Ásia/Oceania

Para Lahm, falta dignidade humana à Arábia Saudita para ser centro do futebol

Philipp Lahm falou sobre a tentativa de ascensão da Arábia Saudita no futebol como ela está ligada a forma como o país trata sua sociedade

O projeto da Arábia Saudita de despejar dinheiro em grandes nomes do futebol mundial para tentar se fortalecer e se firmar como uma potência ainda gera muitas dúvidas e questionamentos. Para o campeão do mundo com a Alemanha, Philipp Lahm, o país árabe só irá conseguir seu objetivo e se tornar um dos centros do esporte quando tiver dignidade humana.

O projeto da Arábia Saudita começou no fim de 2022, quando Cristiano Ronaldo foi contratado pelo Al-Nassr para ser o rosto de tudo. De lá pra cá, o país conseguiu atrair – com dinheiro – inúmeros jogadores bem-sucedidos do futebol mundial, como Firmino, Benzema, Kanté, Neymar, entre outros. O príncipe saudita, Mohammed bin Salman, tem uma estratégia para tornar a Arábia uma “nova Europa culturalmente”, e o futebol tem grande influência nisso, mas há muitas histórias por trás que podem fazer esse ideal fracassar, como apontou Lahm.

Em coluna no jornal The Guardian, Philipp Lahm lembrou que o projeto da Arábia Saudita parece com o que a China tentou colocar em prática há cerca de 10 anos, quando os chineses decidiram investir pesado no futebol e também contrataram nomes relevantes do futebol europeu. No entanto, não demorou muito para isso fracassar e hoje voltou a ser um centro não muito relevante no futebol.

– Politicamente, a China é importante, mas não se ouve nada sobre futebol. Só funciona onde a participação é possível para todos, onde o compromisso vem do centro da sociedade, onde cria-se comunidade e é organizado democraticamente. Você não constrói algo assim da noite para o dia. É preciso mais do que dinheiro e estrelas estrangeiras para alcançar o futebol europeu. É por isso que também sou cético em relação à Arábia Saudita — disse Lahm, que lembrou que, na Europa, o futebol é um bem cultural há um século e meio e já está enraizado em vários lugares, entrelaçado com o movimento trabalhista.

Lahm destaca que, como ex-jogador, ele percebeu que foi a sociedade que abriu caminho para ele se tornar o que foi, e por isso é importante apoiar e evoluir desde os mais jovens possíveis, com quatro ou cinco anos, até os adultos: “O futebol é um esporte nacional”. O campeão do mundo em 2014 explicou que o futebol não é algo imposto, não é só contratar os melhores e pagar os melhores salários, vai além disso, é fazer quem acompanha se identificar. Na Arábia, já há uma paixão nacional pelo futebol, mas, pensando na sociedade, será difícil atrair o público de fora.

A Arábia Saudita se classificou para a Copa do Mundo seis vezes. É o maior país da sua região, com 36 milhões de habitantes. A população é jovem. Há interesse pelo futebol e milhares de torcedores comemoraram a vitória sobre a Argentina na Copa do Mundo do Catar. A Arábia teria merecido uma oportunidade. Mas em condições políticas diferentes, porque a cultura do futebol é uma forma de dignidade humana – disse Lahm.

Para Lahm, os EUA sim podem alcançar a Europa

Durante sua análise sobre como a Arábia Saudita trata o futebol, Philipp Lahm lembrou de outro país que tenta (há anos) chegar no nível da Europa, mas esse ele vê com bons olhos: os Estados Unidos. O ex-jogador lembrou que, já nos 70, o New York Cosmos iniciou uma tentativa de evoluir o futebol no país com as contratações de grandes nomes como Pelé e Beckenbauer: “Desde então, houve um desenvolvimento contínuo. A base de fãs e o número de jogadores e treinadores têm crescido ano após ano, em parte devido aos imigrantes da América Latina”, destacou o alemão. Em 2023, por exemplo, a Major League Soccer teve sua maior média de público da história.

Lahm destacou como os estadunidenses entendem de esportes, pois tratam os estádios como templos e “ninguém celebra melhor os eventos” do que eles. Além disso, citou como eles conseguem ter uma identidade própria, fazendo o esporte ser parte da educação pública e ao mesmo tempo um grande negócio.

– As ligas principais (dos EUA) foram fundadas com o propósito de entretenimento. Na Europa, cresceram organicamente; o esporte é o resultado de atividades de lazer privadas. Mas os dois modelos estão culturalmente relacionados. Não há nada de artificial neles. A motivação dos milhões e milhões de participantes vem de dentro. Na Europa, o futebol está profundamente enraizado na sociedade, e cada vez mais nos EUA — afirmou Lahm.

O ex-jogador alemão ainda destacou como os Estados Unidos tem o “modelo perfeito” bem na porta de casa, pois as jogadoras de futebol do país são as melhores do mundo há décadas. Para ele, os EUA podem chegar no mesmo nível da Europa, o que faria o Velho Continente “ter que inventar alguma coisa” para resistir a isso, especialmente por conta da América do Sul, de onde saem grandes nomes do futebol mundial: “Um jogador de futebol argentino ou brasileiro não precisaria mais ir para Espanha ou Portugal, mas poderia ir para São Francisco, Atlanta ou Miami. Muitos podem identificar-se mais facilmente com esta tarefa do que com a de Riade”.

Recentemente, a MLS conseguiu a contratação de Lionel Messi, outro indicativo da evolução do futebol no país, que vem crescendo desde 1970, como citou Lahm, mas ganhou força em 1994, com a Copa do Mundo e a criação da liga profissional. Anos depois, ganhou um “boom” com a chegada de David Beckham, que mudou os rumos da liga para que esteja no nível em que está. Em 2026, os EUA vão sediar uma nova Copa (ao lado de México e Canadá), e querem fazer desse evento um novo ponto de partida para algo maior. O mesmo vale para a Arábia Saudita, que vai receber o torneio em 2034.

Foto de Alecsander Heinrick

Alecsander HeinrickSetorista

Jornalista pela PUC-MG, passou por Esporte News Mundo e Hoje em Dia, antes de chegar a Trivela. Cobriu Copa do Mundo e está na cobertura do Atlético-MG desde 2020.
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