeiros desde 2018. O país aumentou o número de contratações e tentou ampliar sua representatividade regional. Tal movimento até atraiu alguns atletas renomados e deu impulso a times como o Al-Hilal na Champions Asiática. Porém, nada comparado ao ocorrido nos últimos meses. A Copa do Mundo realizada no vizinho Catar pareceu acelerar a postura da Arábia Saudita em apostar no futebol. A contratação de Cristiano Ronaldo trouxe muitos holofotes na virada do ano. Já nos últimos meses, com o investimento do fundo soberano do governo em quatro grandes clubes do país, a chegada de estrelas se tornou notável.

Os clubes do Campeonato Saudita investiram €956,8 milhões em contratações de jogadores, um valor abaixo apenas do injetado pela Premier League na última janela de transferências. Deste montante, €835,1 milhões se concentraram nos quatro grandes clubes do país – Al-Ahli, Al-Hilal, Al-Ittihad e Al-Nassr. E isso porque tais cifras exorbitantes não traduzem totalmente o cenário, já que muitas das estrelas foram atraídas não pelo valor das transferências, mas pelos salários suntuosos. É o caso de Karim Benzema, por exemplo, que saiu sem custos do Real Madrid para ganhar um salário na casa de €200 milhões anuais.

Já a ascensão do Newcastle também é relevante, embora tenha se tornado um investimento até mais sutil da Arábia Saudita em relação ao que acontece em sua liga local – e numa relação óbvia que o fundo soberano até tentou dissimular, obviamente sem sucesso. O nível de contratação dos Magpies é alto dentro da Premier League, mas ainda não se equipara ao dos clubes mais ricos. A subida de produção sob as ordens de Eddie Howe se pautou bem mais na recuperação de jogadores e na adição de algumas apostas bem feitas. Entretanto, a aparição dos alvinegros na Champions League não deixa de mostrar como os sauditas também podem disputar os holofotes com Emirados Árabes Unidos e Catar, em relação aos bem mais consolidados Manchester City e Paris Saint-Germain – que, de fato, impulsionaram a imagem de ambos os países.

Já o xeque-mate da Arábia Saudita em relação do sportswashing poderia vir com a realização de sua própria Copa do Mundo. Existia um interesse em receber o Mundial já em 2030, mas parece mais factível que o torneio no país aconteça em 2034 – apenas 12 anos depois de uma Copa no vizinho Catar. Para se fortalecer nos bastidores, os sauditas abriram suas portas para a realização do Mundial de Clubes e também fazem um investimento mais maciço no futebol africano, a fim de angariar apoiadores entre os votantes da Fifa. A Copa da Ásia ainda vai acontecer por lá em 2027, o que poderia pintar como um evento teste antes do Mundial.

As acusações contra a Arábia Saudita

A Arábia Saudita possui uma longa lista de acusações sobre a violação de direitos humanos. O episódio mais emblemático é o assassinato de Jamal Khashoggi, jornalista que era crítico do governo e foi morto na embaixada do país em Istambul, em outubro de 2018. Os abusos também são amplos no vizinho Iêmen, com bombardeios indiscriminados em meio ao conflito que se desdobra no país. Há ainda uma série de questões importantes, como a criminalização da homossexualidade e a restrição da liberdade de expressão. As violações de direitos das mulheres também são motivos de críticas, mesmo com pontuais permissões recentes, como o direito a tirar habilitação para dirigir automóveis ou mesmo de frequentar arquibancadas.

“A aquisição de negócios esportivos de alto nível, como o Newcastle ou o PGA Tour de golfe, tem muito a ver com o sportswashing da Arábia Saudita diante dos dados terríveis de violações de direitos humanos, bem como com o aumento do PIB nacional”, comentou Felix Jakens, da Anistia Internacional, em nota emitida nesta quinta-feira, diante dos comentários de Bin Salman.

“As enormes quantias de dinheiro saudita que atualmente são canalizadas através do futebol e outros esportes criam a maior parte das manchetes. Mas, por trás dessas transações, as autoridades sauditas reprimem os direitos humanos. O governo de Bin Salman tem sido um período sombrio para os direitos humanos na Arábia Saudita. Qualquer conversa sobre economia ou esporte deve se distrair deste fato”, complementou.

Foto de Leandro Stein

Leandro Stein

É completamente viciado em futebol, e não só no que acontece no limite das quatro linhas. Sua paixão é justamente sobre como um mero jogo tem tanta capacidade de transformar a sociedade. Formado pela USP, também foi editor do Olheiros e redator da revista Invicto, além de colaborar com diversas revistas. Escreveu na Trivela de abril de 2010 a novembro de 2023.
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