Ásia/Oceania

O projeto da Arábia Saudita ainda levanta mais dúvidas que certezas

A projeção do quão grande será o impacto do investimento da Arábia Saudita ao futebol depende de muitas variáveis - inclusive da sua capacidade de superar contradições importantes

A Arábia Saudita jogou o mundo do futebol em um frenesi. Quando contratou Cristiano Ronaldo, parecia um movimento específico: uma estrela em decadência que não tinha mais mercado na Europa, satisfeita em apenas engordar a conta bancária. De repente, veio outro veterano. E outro. E mais um. E jogadores que não são veteranos. E até quem deveria estar no auge da sua forma ou perto dele, como Neymar. Um trator, com fundos infinitos, atirando para todos os lados, impermeável a qualquer tipo de regulação. Todo mundo está quebrando a cabeça para tentar entender o que esse fenômeno significa e até onde ele pode chegar.

Algumas projeções colocam a Arábia Saudita no patamar das cinco grandes ligas europeias em um futuro próximo. Outras, mais otimistas, já nesta temporada. Cristiano Ronaldo mesmo disse que não demoraria para que cheguem lá. Ele não é o único que tem motivos pessoais para torcer pelo sucesso do projeto. Outros talvez apenas acreditem que a combinação entre uma quantidade sem precedentes de dinheiro e uma determinação incomum em gastá-lo será suficiente para comprar um atalho. Outros apenas se empolgam com novidades ou gostam de ver estruturas estabelecidas de poder sendo balançadas ou curtem uma reunião estranha de estrelas onde quer que seja.

Alguns apenas odeiam a Europa que, neste momento, está na mesma posição em que colocou o resto do mundo por tanto tempo – com medo de uma força financeira superior atraindo seus principais talentos. É irônico de fato e até um pouco divertido. Fica menos engraçado quando você lembra que tudo isso está sendo feito em benefício de um projeto de propaganda de um governo autoritário que oprime mulheres, homossexuais e dissidentes, prende defensores dos direitos humanos e tem envolvimento direto no esquartejamento de um jornalista.

Não que a Europa nunca tenha cometido atrocidades, mas, enfim, é assunto para outro texto.

O deste é refletir sobre o que aconteceu, sobre o que ainda pode acontecer, e o problema para ser tão categórico quanto as redes sociais exigem é que ainda há mais dúvidas do que certezas.

O que quer a Arábia Saudita?

Para começar: o que quer a Arábia Saudita? Não é tanto um projeto de soft power quanto o do Catar (PSG e Copa 2022) e dos Emirados Árabes (Manchester City) porque ela tem power de verdade – pergunta para o Iêmen. É a potência da região. Não precisa usar o esporte para limpar a própria imagem e ganhar influência no tabuleiro da geopolítica porque o tem feito com um sucesso até um pouco obsceno por meio do petróleo há muitos anos. Há lógicas mais específicas que estão bem explicadas neste ótimo texto do especialista em Oriente Médio, José Antonio Lima.

O príncipe Mohammed Bin Salman, atual governante em exercício do reino, colocou em prática uma operação estratégica chamada Visão 2030, cujo objetivo é reduzir a dependência da sua economia no petróleo, diversificando investimentos em várias áreas, incluindo entretenimento e turismo. Faz tempo que a Arábia Saudita corre atrás de eventos esportivos: levou a seleção brasileira para lá, corrida de Fórmula 1, lutas de MMA e supercopas de campeonatos importantes. Até fundou uma liga de golfe e agora decidiu comprar uma de futebol.

A principal fonte de preocupação e incerteza é que, se esse investimento é uma escalada drástica da parte esportiva da Visão 2030, ninguém perderá o sono se a nova liga saudita não for rentável. Nem o PIF, Fundo de Investimentos da Arábia Saudita, que está oficialmente financiando a brincadeira. Sabe aquela coisa de analisar balanço, receitas versus despesas, bilheteria, direitos de TV, etc, etc? Tudo bobagem: o importante é que ela impulsione a estratégia de modernizar o reino ou pelo menos a percepção dele, crie empregos, movimente a economia. Os ganhos serão mais abstratos, prejuízos serão faturados no orçamento e a torneira será fechada apenas quando não for mais politicamente relevante que fique aberta.

