Europa

Se a seleção da Suécia derrete, o Campeonato Sueco floresce a partir da cultura de estádio

O futebol sueco atravessa um momento curioso, em que sua seleção passa vergonha nas competições, mas o futebol de clubes se fortalece pelo que se vive nas arquibancadas

Aos olhos de muita gente, o futebol sueco anda em baixa. A seleção auriazul passou vergonha em suas últimas empreitadas. Primeiro, o time deixou escapar a vaga na Copa do Mundo de 2022 que parecia próxima e caiu na repescagem. Depois, acabou rebaixado à terceira divisão da Liga das Nações. Por fim, passou longe de brigar por vaga na Euro 2024. Nesta Data Fifa, a derrota para o Azerbaijão por 3 a 0 pareceu a pá de cal, que inclusive culminou na saída do técnico Janne Andersson após a vitória sobre a Estônia. O curioso é que os péssimos resultados da Suécia no futebol de seleções contrastam com um momento de destaque do futebol de clubes. Não necessariamente por relevância nas competições continentais, mas por aquilo que se vive nas arquibancadas. Em termos de cultura de futebol, o Campeonato Sueco se estabelece como um dos melhores da Europa neste momento.

As últimas semanas tiveram episódios bastante emblemáticos. A rodada final do Campeonato Sueco Masculino foi uma loucura. A competição manteve uma corrida equilibradíssima até a reta decisiva. No último compromisso, o vice-líder Malmö recebeu o líder Elfsborg, dependendo de uma vitória para causar a reviravolta e ser campeão no saldo de gols. Foi o que aconteceu, diante de uma torcida pulsante e de um clima fantástico – mesmo com as confusões que chegaram a atrasar a volta do intervalo. Enquanto isso, o Campeonato Sueco Feminino também ofereceu um desfecho sensacional. O Hammarby foi campeão ao somar um gol a mais no saldo do que o Häcken, o vice-campeão. As alviverdes não levavam o troféu desde 1985 e milhares de torcedores invadiram o gramado para comemorar, mesmo fora de casa. Depois, a multidão tomou as ruas de Estocolmo.

Esse protagonismo do público é algo consciente na Suécia. Financeiramente, o Campeonato Sueco não consegue competir com ligas nacionais mais ricas. Em vez de se vender a investidores estrangeiros, a administração da competição optou por fortalecer os seus laços com os torcedores. Há uma série de particularidades no futebol sueco, desde a manutenção da regra “50+1” até detalhes como a contraposição ao VAR para privilegiar a experiência de estádio. O resultado disso é que, ao menos na visão doméstica, a Allsvenskan é um sucesso. O público dobrou ao longo da última década, com recorde de média na temporada encerrada há duas semanas. Os shows com mosaicos e tudo mais são constantes.

O poder dos torcedores

O Campeonato Sueco adota a regra do “50+1” desde 1999, com o mesmo princípio daquilo que é aplicado no Campeonato Alemão. A “metade mais uma” das ações precisa ficar nas mãos dos associados, para que o poder de decisão não saia de dentro dos clubes. Tal ideal, no entanto, naturalmente afasta investidores e magnatas interessados em catapultar seus negócios. E, até em comparação com a Bundesliga, a situação da Allsvenskan é mais dramática. O futebol alemão ainda tem bastante capacidade comercial ao seu redor, dentro de uma economia mais forte, bem como conta com uma penetração maior dos clubes em diferentes cantos do planeta. Os times suecos se veem bem mais sufocados pela realidade econômica do esporte, que cada vez mais concentra dinheiro nas grandes ligas.

Assim, há cerca de 15 anos, existia um questionamento genuíno sobre a viabilidade do “50+1” na Suécia. Os próprios associados lutaram para que a situação não mudasse, mesmo que o preço fosse contar com um torneio mais fraco economicamente. Seria isso o mais importante? Para o público sueco, aquele representou um momento de virada, de valorizar exatamente a experiência ao redor do futebol. “Aquele foi o momento em que os torcedores perceberam pela primeira vez o poder que tinham”, comentou o escritor Noa Bachner, em entrevista recente ao The New York Times sobre o assunto.

A situação geral, afinal, preocupava. Além do êxodo de talentos causado pelas disparidades entre as ligas nacionais, o Campeonato Sueco sofria entraves também nas arquibancadas, com episódios constantes de hooliganismo. Não havia identificação com o Allsvenskan: numa pesquisa da época, apenas 11% dos torcedores locais apontavam a liga nacional como a sua preferida, botando à frente a Champions League e a Premier League, entre outras. Em vez de uma limpa, o entendimento foi de melhorar o que se via como cultura de futebol. Por exemplo, na Suécia há uma permissividade maior em relação aos adereços nas arquibancadas, como sinalizadores. As autoridades suecas também trabalharam para que a polícia agisse de forma mais conciliatória no trato com o público – o que, obviamente, não inibe os episódios de repressão e os protestos contra os abusos, mas com um canal de diálogo aberto.

