Histórias Olímpicas

German Lux, o paredão que ajudou a Argentina a quebrar um jejum de mais de meio século em Atenas-2004

Depois do ouro olímpico em 1952, Argentina só voltou ao posto mais alto do pódio na Grécia com o seu time de futebol

Você talvez nunca ouvido falar em Eduardo Guerrero e Tranquilo Cappozzo. Não, eles não jogavam futebol – bom, pode até ser que jogassem, mas não era a especialidade. Eles eram bons mesmo em remar. E foi assim, cada um dos dois remos nas mãos, que esses argentinos conquistaram a medalha de ouro na prova do double skiff nos Jogos Olímpicos de Helsinque-1952. E, por mais de meio século, essa foi a última vez que a bandeira alviceleste tremulou no alto de um pódio. 

A escrita só seria quebrada 52 anos depois, com a inédita e sonhada medalha de ouro conquistada pelo futebol, graças a timaço liderado dentro de campo pelos gols de Carlitos Tevez e pela segurança de German Lux debaixo das traves, e do lado de fora pelo loco Marcelo Bielsa – foi o grande título, aliás, conquistado por ele em seu período de seis anos à frente da seleção.

Os Jogos de Atenas-2004 ficaram marcados para os brasileiros por medalhas de ouro na vela, no vôlei de praia e de quadra e, principalmente, pela superação de Vanderlei Cordeiro de Lima na maratona. Aperte o play para ouvir as melhores histórias daquela olimpíada no episódio 30 do OlimpCast.

Mas esta história começa alguns meses antes, em janeiro de 2004, num Pré-Olímpico disputado no Chile. Duas vagas estavam em jogo, e a Argentina estava traumatizada pelo desastre de quatro anos antes, em Londrina, quando a geração de Riquelme, Aimar e Cambiasso deixou de ir a Sidney por causa de uma derrota para o Chile com um gol de Reinaldo Navia nos minutos finais. E se daquela vez Bielsa já comandava a seleção principal, mas deixou o time para Jose Pekerman, então coordenador das categorias de base, em 2004 o próprio Marcelo em pessoa assumiu a responsabilidade. E convocou um grupo que, embora jovem, mostrava bastante experiência.

German Lux, aos 21 anos, tinha no currículo o título do Mundial Sub-20 de 2001 e já pedia passagem no gol do River Plate, onde nomes como Javier Mascherano e Lucho Gonzalez já eram titulares absolutos. No arqui-rival Boca Juniors, Carlitos Tevez, Nicolas Burdisso e Clemente Rodriguez tinham sido fundamentais para as conquistas da Libertadores e da Copa Intercontinental, em 2003. Todos eles fizeram parte do grupo que disputou o Grupo B da seletiva olímpica, no estádio Francisco Sánchez Rumoroso, em Coquimbo.

El Loco, porém, optou por dar a camisa 1 e a titularidade no gol a Willy Caballero, que ascendia no Boca, mas passava a maior parte do tempo no banco de Pato Abbondanzieri. A chave começou difícil, com um empate sem gols contra o Peru e uma suada vitória de virada sobre a Bolívia, por 2 a 1. Mas o time foi se encaixando: goleou o Equador por 5 a 2 e garantiu o primeiro lugar com um 4 a 2 sobre a Colômbia.

Na outra chave, em Concepción, o Chile liderou, também com 10 pontos, e avançou direto ao quadrangular final. A novidade naquela edição foi que segundos e terceiros colocados dos dois grupos se enfrentaram pelas vagas restantes. Brasil, que derrotou a Colômbia por 3 a 0, e Paraguai, que bateu o Equador nos pênaltis por 4 a 2 após um empate sem gols, se juntaram aos vencedores para a fase decisiva, disputada em Viña del Mar.

O Brasil, sob o comando de Ricardo Gomes, levou ao Chile a geração liberada por Diego e Robinho, que ainda brilhavam juntos no Santos, mas sentiu a ausência de Kaká, vetado pelo Milan, e Adriano, então na Internazionale, também não liberado. E a Argentina se aproveitou da instabilidade e saiu na frente no quadrangular, vencendo o clássico por 1 a 0, gol do zagueiro Gonzalo Rodriguez, revelado no San Lorenzo. Caballero teve atuação segura diante do bom, mas desorganizado ataque brasileiro. No outro jogo, o Paraguai venceu o Chile por 2 a 1, de virada, marcando seus gols num intervalo de três minutos.

Na segunda rodada, a Argentina carimbou seu passaporte a Atenas batendo os paraguaios por 2 a 1, enquanto o Brasil fez 3 a 1 no Chile. No domingo, um 2 a 2 com os chilenos serviu para confirmar a conquista do torneio, enquanto o Paraguai surpreendeu vencendo o Brasil (que jogava pelo empate) por 1 a 0, gol do zagueiro José Devaca.

Com a vaga assegurada, Bielsa voltou-se para a seleção principal, que teria compromissos pelas Eliminatórias da Copa de 2006, em andamento desde o ano anterior, e a Copa América, em julho, no Peru. E embora a lenda escrita em torno dessa competição diga que o mistão do Brasil venceu o time completo da Argentina, a verdade é que 13 dos 22 inscritos por Bielsa tinham idade olímpica. E que, dos 18 que depois foram inscritos em Atenas, só os dois goleiros não estiveram oficialmente na Copa América – até treinavam com o grupo, mas os guarda-metas no torneio foram Abbondanzieri e Pablo Cavallero, então no Celta (não confunda os sobrenomes).

