Brasil

João Havelange gostava de poder, não de futebol, e o preço disso foi maior que os ganhos do esporte

Ex-presidente da CBF e da Fifa, Havelange inegavelmente mudou a entidade, para o bem e para o mal, mas sua ambição e sede de poder deixaram consequências que duram até hoje

A relevância de João Havelange para o futebol é inegável. Foram 24 anos à frente da Fifa, logo após passar 16 no comando da antiga Confederação Brasileira de Desportos — que, como o próprio nome diz, cuidava de diferentes modalidades, embora o seu carro-chefe fosse nos gramados. Neste intervalo, o esporte sofreu transformações notáveis, muitas delas benéficas. Mas a que preço? Se o futebol se expandiu em diferentes aspectos sob as rédeas do brasileiro, suas estruturas também foram corroídas na mesma época. Positiva e negativamente, o papel de Havelange para entender todo processo é vital. Figura controversa, faleceu no dia 16 de agosto de 2016, aos 100 anos, e merece ser lembrada muito mais por questionamentos do que por homenagens.

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Havelange foi forjado como dirigente de futebol pelas circunstâncias. Vindo de uma família rica, o desportista de múltiplas virtudes chegou competir por duas vezes nas piscinas dos Jogos Olímpicos, na natação e no pólo aquático. Enquanto isso, formava-se como advogado e estendia os seus braços sobre os negócios, tornando-se diretor de uma viação de ônibus e entrando para o ramo de seu pai, a venda de armas. O homem bem relacionado iniciou seus trabalhos como dirigente quando sequer tinha abandonado as competições. O caminho perfeito para alimentar o seu gosto pelo poder.

Durante as suas décadas como cartola, Havelange seguiu tocando os seus negócios pessoais. Mais do que isso, também transformou as federações em negócios pessoais. Sua passagem pela CBD é marcada por um período conturbado, durante as mudanças políticas vividas no país. Ajudado por tabela pelo talento nos gramados, Havelange se beneficiou do sucesso da seleção brasileira de futebol e tratou de estreitar seus laços com a ditadura militar. O que não impediu que, logo após sua saída, o governo de Geisel fosse informado sobre desvios de dinheiro na entidade desportiva.

As investigações não impediram Havelange de dar seu grande salto rumo à Fifa. O tricampeonato mundial abriu portas, mas o que realmente firmou o brasileiro no poder foi sua visão de fugir do eurocentrismo. A atenção que desprendeu aos demais continentes valeu sua vitória nas urnas em 1974. O novo presidente cumpriu o prometido, aumentando a participação e o investimento no esporte da África, da Ásia, das Américas. Promoveu o futebol de base e o feminino. Porém, também moldou os mecanismos de seus esquemas, com trocas de favores e jogos de poder.

O futebol se solidificou como um grande negócio pelas mãos de Havelange. O marketing ganhou força, com os primeiros grandes contratos comerciais estabelecidos pela Fifa. Dinheiro que não deixou de jorrar, também para os bolsos dos dirigentes. Mesmo politicamente, o presidente da Fifa não se furtava muito sobre quem eram os seus parceiros. Esteve próximo de vários ditadores. Cercou-se de dirigentes que, como ele, sentiam mais gosto pelo dinheiro do que pelo jogo em si.

Ricardo Teixeira ao lado do então sogro João Havelange em 1989

A aposentadoria de Havelange da Fifa veio em 1998. Não sem antes manter as suas raízes fincadas: seguiu próximo da entidade, dirigida pelo escudeiro Joseph Blatter, ao mesmo tempo que já tinha encaminhado na década anterior a eleição do genro Ricardo Teixeira na CBF. Mesmo sem estar na cadeira mais importante, o veterano nunca abandonou o poder. A ponto de, mesmo às vésperas de completar 100 anos, estar envolvido nos casos de corrupção da Fifa. Um dos principais partidários da candidatura olímpica do Rio de Janeiro, viu sua homenagem no Engenhão ser revogada pela ficha suja. Antes disso, em 2011, já havia renunciado a seu cargo no COI por denúncias de suborno.

Ao longo de seu comando na Fifa, Havelange acelerou processos importantes. Tornou o jogo cada vez mais rentável. Expandiu fronteiras. Mas sempre colocando os seus interesses pessoais à frente. Tudo não passava de uma maneira de costurar sua rede de relações. Será que a globalização não faria o esporte caminhar, naturalmente, por estas vias? Será que o futebol não se sustentaria sem precisar vender tanto de sua essência aos interesses comerciais? E se o lado financeiro se perpetuasse da mesma forma, será que os investimentos no desenvolvimento não poderiam ser até maiores? As interrogações pairam. A certeza é que, com Havelange, o comando do esporte mais popular do planeta também se afundou em um mar de corrupção e politicagem. Lama que, no fim das contas, prevalece como o legado mais claro com a assinatura do ex-presidente.

Extra: vale ouvir o podcast “Sequestro da Amarelinha”, produzido pela revista Piauí em parceira com a Swiss Info.

https://open.spotify.com/show/4TFbgz48ULb42PlHTfMwZz?si=ab45e9efd7c14d37
Foto de Leandro Stein

Leandro Stein

É completamente viciado em futebol, e não só no que acontece no limite das quatro linhas. Sua paixão é justamente sobre como um mero jogo tem tanta capacidade de transformar a sociedade. Formado pela USP, também foi editor do Olheiros e redator da revista Invicto, além de colaborar com diversas revistas. Escreveu na Trivela de abril de 2010 a novembro de 2023.
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