Vocês não vão acreditar, mas no fim foi mesmo a Arábia Saudita quem comprou o Newcastle
Para fugir do teste da Premier League, o Fundo Público de Investimento disse que não tem ligação direta com o governo da Arábia Saudita; para fugir de um processo nos EUA, disse que tem

Quando comprou o Newcastle, a Arábia Saudita disse que não estava comprando o Newcastle, e a Premier League acreditou que a Arábia Saudita não estava comprando o Newcastle, o que a deixa em uma posição bastante constrangedora neste momento porque a Arábia Saudita admitiu em um processo legal que, olha só, chocante, comprou, sim, o Newcastle.
A história começa no primeiro acordo que Mike Ashley, um dos piores donos da história do futebol inglês, fechou com o consórcio liderado pelo Fundo Público de Investimento (PIF, na sigla em inglês) da Arábia Saudita, em abril de 2020. A notícia foi recebida com festa pelos torcedores do Newcastle, não apenas pelos altos investimentos que seriam prometidos, mas porque eles odeiam Mike Ashley com toda a força dos seus corações – e também gerou alguns dilemas morais.
Mas a venda não andava e, em certo momento, o consórcio desistiu. Existiam dois empecilhos. Um deles era uma disputa por direitos de televisão entre a beIN Sports, do Catar, uma das maiores parceiras da Premier League, e uma rede de pirataria que tinha apoio da Arábia Saudita. A segunda era o famoso teste da liga inglesa para aprovar donos e diretores porque representantes do governo saudita teriam que passar por ele, talvez até membros de alto escalão, e algumas perguntas chatas surgiriam, como, por exemplo: você mandou matar o jornalista Jamal Khashoggi?
A negociação acabou sendo concluída apenas em outubro de 2021. A Arábia Saudita melhorou as relações com o Catar e prometeu fechar a rede pirata. E o Fundo entregou “garantias legalmente vinculantes” de que o “Reino da Arábia Saudita não controlará o Newcastle United Football Club”. A frase anterior está em linguagem formal e com termos entre aspas porque foi retirada de um comunicado oficial da Premier League anunciando a transferência de posse.
Uma audiência para determinar a conexão entre Fundo Público de Investimento e a Arábia Saudita havia sido marcada para janeiro de 2022, mas não foi necessária. Por dois motivos: a Premier League estava satisfeita com as “garantias legalmente vinculantes” e seria mesmo um exercício meio inútil porque não precisamos de uma audiência para determinar a conexão entre o Fundo Público de Investimento e o governo da Arábia Saudita.
O príncipe herdeiro Mohammed Bin Salman é o atual governante em exercício da Arábia Saudita e presidente do conselho do Fundo Público de Investimento. Seis dos outros oito membros do conselho são ministros. Um é “conselheiro real”. O último e o único que, na teoria, e bem na teoria, não teria ligação com o governo, é Yasir Al-Rumayyan que, talvez não por coincidência, tornou-se presidente não-executivo do Newcastle.
E aí uma coisa engraçada aconteceu.
A LIV Golf, circuito de golfe fundado em 2021 que faz parte do projeto de Bin Salman de usar o esporte para oferecer entretenimento interno, distrair o público das atrocidades do seu regime e tentar passar uma imagem de modernidade, se juntou a um processo de alguns golfistas contra o PGA Tour, a principal liga profissional dos Estados Unidos, alegando “práticas anti-competitivas”. A PGA Tour decidiu que atletas que participassem dos eventos da LIV Golf não poderiam disputar os seus campeonatos. Os golfistas estavam contestando a suspensão.
Foi meio que um tiro no pé porque a PGA Tour decidiu processar de volta a LIV Golf e, em janeiro, adotou uma nova estratégia: alegou que o CEO da liga, Greg Norman, não tem autonomia para tomar decisões sem o aval do Fundo Público de Investimentos, que banca a brincadeira, e do nosso amigo Yasir Al-Rumayyan. O próximo passo natural foi começar a intimá-los por documentos sobre ações que foram tomadas para tirar a liga do papel. Em 17 de fevereiro, uma juíza federal deu ganho de causa para o PGA Tour e disse que o chefe do Fundo poderia ser deposto, de acordo com uma exceção da Lei de Imunidade de Soberania Estrangeira dos EUA.
E você não vai acreditar no que o PIF está alegando para se recusar a fazer isso. Em um documento protocolado na última terça-feira, disse: “Essa ordem é uma violação extraordinária da soberania de um Estado estrangeiro que está longe de ser justificada neste caso. O PIF e sua excelência Yasir Othman al-Rumayyan não são terceiros ordinários sujeitos aos padrões básicos de relevância para coleta de provas. Eles são um instrumento soberano do Reino da Arábia Saudita e um ministro em exercício do governo saudita e não podem ser obrigados a fornecer depoimentos e documentos em um caso nos EUA a menos que suas condutas sejam realmente o foco principal do caso”.
Ué?
Então, para fugir do teste da Premier League, o Fundo Público de Investimento e Al-Rumayyan não são considerados como o governo da Arábia Saudita, ou têm ligação direta com ele, mas para fugir de um depoimento legal nos Estados Unidos, o Fundo Público de Investimento e Al-Rumayyan são “instrumentos soberanos” do governo da Arábia Saudita?
“Imaginar que o Estado saudita não estava direcionando a compra do Newcastle com o objetivo final de usar o clube como um componente de um projeto mais amplo de sportswashing sempre foi esticar a credulidade a um ponto de ruptura”, afirmou o diretor econômico da Anistia Internacional no Reino Unido, Peter Frankental.
“Há uma ironia inconfundível na declaração do fundo soberano emergir de uma disputa entre outro braço do crescente império esportivo da Arábia Saudita, mas o simples fato é que o sportswashing saudita está afetando vários esportes, e as entidades administrativas precisam responder com muito mais eficiência”.
“A Premier League certamente precisará re-examinar as garantias feitas sobre o não-envolvimento das autoridades sauditas no acordo do Newcastle, também porque existe uma proposta do Catar para comprar o Manchester United em cima da mesa”, completou.
Segundo o Guardian, os clubes da Premier League estão furiosos com essa declaração do Fundo e não seria absurdo imaginar que pressionarão o CEO da liga inglesa, Richard Masters, a tomar alguma providência. Porque olha o que ele disse à BBC em novembro de 2021, ao ser questionado sobre como a Premier League saberia se o consórcio estava recebendo ordens do príncipe herdeiro:
“Nesse caso, eu não acho que saberíamos. Eu não acho que vai acontecer. Há garantias legalmente vinculantes de que, essencialmente, o Estado não estará no comando do clube. Se descobrirmos evidências do contrário, podemos retirar o consórcio como dono do clube. Isso está entendido”.
Se a evidência fosse uma cobra, Richard, já tinha te picado.
Procurada pelo Independent e pelo Guardian, a Premier League não quis comentar. O Fundo também se recusou a dar uma declaração ao Guardian e ao The Athletic.