Na hora de fechar o elenco para Atenas, Bielsa decidiu reforçar a defesa na escolha dos “veteranos” acima de 23 anos, escolhendo Roberto Ayala e Gabriel Heinze. Kily Gonzalez, eficiente em todo o campo, foi o terceiro elemento. E, na hora de escalar o time, mesmo dando a camisa 1 para Caballero, que havia acabado de ser negociado com o Elche, da Espanha, o técnico optou por escalar Lux, com a camisa 18.

Foi assim, com um time forte, entrosado e experimentado, que a Argentina chegou à Grécia apenas duas semanas após a frustração de Lima para disputar a Olimpíada. E começou atropelando: 6 a 0 sobre Sérvia e Montenegro, dois gols de Tevez e mais Delgado, Kily, Heinze e Rosales. A classificação veio com a vitória sobre a Tunísia por 2 a 0, gols de Tevez e Saviola, e o primeiro lugar, com um 1 a 0 em cima da Austrália, gol de D’Alessandro. Em todos os jogos, o time foi pouco – e o goleiro mostrou segurança sempre que necessário.

Nas quartas, a Costa Rica foi presa fácil: 4 a 0, com Delgado abrindo o placar e Tevez fazendo os três seguintes. Nas semifinais, a Itália de Pirlo, De Rossi e Gilardino também não resistiu: 3 a 0, gols de Tevez, Lucho Gonzalez e D’Alessandro. Lux de novo mostrou tranquilidade quando foi acionado, especialmente nos momentos de pressão italiana no primeiro tempo após o gol inicial de Carlitos.

No caminho do ouro tão aguardado, só restava o conhecido Paraguai. Zebra no Pré-Olímpico, a seleção guarani também investiu pesado no sonho olímpico, escalando o seguro Carlos Gamarra e o goleador José Cardozo entre os jogadores acima do limite de idade – o terceiro foi o volante Julio Cesar Enciso. Eles deram um bom tempero a uma geração promissora, com nomes como Fredy Barreiro e Pablo Giménez, entre outros. O time tinha passado em primeiro num grupo com Itália, Japão e Gana e, nos mata-matas, despachou a Coreia do Sul e o Iraque, grande sensação da Olimpíada, representando um país que tentava se reconstruir sendo desde 2003 ocupado pelos Estados Unidos, história que merece um texto à parte.

Na decisão, disputada sob um sol escaldante das 10 da manhã do sábado, 28 de agosto, a Argentina se impôs desde o começo a um Paraguai vestindo um inusitado uniforme amarelo. Aos 18 minutos, Rosales escapou pela direita e cruzou; Tevez se antecipou à defesa e só tocou com leveza, abrindo o placar fazendo seu oitavo gol, consolidando-se na artilharia do torneio. Depois, foi só controlar o jogo e confiar na segurança de Lux, que fez várias defesas, garantiu a vitória e saiu de campo com um feito histórico: campeão olímpico sem sofrer um gol sequer após 540 minutos.

No vídeo abaixo, o gol e a festa na decisão. Neste vídeo do Oluympic Channel, todos os gols e a força da defesa que terminou a Olimpíada sem ser vazada.

Era o fim de um jejum de 52 anos e o começo de uma festa que, como dizem os clichês, não teve hora para acabar. Inclusive porque, horas depois, somou-se a ele uma segunda medalha de ouro, conquistada pelo basquete masculino. A geração de Manu Ginobili, Luis Scola e Andres Nocioni, sob o comando de Ruben Magnano, dois dias antes vencera os Estados Unidos nas semifinais, numa atuação de gala, e conquistou o ouro com um atropelo em cima da Itália: 84 a 69.

O sucesso de Lux com a camisa preta dos goleiros argentinos, contudo, não foi longe. Em 2005, já com Pekerman à frente da seleção principal, foi convocado e escalado como titular na Copa das Confederações, mas algumas falhas – mesmo pegando pênalti de Ricardo Osorio na semifinal contra o México – lhe custaram a confiança do técnico, que não o convocou mais. Em 2007, trocou o River pela Espanha, para jogar quatro temporadas no Mallorca e outras seis no Deportivo La Coruña, e nesse período saiu completamente do radar dos treinadores da seleção. Voltou ao River em 2017 e hoje, aos 38 anos – faz 39 em junho – joga cada vez menos, servindo como espécie de “guru” para Franco Armani e o elenco do que como opção concreta para Marcelo Gallardo.

Já a Argentina ganhou o bi olímpico em Pequim-2008, já com Messi e tendo em Riquelme um dos “veteranos”. Outros ouros vieram naquela e nas olimpíadas seguintes, no ciclismo, na vela, no taekwondo e no hóquei. Novos heróis que se juntaram à galeria dos campeões renovada por Lux, Tevez e o time que brilhou sob o sol do Estádio Olímpico de Atenas.

Foto de Fernando Cesarotti

Fernando Cesarotti

Fernando Cesarotti é jornalista há 22 anos e professor há sete. Na Copa de 2018, escreveu a coluna 'Geopolítica das Copas' na Vice. Hoje, entre uma aula e outra, produz o OlimpCast, podcast que conta histórias dos Jogos Olímpicos. No Twitter, @cesarotti.
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