Copa do Mundo

A Copa de 2030 nada mais é que um grande acordo intercontinental, com a Fifa, com tudo

Os brindes aconteceram diante das câmeras e todo mundo parece feliz no esquemão orquestrado pela Fifa, com seis sedes na Copa de 2030 - e uma candidata claramente mais forte para 2034

A Fifa é uma entidade esportiva mais conhecida por suas politicagens do que por seu benefício ao esporte – como acontece com tantas outras confederações internacionais. No entanto, o futebol está na vanguarda em termos de “know-how de mancomunações” e de “inventividade de artimanhas”. Basta ver os torneios cada vez mais inchados e os regulamentos cada vez mais esdrúxulos. E o que aconteceu nesta quarta-feira é histórico, mesmo em termos de Fifa. A Copa de 2030 se transforma num “grande acordo intercontinental, com Supremo, com tudo” para partilhar agrados, manter o poder e fazer o dinheiro jorrar. João Havelange certamente estaria orgulhoso de seus herdeiros. Assim também estaria Sepp Blatter, se não tivesse sido chutado anos atrás e agora tente pagar de bom samaritano.

Foram muitas confirmações de uma só vez. A principal delas é sobre as sedes do Mundial de 2030. A maior parte dos jogos ficará com Espanha, Marrocos e Portugal. De fato, era a candidatura mais forte nos bastidores e a que apresentava as melhores condições para sediar a Copa do Mundo dentro de sete anos. Além das questões estruturais e econômicas, o trio de países tinha consolidada a base política para a votação. Porém, a Fifa deixou de lado o descaramento para fazer um puxadinho e a Conmebol anunciou “três sedes extras”, a fim de celebrar o centenário do Mundial. Argentina, Paraguai e Uruguai serão um anexo no início do torneio, com um jogo para cada na largada do certame. Esmola aos derrotados, e ainda com conotações políticas, sobretudo em relação a argentinos e paraguaios. Com três continentes envolvidos em uma só Copa, o caminho fica aberto para 2034 ser na Ásia ou na Oceania. Se você quiser um investimento mais seguro que a poupança, pode apostar que a Arábia Saudita ganhará essa disputa.

As amarrações anunciadas nesta quarta-feira não são nada além do que um grande reflexo da estrutura política da Fifa. O jogo de poder dentro da entidade quase sempre é feito com distribuição de vagas em Copas do Mundo e com agrados (tantas vezes financeiros) a países dos mais diferentes continentes. Foi assim que Havelange ascendeu ao poder, foi assim que Blatter dominou a entidade por décadas e é assim que Gianni Infantino também se sustenta. O Fifagate pode ter provocado uma limpa, mas definitivamente não mudou processos. As fraudes conhecidas desde antes e só expostas há oito anos, no fim das contas, não encerraram os conluios da entidade – só deram uma roupagem mais limpinha, que nem precisa mais ser feita às escuras.

A Copa do Mundo com 48 seleções já é um retrato enorme de todo o processo político da Fifa, onde o intuito é distribuir benesses para se perpetuar no poder. O Mundial de 2030 em seis países, todos eles com vagas garantidas no torneio, vira mais uma das consequências. As taças de champanhe tilintam em Zurique, Assunção, Madri, Riyadh e onde mais for conveniente.

O papel apequenado da Conmebol

Primeiro, a parte que nos concerne, como sul-americanos: que papel ridículo o feito pela Conmebol nesta quarta-feira. Alejandro Domínguez é bastante conhecido por sua coleção de decisões ridículas, mas desta vez conseguiu se superar. E a questão nem é a realização do início da Copa do Mundo de 2030 na América do Sul, para celebrar o centenário do torneio. É o mínimo que a Fifa poderia fazer e algo até aventado há alguns meses – quando se pensava em realizar o grupo do Uruguai na primeira fase sediado no país. O grande ponto é a maneira como o presidente da Conmebol quis vender isso como uma grande vitória. Na verdade, foi só um prêmio de consolação oferecido pela Fifa. Um souvenir, no meio do acordão intercontinental.

As vitórias da Conmebol são outras nesses caso. Políticas, é óbvio. A entidade se aproximou bastante da Uefa nos últimos anos e consegue uma troca de favores. Além dos míseros três jogos da Copa do Mundo de 2030 que acontecerão aqui, Domínguez ganhou presentes para os seus aliados. O Uruguai, que ofereceu até vacinas da covid para a Conmebol, terá o seu aguardado jogo no Estádio Centenário – o que poderia acontecer de qualquer maneira. A Argentina, que era o carro-chefe como sede na candidatura para 2030, também ganha uma partida e a vaga no Mundial. Chiqui Tapia estava todo sorridente, como foi na conquista da Copa de 2022, mesmo fazendo um trabalho horrível na AFA. Mas nada é mais incrível que a contemplação do Paraguai.