De maneira geral, existe um incentivo maior para se frequentar os estádios na Suécia, isso está claro. A mobilização para ver o futebol in loco se tornou maior, enquanto o ambiente ao redor também é um diferencial mesmo em transmissões televisivas. E tudo isso fez com que a roda da economia girasse, se não nos patamares de ligas estrangeiras, ao menos para potencializar mais a realidade local. As receitas triplicaram na última década. Atualmente, cerca de 40% dos torcedores locais apontam a Allsvenskan como sua competição favorita, quadruplicando os números da pesquisa anterior. Os clubes suecos voltaram a se inserir mais no cotidiano da sociedade local.

Independente de gênero

Dentro de campo, o que se nota é também uma dose de equilíbrio importante que diferencia Suécia e Alemanha. Na Bundesliga, o “50+1” tantas vezes soa como um limitador diante do poderio do Bayern de Munique. O mesmo não acontece na Allsvenskan, ainda que o Malmö tenha mais projeção por suas campanhas continentais e ganhe mais dinheiro da Uefa por isso. Há uma alternância fundamental que auxilia na atratividade da liga. É verdade que o Malmö levou sete dos últimos 11 troféus, mas também são 11 campeões diferentes neste século. Desde que o IFK Göteborg dominou o torneio nos anos 1990, não se vê um tricampeão de maneira consecutiva. O suspense se mantém.

O que aconteceu na última temporada, tanto no Campeonato Sueco Masculino quanto no Campeonato Sueco Feminino, valoriza esse interesse. Há uma noção de que o grupo de campeões pode ser grande, mesmo que um ou outro time sempre apareça bem colocado no páreo. E essa expectativa providencia um engajamento cada vez maior. Que, afinal, não se limita apenas à modalidade praticada pelos homens. O futebol de mulheres está arraigado na sociedade sueca há décadas e isso amplifica o movimento interno nas arquibancadas. Há distâncias bem menores entre o departamento masculino e o feminino, com torcedores que abraçam o clube, não necessariamente o gênero.

Foi o fenômeno que se notou com o Hammarby nesta temporada. Os alviverdes são provavelmente o melhor exemplo da cultura de arquibancadas que existe na Suécia. O clube está sediado numa região operária de Estocolmo e possui um elo forte com a classe trabalhadora, numa relação que se ampliou principalmente nos anos 1970. O Hammarby é um pioneiro das festas nas arquibancadas do país. Não à toa, tornou-se extremamente popular mesmo sem ser o mais vitorioso, com seu primeiro (e único) troféu faturado na Allsvenskan em 2001. A massa não está lá pelos triunfos, está por seu amor. Algo que se compartilha com o time feminino, campeão pela primeira vez em 1985 e que só repetiu a dose na Damallsvenskan há duas semanas.

Ver a casa cheia em qualquer jogo do Hammarby, masculino ou feminino, não é novidade. As médias de público são expressivas, assim como os alviverdes possuem alguns recordes na sua conta. Ainda assim, o simbolismo do que aconteceu na rodada do título das mulheres é bastante forte. Mais de 7 mil torcedores pegaram os 160 quilômetros de estrada para ver a vitória contra o Norrköping e invadir o campo depois que o título se consumou. Aquela multidão sabe que não verá o Hammarby vencer sempre. Mas não abandona o clube e mantém sua fidelidade por aquilo que se crê como identidade, não apenas por grandiosidade.

A emoção pelo momento foi expressa por Alice Carlsson, capitã do Hammarby, em entrevista ao Guardian: “Está ficando difícil saber o que dizer sobre eles. Não há palavras dignas o suficiente para descrever a torcida e o que ela significa para todas nós. Tudo o que eles fazem pelo time é enorme. Achei que o recorde na final da Copa da Suécia foi grande, mas essa invasão foi algo completamente diferente. Nunca poderia ter imaginado. Espero muito que outras equipes consigam isso e possam jogar num estádio com ótima atmosfera. Também estou esperando pelo momento em que toda a Europa, através da Champions, possa experimentar esse fenômeno e nossa cultura de torcida”.

E é interessante pensar como o próprio movimento nas arquibancadas do futebol feminino na Suécia também solidificou a modalidade. Nem sempre os jogos com mulheres foram um sucesso de público entre os suecos. A percepção mudou a partir de um questionamento feito pelos próprios torcedores, ao perceberem que os estádios vazios não eram incentivo para que as garotas perseverassem em busca de carreiras profissionais no esporte. O próprio Hammarby foi pioneiro nesta mobilização. Os clubes suecos podem não ser a potência de outrora no cenário continental, até pelas distâncias econômicas que também se alargam no futebol feminino, mas a capacidade de formação de talentos segue alta e rendeu ótimas campanhas da seleção nos últimos ciclos.

