Brasil

A origem esquecida de Endrick em Brasília

Muito antes das histórias com São Paulo e Palmeiras: Endrick deu primeiros passos no DF guiado por treinadora que, hoje, carrega mágoa

Um a um, Endrick atende aos inúmeros pedidos de selfies e autógrafos das crianças e adolescentes que se acotovelavam no alambrado do Estádio Bezerrão entre gritos histéricos para tentar um registro com o ídolo.

Enquanto deixava o gramado apenas de shorts após presentear os fãs com seu uniforme, o jovem reencontrava uma versão menino que ele já foi e que deixou de ser muito cedo.

Ali, Endrick estava diante de tantos outros garotos que alimentam o sonho de estar do outro lado daquele alambrado, como um jogador de seleção brasileira. Crianças como Endrick, que sonham em ser Endrick.

Pela primeira vez, o atacante do Real Madrid retorna ao Distrito Federal, sua terra natal, como camisa 9 da Seleção.

A alguns poucos quilômetros de Taguatinga, onde nasceu, o jovem iniciará a partida contra o Peru, nesta terça-feira (15), às 21h45 (horário de Brasília), no Mané Garrincha, no banco de reservas.

Primeira treinadora é “madrinha” de Endrick no futebol

Tudo começou na insistência do pai, Douglas Ramos, para que Endrick entrasse na escolinha Gol de Letra, no distrito do Jardim Céu Azul, um dos mais carentes de Valparaíso de Goiás, cidade a cerca de 40 quilômetros de Brasília.

À época, o menino tinha apenas quatro anos de idade, e a escolinha trabalhava apenas com crianças a partir dos seis anos. Após muito insistir, Douglas conseguiu fazer com que Marília Rocha, uma das responsáveis pela Gol de Letra, desse o braço a torcer.

— De primeiro momento, não quis aceitar, porque não trabalhava com alunos da idade do Endrick. Mas o Douglas insistiu, disse: “se chorar, você tira”. Por eles serem muito humildes, resolvi aceitar — conta Marília, à Trivela.

Foi assim que Marília Ramos virou não apenas a primeira treinadora de Endrick, mas também uma espécie de “madrinha” do garoto no futebol.

Endrick, com Marilia Rocha, sua primeira treinadora
Endrick, com Marilia Rocha, sua primeira treinadora (Foto: Arquivo pessoal)

Sensibilizada com a origem humilde da família Ramos, a dona da escolinha abriu também as portas de sua casa para Endrick. Ele virou uma espécie de irmão mais novo de seu filho, Lucas, que hoje mora com o jogador em Madri.

É Lucas, inclusive, quem está ao lado de Endrick na famosa foto do jogador com a camisa do São Paulo, como mostrou uma reportagem da Trivela.

Lucas, ao lado de Endrick com a camisa do São Paulo (Arquivo pessoal)
Lucas, ao lado de Endrick, com a camisa do São Paulo (Foto: Arquivo pessoal)

Marília conta que ajudava Endrick com materiais esportivos, roupas e até com consultas médicas. O garoto tinha um espaço para ele no guarda-roupas do filho e por muitas vezes passava a noite em sua casa.

— É como se fosse um filho para mim. Tudo o que eu fiz pelo meu filho, eu fiz por ele — Marília Rocha.

Discussão fez Endrick chegar à Brasília

Quando Endrick tinha seis anos, ele já se destacava entre os mais velhos da escolinha Gol de Letra. Por isso, Marília decidiu levá-lo junto com as categorias “de cima” para um jogo contra o Brasília Academia.

A partida, inclusive, acabou em discussão entre ela e Écio Antunes, responsável pelo Brasília, por conta da arbitragem.

Momentos mais tarde, com os ânimos já apaziguados, os dois firmaram uma parceria para que os garotos de maior destaque na Gol de Letra treinassem no Brasília. Entre eles, Endrick, com apenas seis anos.

— Levei para o Brasília. Ele começou a disputar os campeonatos. Ali, ele mostrava que era diferente. Muito acima da média. Sempre treinou com os mais velhos. Era sempre o artilheiro e o melhor. Ali a gente (Marília e o ex-marido, Fábio) começou a ver que ela especial.