O que nos leva a uma segunda dúvida: quando isso acontecerá? O nome do projeto – Visão 2030 – pode ser uma pista, mas não uma garantia. O complicador é que a Arábia Saudita viu o vizinho mais pobre se divertindo com um novo brinquedo e se acha no direito de comprar um igual, mas é improvável que a Fifa conceda uma segunda Copa do Mundo para a região em apenas oito anos. O custo político seria enorme e a justificativa oficial dos cartolas para não admitir que o Catar venceu a eleição porque comprou votos, de que era a hora do Oriente Médio receber um Mundial, tinha o benefício de ser verdadeira – e a ironia é que teria gerado menos ruído se ele tivesse sido concedido à Arábia Saudita, um país que realmente tem tradição em futebol.

Quatro anos depois ainda parece cedo, mas as chances aumentam. Acontece que nem existem provas ou indícios de que esse investimento está diretamente ligado à tentativa de sediar a Copa do Mundo, embora seja uma hipótese plausível. Mas, por exemplo, e se a Europa ficar irritada com um êxodo tão grande de talentos para uma liga que não tenta nem disfarçar que segue as regras do jogo? Lá se vão até 55 votos pela janela. De qualquer maneira, pode ser que acabe em 2030 ou em 2034 ou nunca ou ano que vem porque o príncipe simplesmente decidiu que não vale mais a pena.

Quanto tempo demorará para a liga saudita ser realmente competitiva?

A duração é relevante porque mesmo todo o dinheiro do mundo não constrói uma liga realmente competitiva em dois meses. Uma hora o mercado europeu se esgotará. A sua janela fecha em uma semana. A saudita seguirá aberta por mais algumas, mas, sem a possibilidade de contratar reposições, os jogadores podem espernear o quanto quiserem que será muito mais difícil convencer seus empregadores – que podem não ser a maior exportadora de petróleo do mundo, mas também não passam fome – a vendê-los. Ela pode voltar à tona em janeiro, depois no próximo verão europeu, e por aí em diante, porque seria irreal imaginar que ficará satisfeita tão cedo.

Um outro porém é que uma hora ela pode bater com a cabeça no teto. Todo ano haverá um novo grupo de jogadores famosos que perderam espaço em seus clubes e têm salários proibitivos para o mercado europeu. E outro com jovens que simplesmente não se importam com nada além de dinheiro. Mas a maioria ainda tem ambições esportivas, e, por mais acelerado que seja o processo, quanto tempo até a liga saudita ser mais difícil, importante ou desejada do que a Champions League? Ou a Premier League? Quando o título saudita passará por vencer Pep Guardiola e Jürgen Klopp? Por defender Erling Haaland ou Kylian Mbappé? Talvez nunca chegue lá.

Porque achar que o dinheiro saudita comprará uma liga competitiva rapidamente pressupõe que ela vencerá todas as batalhas, superará todas as contradições e será extremamente competente o tempo inteiro. Por exemplo: daqui a um ano haverá dezenas de jogadores compartilhando com os colegas a experiência de viver em um país com costumes diferentes. Pode ser que alguns não curtam. Precisaremos de um tempo ainda para entender como será a readaptação à Europa após uma, duas ou três temporadas na Arábia Saudita. Dependendo da competitividade e da intensidade, pode pesar na parte física, como acontecia antes, ou mais recentemente na China. Os clubes farão jogo duro para negociá-los de volta? Que nível de salário eles podem esperar quando retornarem? Exemplos ruins podem desmotivar jogadores a aceitarem uma passagem rápida apenas para encher os buchos de dinheiro.

Desistir, como tem rodado por aí, pode ser um termo forte, mas é fato que, por mais que seja importante analisar caso a caso, muitos deram as costas para os principais campeonatos do mundo com a esperança de que talvez um novo seja formado e, se não for, agradecem o álibi da promessa para ganhar muito, muito dinheiro. É como se tivessem trocado empregos difíceis e bem estabelecidos por uma startup que não exige tanto e paga melhor. Se ela virar a nova Amazon, ótimo, sucesso. Senão, tanto faz. Ninguém precisará mais trabalhar mesmo. E nem é certeza que a competitividade da liga será realmente importante, se eles conseguirem controlar a narrativa.

