Histórias Olímpicas

Montreal-76: quando boicotes sérios afetaram de verdade uma competição

Em protesto contra a Nova Zelândia, a maior parte das delegações africanas deixou as Olimpíadas de 1976

Esta coluna é uma parceria da Trivela com o Leia mais colunas aqui e ouça o podcast OlimpCast.

Houve um tempo em que atletas e dirigentes esportivos protestavam de verdade contra questões políticas que que os incomodavam e bancavam a posição até o fim, mesmo que isso pudesse incomodar outros cartolas, políticos e patrocinadores, e prejudicar de última hora a realização de competições. Faz tempo, é verdade: foi há 45 anos, em 1976, quando mais de 20 países africanos desistiram de disputar os Jogos Olímpicos de Montreal.

Esse boicote é menos lembrado que os de 1980 e 1984, mas tem um enorme valor simbólico porque foi confirmado apenas na última hora: muitas delegações africanas já estavam no Canadá, alguns favoritos desistiram de buscar medalhas e torneios de esportes coletivos acabaram afetados, sem a possibilidade de convites de última hora.

A história, no entanto, começa bem antes, em 1963, o mesmo ano em que Nelson Mandela foi preso na África do Sul por liderar protestos e insurgências contra o regime segregacionista do apartheid. Depois de mais de uma década de debates, a Organização das Nações Unidas criou um embargo internacional contra o país, vetando ações de comércio internacional e outras interações, inclusive no esporte. O país ficou de fora dos Jogos Olímpicos a partir de Tóquio-1964 e deixou de participar também de competições da maioria dos esportes ligados ao Comitê Olímpico Internacional. Outros, porém, não se importavam: a Fórmula 1, por exemplo, realizou corridas no país de forma ininterrupta entre 1967 e 1985.

E o boicote em Montreal aconteceu justamente por causa de um esporte não-olímpico: o rúgbi, uma das modalidades preferidas na África do Sul e, por muito tempo, um símbolo dos supremacistas brancos. Pois em 1976 ninguém menos que a Nova Zelândia, outra seleção da elite do esporte, conhecida como All Blacks por seus uniformes pretos e famosa pelos haka, os cantos de saudação de origem maori feitos em campo antes dos jogos, resolveu realizar uma excursão pela África do Sul.

Não era de graça: as duas seleções tinham o costume de realizar essas viagens de intercâmbio desde as décadas anteriores, e a Nova Zelândia tinha seu próprio regime segregacionista, no qual os maori tinham vários direitos restritos. Em 1960, numa dessas viagens, aconteceu um desentendimento: os sul-africanos proibiram os jogadores de origem maori, com pele mais escura, de entrar – mesmo assim, a excursão aconteceu, só que sem haka antes dos jogos. Uma nova excursão só ocorreria em 1970, quando os sul-africanos acharam uma solução bizarra: os jogadores maori receberam um “título de cidadão branco honorário”, o que lhes permitia entrar como visitantes no país. Aos olhos de hoje parece algo inacreditável, mas era a gambiarra diplomática criada para permitir que cidadãos de outras etnias, especialmente os orientais, entrassem e eventualmente vivessem num território onde só brancos tinham cidadania plena.

A história se repetiu em 1976. Os dirigentes neozelandeses marcaram uma excursão de quase três meses, com 24 partidas, sendo 20 contra clubes e combinados locais e quatro contra a seleção sul-africana. A primeira delas foi em 30 de junho, em East London, no litoral sudeste do país, banhado pelo Oceano Índico, contra um combinado de duas equipes da cidade. 

A delegação de Camarões na cerimônia de abertura (Foto: Imago / One Football)

Enquanto isso, a caminho de Montreal, onde os Jogos seriam abertos em 17 de julho, um grupo de dirigentes africanos sob a liderança de Jean-Claude Ganga pressionava o COI pela expulsão da Nova Zelândia, por estar rompendo o embargo. Ganga é uma figura complexa. Nascido no Congo, ele havia sido o idealizador dos Jogos Africanos, realizados pela primeira vez em 1965, e ganhado o epiteto de “pai do esporte africano”, ao mesmo tempo em que enfrentava denúncias de abuso de autoridade. Num momento em que o esporte se tornava mais global, passando a olhar mais para o mundo além da Europa e do Atlântico Norte, sua palavra ganhou força. Sob influência de Ganga, outros dirigentes africanos fecharam questão em torno do tema e ameaçaram não participar dos Jogos, ainda que suas delegações começassem a chegar ao Canadá e se instalar na Vila Olímpica.

O impasse se formou. O Comitê Olímpico da Nova Zelândia se defendeu, afirmando que a excursão era um assunto da federação de rúgbi, independente e desligada do movimento olímpico – o esporte, vale lembrar, só entrou no programa dos Jogos no Rio-2016, em sua versão para sete jogadores. O COI, por sua vez, aceitou essa alegação. Montreal já vivia um clima de tensão, com o maior esquema de segurança numa olimpíada, após o sequestro e a morte de 11 israelenses, entre atletas, técnicos e dirigentes, quatro anos antes em Munique. 