A resistência ao VAR

O Campeonato Sueco foge de tantas questões que parecem normas no futebol moderno. Por exemplo, para que um jogo tenha sua data alterada em prol do interesse das televisões, é necessária uma antecedência de dois meses na canetada. Também não se veem clubes sustentados por grandes corporações ou por investidores com equipes em múltiplos países. De qualquer maneira, o que mais chama a atenção é mesmo a forma como o VAR ainda não entrou na Suécia. Pode parecer que os escandinavos estão na pré-história por barrarem uma tecnologia que, na maioria das vezes, torna o jogo mais justo. Por lá, todavia, existe a compreensão de que os erros são inerentes e nunca deixarão de acontecer. Preferem privilegiar, então, o que é experiência de estádio – sem as longas interrupções ou a quebra de espontaneidade por aquilo que se vê ao vivo.

A contrariedade ao VAR é uma decisão coletiva. Na votação mais recente para discutir o assunto na liga, 10 das 16 equipes da primeira divisão votaram contra a utilização do árbitro de vídeo. A oposição, em sua maioria, é respaldada por votações internas realizadas dentro dos próprios clubes. No modelo associativo e democrático do “50+1”, quem frequenta as arquibancadas consegue influenciar os rumos daquilo que também experimenta dentro do estádio. E eles entendem que o VAR traz um prejuízo a algo essencial no futebol, a emoção. Da mesma forma, os sistemas de câmeras requerem um investimento alto, que nem todos acham prioritário.

Existe uma pressão para que isso mude, claro. Quem encabeça o movimento em prol do VAR é Fredrik Reinfeldt, eleito recentemente como presidente da federação sueca. Possui um discurso de modernizar o esporte local e chegou a afirmar que “o VAR é o futuro do nosso futebol”. Diante disso, cinco grandes clubes locais se manifestaram em nota oficial contra o avanço da tecnologia. Malmö, Göteborg, AIK, Elfsborg e Norrköping lembraram como a decisão dos associados é soberana dentro da estrutura democrática da Allsvenskan. Entre as 30 ligas mais importantes da Europa, é a única que ainda prescinde da tecnologia.

Presidente da associação de torcedores da Suécia, Isak Eden deu uma visão interessante sobre o assunto à revista SoFoot: “Se seu time marca um gol, você não pode comemorar, os jogadores também não. A questão do VAR evoluiu na Suécia e já não se trata mais do VAR em si. Virou um símbolo do futebol moderno, internacional, megacomercial. Nós não queremos fazer parte disso. A grande questão é: para quem o futebol é feito? Nesta temporada, quebramos o recorde de público da liga. O campeonato está em expansão, mesmo que o futebol continue ruim como sempre. A seleção está em seu pior momento desde os anos 1980, mas as pessoas continuam indo aos estádios para ver nossos times. Acho que uma das principais razões é que sempre sentimos que o futebol, os clubes e tudo mais é feito para nós, os torcedores”.

As pressões que existem

Neste momento, o que talvez seja a grande encruzilhada para o futebol sueco é mesmo a seleção. Os fracassos recentes dos auriazuis refletem sobretudo uma queda de qualidade na formação de jogadores. A atual geração dos escandinavos não conta com grandes talentos, com protagonistas em escassez e outros nomes que não conseguem engrenar. Mesmo figuras mais jovens não parecem suficientes a proporcionar um salto. A queda de desempenho até foi abrupta, depois das campanhas dignas na Copa do Mundo de 2018 e na Eurocopa de 2020. De qualquer maneira, não surpreende a ausência na Copa de 2022 e na Euro 2024. Também não assustará se esse hiato fora das competições internacionais se tornar maior.

E é nestas frestas que os discursos oportunistas se encaixam. Será fácil pregar um movimento de “desenvolvimento” do futebol sueco pautado em modelos externos, que não necessariamente se baseiem no que é construído no esporte local. Muita gente pode dizer que a Allsvenskan está ficando obsoleta sem o VAR, ou então que os times não conseguem formar jogadores sem abrir seu capital. Resta saber o quanto a estrutura democrática da liga conseguirá resistir ao que é interesse dos outros, sem realmente conversar com a realidade dos estádios.

A melhora do futebol sueco dentro de campo passa mais por soluções que entendam a cultura local do que exatamente pelos caminhos encurtados através do dinheiro. Até pelo caráter comunitário dos clubes, existem trabalhos possíveis na formação de jogadores que se aproximem mais da população. Os recursos financeiros podem até ser uma barreira, mas os recursos humanos notadamente são abundantes no futebol sueco. Foi isso que transformou a realidade nos últimos 15 anos e fez o campeonato se tornar mais forte em muita coisa que importa. O futebol do campo se beneficia, de um jeito ou de outro, a partir da mobilização que gera. O único ponto é que os reflexos nem sempre são imediatos. Demandam paciência e convicção, algo que essa reconstrução recente já apresenta.

Foto de Leandro Stein

Leandro Stein

É completamente viciado em futebol, e não só no que acontece no limite das quatro linhas. Sua paixão é justamente sobre como um mero jogo tem tanta capacidade de transformar a sociedade. Formado pela USP, também foi editor do Olheiros e redator da revista Invicto, além de colaborar com diversas revistas. Escreveu na Trivela de abril de 2010 a novembro de 2023.
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