Abby Wambach: a cabeçada que apagou o Brasil e rendeu o ouro em Atenas-2004
Carrasco brasileiro, Wambach se tornou uma lenda do futebol nos Estados Unidos e brilhou em Olimpíadas e Copas do Mundo

Abby Wambach não é de baixar a cabeça, de nenhuma forma. No sentido figurado, ela esteve sempre pronta para enfrentar todo e qualquer preconceito e ajudar a transformar o futebol feminino num dos esportes mais populares em seu país. Dentro de campo, seu 1,80 m a tornou uma figura imponente em campo, sempre pronta a fuzilar as defesas adversárias – inclusive com cabeçadas poderosas. Algumas delas, veremos, contra a seleção brasileira.
Na coluna anterior recordamos a conquista da Argentina no futebol masculino em Atenas, sem nenhum gol sofrido. A Olimpíada de 2004 teve a explosão de Michael Phelps, dono de seis medalhas de ouro, entre outras histórias bacanas que você pode curtir no episódio. Aperte o play e confira o OlimpCast.
A história da jovem Mary Abigail começa como a de centenas de craques mundo afora, ainda que ao jeitinho americano, onde futebol é principalmente coisa de mulher: a caçula de uma família com quatro filhos e três filhas se interessou pela bola aos quatro anos, após acompanhar o treino de uma das irmãs mais velhas. Ela vivia numa grande casa de subúrbio em Rochester, estado de Nova York, e contou nesta entrevista de 2011 que os irmãos eram praticamente obrigados a brincar. “Minha mãe fechava as portas e não deixava entrar nem para xixi, tínhamos que usar os arbustos”, contou. Dessas brincadeiras, além do futebol, fazia parte o hóquei. E a caçula era obrigada a ir para o gol.
Talvez o hábito de encarar o puck tenha contribuído para desenvolver a coragem de Abby, que, aos 17 anos, perto de concluir o ensino médio, foi selecionada pela US Soccer para a seleção sub-19 que viajou, em 1997, para um torneio amistoso em Pequim, na China. Na volta, foi assediada por várias universidades, inclusive as donas dos times de futebol mais famosos na NCAA, como Carolina do Norte, UCLA e Portland. Escolheu, no entanto, estudar na Flórida, onde se formava um time que ganhou a mascote da universidade, um crocodilo. E, já em seu primeiro ano, liderou a equipe das “Gators” na conquista do título da NCAA, a liga universitária do país.
Depois de se formar, ela foi jogar no Washington Freedom, o time da capital na primeira tentativa de criação de uma liga. O caminho até a seleção foi natural, e Abby começou a ser chamada a partir de 2002, como parte de um lento processo de renovação iniciado depois da derrota para a Noruega na final dos Jogos de Sydney-2000. Na Copa do Mundo de 2003, já era titular e marcou três gols, inclusive o da vitória sobre a Noruega por 1 a 0, nas quartas de final. A equipe terminou em terceiro e ela seguiu no 11 principal para os Jogos Olímpicos.
Em Atenas, marcou um gol na estreia, 3 a 0 sobre a Grécia, e outro nos 2 a 0 contra o Brasil, ainda na primeira fase. Foi poupada na última rodada, empate por 1 a 1 contra a Austrália, e voltou a se destacar nos mata-matas, com o gol que definiu a vitória por 2 a 1 sobre o Japão, após passe de Shannon Boxx. Passou em branco nas semifinais, quando o time sofreu para vencer a Alemanha, por 2 a 1 na prorrogação, e vingou a eliminação em casa, na Copa do Mundo do ano anterior, na mesma fase semifinal.
Na decisão, contra o Brasil, Wambach estava em campo num dos confrontos em que a seleção de Marta, Cristiane, Formiga e Pretinha foi melhor, e as norte-americanas triunfaram acima de tudo com a camisa e a cabeça. Abriram o placar aos 39 do primeiro tempo, com Lindsay Tarpley, mas o Brasil conseguiu se impor e chegar ao empate aos 27 da etapa final, num lance de oportunismo de Pretinha, após bela jogada de Cristiane e falha da goleira Briana Scurry.
O empate animou o time brasileiro, que foi para cima, acertou uma bola na trave, mas não conseguiu evitar a prorrogação. Quando, então, Wambach literalmente usou a cabeça para dar o ouro a sua seleção: aos sete minutos do segundo tempo extra, Kristine Lilly bateu escanteio da esquerda e Abby cabeceou forte, sem nenhuma chance de defesa para Andreia.
O vídeo abaixo traz a reportagem de Marcos Uchoa para o Globo Esporte do dia seguinte, com os melhores momentos, os gols e entrevistas, além do eterno discurso da falta de apoio ao futebol feminino no Brasil.
Os Estados Unidos recuperavam o ouro perdido e encaminhavam a partir dali um tricampeonato olímpico – em Pequim-2008, porém, sem Abby Wambach, que quebrou a perna num amistoso justamente contra o Brasil, menos de um mês antes da Olimpíada, numa dividida com Andreia Rosa. Em Londres, ela voltou e marcou mais cinco gols, inclusive o gol de empate por 3 a 3 contra o Canadá nas semifinais, de pênalti, aos 35 do segundo tempo – Alex Morgan faria o gol da virada aos 18 do segundo tempo da prorrogação.

Já a Copa do Mundo demorou a sorrir para Abby. Depois do fracasso caseiro de 2003, ela estava presente nos 4 a 0 sofridos diante do Brasil na semifinal do Mundial da China, em 2007. Vingou-se parcialmente em 2011, de novo de cabeça, nas quartas de final – os Estados Unidos perdiam por 2 a 1 já nos acréscimos da prorrogação quando Rapinoe acertou um cruzamento magistral da esquerda e Wambach apareceu por trás da defesa e testou para as redes. Nos pênaltis, 5 a 3 para as ianques. Mas o título, de novo, não veio: Abby até marcou (de cabeça, claro) durante a prorrogação contra o Japão, mas o jogo acabou 2 a 2 e foi para os pênaltis – ela foi a única das americanas a converter sua cobrança na derrota por 3 a 1.
O título só viria em 2015, no Canadá. Já veterana, uma estrela para os padrões americanos, já com um documentário para a ESPN, “Abby Head On” (claro que tinha que citar a cabeça), e uma capa nua para a The Body Issue, edição especial para a revista da emissora que destacava a beleza dos corpos atléticos, Abby tinha autoridade suficiente para puxar o coro contra a grama artificial usada nos estádios, dizendo que “os homens jamais aceitariam jogar assim”. As jogadoras chegaram a abrir um processo contra a Fifa e a federação canadense, mas acabaram desistindo.
Wambach não só aceitou a convocação como foi garota-propaganda da Copa em emissoras de TV, participando até do American Idol, além de estrelar a capa do Fifa 2016 nos Estados Unidos. Em campo, jogou pouco e fez apenas um gol, na vitória por 1 a 0 sobre a Nigéria. Foi para o banco e nos mata-matas entrou apenas nos minutos finais, para ajudar a cadenciar o jogo. Na final contra o Japão, só foi a campo já com o placar de 5 a 2 decidido e ganhou a faixa de capitã, que entregou depois a Christie Rampone, que se despedia também da seleção, já aos 40 anos. Juntas, as duas veteranas ergueram a taça. Um belo jeito de se dizer adeus: com a cabeça sempre erguida.