Os argumentos históricos a favor do Paraguai são mínimos. Basicamente não passam do fato de que os paraguaios participaram do Mundial de 1930, como coadjuvantes – uma motivação que também poderia levar partidas também para a Bolívia ou para o Peru, por exemplo. O Paraguai, tudo bem, fazia parte da candidatura original para 2030. Mas e o Chile, que também estava nessa? Acabou chupando o dedo – segundo Alejandro Domínguez, porque a Fifa escolheu apenas três países e não quatro. Talvez tenha feito diferença a sede da Conmebol ser no Paraguai, ou a nacionalidade de Domínguez. Talvez, talvez…

Por questões de infraestrutura, de fato, a candidatura sul-americana para a Copa do Mundo de 2030 não era a favorita. A situação econômica na Argentina, sobretudo, também gerava compreensíveis preocupações, diante da cara brincadeira de “atender o Padrão Fifa” – nós, brasileiros, sabemos bem disso, afinal. Mas uma coisa é encaixar o Uruguai como sede da abertura. Outra é garantir também jogos para Argentina e para Paraguai, assim como vagas automáticas no Mundial de 2030 a ambos os países, sem argumentos realmente sólidos. Acabou sendo uma esmola, dentro da derrota praticamente certa. A Conmebol foi a parte que ganhou migalhas no acordo e ainda tentou pagar de vitoriosa. Enquanto Domínguez estiver bem na fita com seus amiguinhos, tudo certo para ele. Ganhou o que queria: capital político, na América do Sul e na Fifa.

O Mundial do Mediterrâneo

As críticas são necessárias, mas também é preciso dizer que a escolha das “três sedes principais” da Copa do Mundo de 2030 é bastante natural. O Mundial do Mediterrâneo promete ser interessante, em três nações com uma cultura futebolística enraizada e com condições de oferecer um bom torneio. À medida que outras candidaturas saíram de cena, em especial depois que o Reino Unido e a Irlanda preferiram priorizar a Euro 2028, estava claro como a vitória de Espanha, Marrocos e Portugal deveria ser tranquila. Até porque o respaldo nos bastidores da Fifa era enorme, já abarcando os votos europeus e africanos na hora de escolher a sede. Seriam maioria neste cenário, de qualquer maneira.

A Espanha tende a ser a casa principal do Mundial de 2030. Voltará a receber uma Copa depois de 48 anos e possui estádios com estruturas ótimas para a competição. As reformas de Bernabéu e Camp Nou respaldam ainda mais os espanhóis, enquanto a lista de arenas novas é crescente ao redor do país. A realização do Mundial poderá ser inclusive um impulso ao futebol local, num momento em que La Liga se indica mais enfraquecida. Poderá ganhar novos investimentos. E não foram todas as atitudes abjetas de Luis Rubiales após a Copa do Mundo Feminina que atrapalharam os ibéricos. Bastava que o presidente da federação acabasse chutado de lá – a atitude mais correta por tudo o que ele fez nestes últimos meses, aliás.

Portugal complementará a estrutura da Espanha, com mais estádios e boas condições para receber um Mundial inchado de 48 seleções. Será um novo evento internacional para o futebol português, 26 anos depois da Euro 2004. Os lusitanos poderão aprimorar alguns problemas ocorridos na época do torneio continental, como as praças esportivas subutilizadas. De qualquer maneira, possuem também tradição e estruturas favoráveis desde já. Os principais estádios do país não são tão recentes, mas continuam entre os melhores à disposição na Europa – vide a importância que Portugal teve como sede das competições de clubes durante a pandemia. São pelo menos três estádios de primeiríssima linha.

Por fim, Marrocos ganha o seu tão sonhado prêmio. Era o país que mais tentou levar a Copa do Mundo sem nunca ter conseguido. O histórico de frustrações marroquinas, contudo, quase sempre vinha com candidaturas solitárias que não conseguiam bater de frente com outros países mais respaldados – e mais fortes no jogo de bastidores. A união com Espanha e Portugal, além das relações históricas e culturais, também faz sentido do ponto de vista geográfico. E Marrocos tende a ser um baita acréscimo em outros aspectos. Por ser um país extremamente turístico, a infraestrutura não deve ser problema. A monarquia investe em projetos esportivos, de grande evolução nos últimos anos. E a cultura de arquibancada é um plus dentro de tudo isso. Por fim, a Fifa ainda se paga de boazinha com a África, com parte do Mundial de volta ao continente.