O impasse se estendeu até a cerimônia de abertura e o dia seguinte. As seleções masculinas de basquete e vôlei do Egito, por exemplo, chegaram a jogar na manhã do dia 18, sofrendo derrotas para Tchecoslováquia e Brasil, respectivamente, antes de os dirigentes anunciarem o boicote e o abandono – os jogos acabaram sendo desconsiderados. Até a ONU tentou intervir: “Compreendo as profundas e sinceras preocupações dos estados africanos, mas é necessário que se ressalte o significado particular das Olimpíadas na busca da fraternidade e da compreensão dentro da humanidade”, disse o então secretário-geral, Kurt Waldholm, em registro da Folha de S. Paulo no dia 19 de julho. Tarde demais: apenas as delegações de Senegal e Costa do Marfim permaneceram para a disputa entre as africanas. Nenhuma das duas ganhou medalha.

A decisão tirou dos Jogos dois recordistas mundiais no atletismo: o ugandense John Akii-Bua, dos 400 m com barreiras, campeão olímpico da prova em Munique, e o tanzaniano Filbert Bayi, dos 1.500 m. No caso deste, uma ironia: era esperado um tira-teima justamente contra um neozelandês, John Walker, com quem vinha travando duelos nos anos anteriores. Walker venceu numa arrancada incrível e levou uma das duas medalhas de ouro da Nova Zelândia nos Jogos – a outra foi no hóquei sobre a grama.

No futebol, a África, cada vez mais influente no cenário internacional, fundamental para a eleição de João Havelange à Fifa, dois anos antes, ganhou direito a três vagas, decididas em três séries de mata-matas. Na etapa derradeira, Gana eliminou o Senegal, a Nigéria bateu o Marrocos e Zâmbia passou pelo Sudão nos pênaltis. O sorteio colocou a Nigéria no complicado Grupo A, com Alemanha Oriental, Brasil e Espanha; Gana foi para o Grupo C, com Polônia, campeã em Munique-1972, Irã e Cuba; e Zâmbia estava no Grupo D, com os anfitriões canadenses e mais União Soviética e Coreia do Norte.

O Estádio Olímpico (Foto: Imago / One Football)

Fifa e COI não tiveram tempo para chamar mais ninguém – Cuba já era um “estepe”, porque ocupava a vaga do Uruguai, vice-campeão do Pré-Olímpico disputado no Brasil. A Argentina, terceira colocada, recusou a oferta e os cubanos, lanternas no triangular final da Concacaf contra México e Guatemala, aceitaram o convite. Os grupos acabaram sendo disputados mesmo por apenas três seleções – o único completo foi o B, com França, Israel, México e Guatemala. Como contamos na coluna anterior, a Alemanha Oriental de Jürgen Croy ficou com o ouro.

Jean-Claude Ganga, o artífice do boicote, seria depois ministro dos Esportes no Congo e nomeado como membro do COI, mas terminaria seus dias no esporte como vilão: foi afastado em 1999, acusado de receber propina para votar pela escolha de Salt Lake City como sede dos Jogos de Inverno, em 2002 – ele foi um dos dirigentes que teve a chance de comprar imóveis na cidade a preço baixo durante o processo de candidatura e revende-los depois com lucro – no seu caso, de 60 mil dólares. Além disso, teria embolsado outros 40 mil dólares para “desenvolver o esporte para os jovens no Congo”.

Os boicotes voltariam a assombrar as olimpíadas seguintes: Moscou-1980 não teve os Estados Unidos e vários países sob sua influência, como a Alemanha Ocidental, por causa da ocupação soviética no Afeganistão, ocorrida no ano anterior; como represália, a União Soviética e alguns de seus satélites no bloco comunista não estiveram em Los Angeles-1984. 

O apartheid, por sua vez, cairia em 1990, com a libertação de Nelson Mandela. A África do Sul voltou ao mundo olímpico em Barcelona-1992, e o rúgbi, outrora símbolo da supremacia branca, se tornaria um dos focos de Mandela, já presidente, para uma tentativa de integração, ou pelo menos de maior tolerância, entre negros e brancos, com a realização e a conquista da Copa do Mundo de 1995, história contada no ótimo Invictus, com Morgan Freeman no papel do líder político e Matt Damon como François Pienaar, o capitão da seleção. Em 2019, o ciclo se completou com nova conquista da África do Sul da Copa do Mundo de rúgbi, desta vez com um capitão negro, Siya Kolisi.

Mas por que todas essas histórias em que o futebol pouco aparece? Para lembrarmos que esporte e política são inseparáveis, especialmente quando se fala de grandes eventos – desde sempre usados por países-sede e campeões como símbolos do chamado soft power, aquele poder que se impõe não com armas, mas com influência em campos como a arte, a cultura… e o esporte. E não vai ser um manifesto oco divulgado por jogadores desconectados da realidade que vai mudar isso.

Foto de Fernando Cesarotti

Fernando Cesarotti

Fernando Cesarotti é jornalista há 22 anos e professor há sete. Na Copa de 2018, escreveu a coluna 'Geopolítica das Copas' na Vice. Hoje, entre uma aula e outra, produz o OlimpCast, podcast que conta histórias dos Jogos Olímpicos. No Twitter, @cesarotti.
Botão Voltar ao topo