Porque a liga saudita será um prato cheio para uma tendência de cobertura de futebol que favorece cliques e likes, engajamento e buzz e adora números e fatos sem contexto. Neymar provavelmente será responsável por lances plásticos que encaixam perfeitamente em vídeos de 30 segundos que vão viralizar porque ninguém se importa que foi contra zagueiros de quarta linha. Você pode colocar o título da Copa Árabe de Clubes ao lado dos outros de Cristiano Ronaldo e dizer que ele é um campeão insaciável, hiper competitivo e super vencedor (geralmente há muitos adjetivos) e ninguém se pergunta se foi fácil ou difícil antes de retuitar – e o mesmo vale para Lionel Messi na Major League Soccer, aliás. Benzema fez 40 gols, Rúben Neves deu 25 assistências e estará tudo lá no Transfermarkt. Se nem no futebol europeu ou sul-americano a galera faz questão de ver o jogo completo para comentar, imagina na Arábia Saudita?

Onde estamos?

Talvez seja bom delimitar onde estamos. Porque essa mesma tendência de cobertura, de muito barulho, muita especulação e muito Fabrizio Romano, leva à percepção de que a avalanche foi maior do que realmente é. Por enquanto, o cenário é o seguinte:

  • O Al-Ahli contratou oito jogadores de elite do futebol europeu: Riyad Mahrez, Roger Ibañez, Allan Saint-Maximin, Merih Demiral, Édouard Mendy, Franck Kessié, Roberto Firmino e Gabri Veiga.
  • O Al-Hilal, por enquanto, ficou com sete: Neymar, Malcom, Rúben Neves, Aleksandr Mitrovic, Sergej Milinkovic-Savic, Kalidou Koulibaly e Bono.
  • O Al-Nassr, também: Cristiano Ronaldo, Otávio, Sadio Mané, Aymeric Laporte, Seko Fofana, Marcelo Brozovic e Alex Telles.
  • O Al-Ittihad está devagar por enquanto. Apenas quatro: Karim Benzema, Fabinho, Jota e N’Golo Kanté.
  • E o Al Ettifaq contratou Jordan Henderson.

A primeira ponderação válida é que nem todo mundo aparece com frequência na lista dos 30 finalistas da Bola de Ouro. Craques de primeira linha mesmo são Neymar, Mané, Benzema e Cristiano Ronaldo. Há jogadores excelentes, como Mahrez, Firmino, Rúben Neves, Milinkovic-Savic, Fabinho e Kanté, mas também um ponta que estava encostado no Newcastle, um zagueiro da Roma, outro da Atalanta, um reserva do Barcelona, um cara importante do Celtic e um centroavante do meio da tabela da Premier League.

E não me entendam errado. Claro que é um movimento relevante e que chama a atenção, mas 25 jogadores (ou que chegue a 35 até o fim de setembro, ou perto de 50, contando talentos menores ou grandes que já estavam lá, como Al-Dawsari) em um universo de 450 a 500 talvez não coloque o Sauditão nem no patamar da Ligue 1 que seja, até porque estarão concentrados nos quatro clubes que foram estatizados.

Esse é um outro ponto importante porque, se o investimento parte de um poder central, como o PIF, que decide para onde ele vai, a lisura da competição terá que ser garantida. O Al-Hilal gastou cinco vezes mais em taxas de transferência do que o Al-Ittihad, que, tudo bem, levou Karim Benzema e N'Golo Kanté sem custos diretos e ainda deve fazer mais algumas coisas. Mas não pode haver discrepâncias enormes entre os quatro grandes – e seria ideal que não houvesse entre todos também.

Pode ser que tenha sido apenas uma prioridade e, preenchidas as vagas de estrangeiros (ainda tem essa limitação: são oito cada um) dos quatro clubes assumidos pelo PIF, os outros recebam mais atenção. Pode ser que, uma vez esgotado o mercado europeu, eles voltem as atenções para o sul-americano.

O excesso de pontos de interrogação e condicionais e “pode ser isso ou pode ser aquilo” não costuma ser uma boa prática de jornalismo, mas fui obrigado a utilizá-los porque estamos tentando avaliar as consequências de um fenômeno potencialmente histórico, potencialmente sísmico, ou potencialmente efêmero, não apenas enquanto ele está acontecendo, mas bem na sua nascente. E esse costuma ser um terreno fértil para equívocos e exageros.

Foto de Bruno Bonsanti

Bruno Bonsanti

Como todo aluno da Cásper Líbero que se preze, passou por Rádio Gazeta, Gazeta Esportiva e Portal Terra antes de aterrissar no site que sempre gostou de ler (acredite, ele está falando da Trivela). Acredita que o futebol tem uma capacidade única de causar alegria e tristeza nas mesmas proporções, o que sempre sentiu na pele com os times para os quais torce.
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