A Arábia Saudita sorri

Por fim, o acordo de 2030 repercute também em 2034. A Europa voltará a ter uma Copa do Mundo depois de 12 anos, a África receberá seus jogos depois de 20 anos e a América do Sul terá um aperitivo do Mundial depois de 16 anos. De uma só vez, a Fifa riscou três continentes da rotação sem muito esforço, ainda que as ofertas para sul-americanos e africanos soem parcas. A Concacaf também estaria fora da corrida, pela sede tripla de 2026, em Canadá, Estados Unidos e México. Sobrou Ásia e Oceania. A própria Fifa confirmou nesta quarta que a sede será em federações filiadas à AFC ou à OFC, com a decisão a ser tomada no último trimestre de 2024. Desde já, a Arábia Saudita pode esfregar as mãos.

Neste momento, Austrália e Nova Zelândia até oferecem uma candidatura factível para a Copa do Mundo de 2034. Já demonstraram esse interesse, inclusive. São dois países estruturados, com o esporte arraigado e com amplo histórico na realização de eventos internacionais. Este último ponto, aliás, já pode virar um contra-argumento se a Fifa não quiser levar o Mundial para lá. Ambos já receberam a Copa do Mundo Feminina de 2023. Além do mais, Brisbane será a sede dos Jogos Olímpicos de 2032. E, afinal, australianos e neozelandeses não têm um histórico de se meter nas politicagens da Fifa tanto quanto a concorrência que deve pintar.

Outros países asiáticos também poderiam se colocar na corrida. A China chegou a sinalizar interesse, mas a torneira do país fechou para o futebol e uma mudança de postura parece improvável a esta altura. O próprio distanciamento do “Super Mundial de Clubes” é o indício mais forte, com a edição inaugural do inchado novo torneio marcada para os Estados Unidos em 2025. Nações do Sudeste Asiático também esboçaram uma união, o que já levou uma Copa da Ásia para lá em 2007, mas parece pouco à Copa do Mundo. Ninguém tem o capital, inclusive político, da Arábia Saudita. Todos os caminhos parecem levar o Mundial de 2034 para o país.

Vale lembrar que a Arábia Saudita era candidata a receber o Mundial de 2030. Primeiro namorou com a Itália, antes de embarcar num projeto um tanto quanto desconexo com Grécia e Egito. Saiu de cena, no que parecia mais um favor a parceiros políticos como a Espanha, para “focar num projeto solo em 2034”. Argumentos a favor dos sauditas não faltam: dinheiro, uma liga ascendente com astros renomados, dinheiro, investimento massivo em infraestrutura, dinheiro, força política, dinheiro, peso regional, dinheiro e um pouco mais de dinheiro. Não é o país que vai gastar com pudores na realização de uma Copa do Mundo, como ocorreria com australianos e neozelandeses. Isso significará, por tabela, mais luxo aos dirigentes da Fifa.

Depois do sucesso que foi o Mundial de 2022 no Catar, mesmo com todos os poréns e questionamentos que acabaram abafados, a Arábia Saudita cresceu os olhos sobre o sonho de receber uma Copa do Mundo. Seria o plano perfeito para apresentar a pujança do país em seu intuito de redirecionar a economia – também gerando outras tantas benesses, econômicas e também políticas. A chamada “Visão 2030” conduzida pelo príncipe herdeiro Mohammad bin Salman teria sua cereja do bolo, mesmo sendo só em 2034. Neste sentido, pouco importa a data, e sim a força do maior evento do planeta.

Tudo favorece a Arábia Saudita, especialmente pela onda recente criada pelo futebol local. Pesa demais também a maneira como o país se envolve no apoio à própria Fifa, às confederações continentais e às federações nacionais – com exemplos em Mundiais de Clubes, Superliga Africana, Supercopa da Espanha ou mesmo nos inúmeros amistosos de seleções realizados por lá, como os superclássicos entre Brasil x Argentina. Tudo parece meticulosamente desenhado, e ninguém faz mais questão de fazer isso às escondidas. O Fifagate pode ter exposto inúmeros esquemas fraudulentos na entidade, mas também é possível ganhar dinheiro e força política às claras, ainda se vendendo como grandes benfeitores aos olhos do público. Foi exatamente o que aconteceu nesta quarta.

Foto de Leandro Stein

Leandro Stein

É completamente viciado em futebol, e não só no que acontece no limite das quatro linhas. Sua paixão é justamente sobre como um mero jogo tem tanta capacidade de transformar a sociedade. Formado pela USP, também foi editor do Olheiros e redator da revista Invicto, além de colaborar com diversas revistas. Escreveu na Trivela de abril de 2010 a novembro de 2023.
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