— Todo mundo assediava nos lugares em que ele ia. Mas eu não deixava ninguém tomar partido. O pai dele dava esse respaldo, dizia que “o que você falar, está falado”. Até porque o menino ficava comigo e com meu ex-marido — conta Marília.

Écio Antunes guarda na parede fotos de atletas que passaram pelo Brasília Academia
Endrick está eternizado nas paredes de uma sala do Brasília Academia (Foto: Eduardo Deconto)

Como responsável da escolinha, Marília era quem levava os meninos de origem mais carente para os jogos na capital federal. Endrick entre eles.

Ela conta que percorria os quase 40 quilômetros de Valparaíso até Brasília três vezes por semana para que os garotos pudessem atuar no projeto.

— Ela (a Marília) dava todo o apoio, porque eu acho que os pais também não tinham condição de estar levando eles pro treino. Ela estava sempre vindo com eles, o Fábio também. Estavam sempre presentes na vida dele. Criavam como filho. E a gente fez uma parceria. Na época não tinha só o Endrick. O próprio filho dela jogava aqui no Brasil, ela trouxe uns de oito a dez meninos de qualidade — afirma Écio Antunes.

‘Mágoa': primeira treinadora se sente esquecida por Endrick

Em uma postagem de 27 de dezembro de 2017 em sua conta pessoal no Facebook, Douglas Ramos, o pai de Endrick escreveu o seguinte:

— Onde tudo começou, foi essa pessoa da foto que deu asas ao Endrick, obrigado, senhor, por ter colocado ‘vc', Marília, em nossas vidas.

Postagem do pai de Endrick, Douglas, sobre a primeira treinadora do atacante
Postagem do pai de Endrick, Douglas, sobre a primeira treinadora do atacante (Foto: Reprodução)

Hoje, Lucas, filho mais velho de Marília, vive com Endrick na Espanha e é um dos melhores amigos do atacante.

Marília, por sua vez, não tem relação alguma com o jogador que ela garante ter cuidado e ajudado como se fosse um filho quando pequeno.

A gente tem uma mágoa por ajudar e não ser reconhecido. Eu falo de gratidão. Da mãe ligar e agradecer, do Douglas falar: obrigado pelo que você fez. Simplesmente, eles quiseram apagar a gente da história para eles contarem a história da versão deles. Eles contam uma história de que era tudo eles. Começou na escolinha e depois fizeram tudo por ele — Marília Rocha, à Trivela.

Pessoas próximas a Endrick ouvidas pela Trivela dão uma versão diferente sobre a relação entre Marília e o jogador. Afirmam que ela — que recentemente concorreu a vereadora em Valparaíso de Goiás — tem interesse em usar a ligação com o atacante.

O fato é que Endrick e Marília se distanciaram depois que o jogador acertou com seus atuais representantes.

Marília Rocha usando camisa de Endrick em Valparaíso de Goiás
Marília Rocha, então pré-candidata a vereadora, em evento da Secretaria Municipal de Cultura e Esporte de Valparaíso de Goiás (Foto: Divulgação)

Treinador do garoto no Brasília, Écio Antunes também não tem mais contato algum com ele.

O professor atribui o distanciamento aos atuais representantes do jogador. Para ele, resta o orgulho de vê-lo com a camisa do Real Madrid e da seleção brasileira e a “consciência” de que pôde contribuir com ele quando menino.

“Fominha”, Endrick encantava desde os 6 anos

Muito antes do rompimento acontecer, Marília acompanhava de perto o protagonismo de Endrick desde muito pequeno pelo Brasília Academia.

Sob as orientações de Écio , o atacante empilhava gols e ajudava a escolinha a colecionar troféus que o professor guarda até hoje em uma sala repleta de taças e premiações.

— Realmente, o moleque era diferente. Ele sempre jogava duas categorias acima e resolvia. Em toda a competição do Brasília, ele era o artilheiro — conta Écio, treinador da infância de Endrick.

Écio Antunes, com um troféu conquistado por Endrick no Brasília Academia
Écio Antunes, com um troféu conquistado por Endrick no Brasília Academia (Foto: Eduardo Deconto)

O professor lembra com saudosismo do garoto que sempre foi “fominha”. Mais tímido fora de campo, até por ser mais novo, Endrick se transformava quando pisava o gramado.

Pegava a bola para si mesmo entre os mais velhos na hora de cobrar faltas e pênaltis.

Em uma das partidas, o Brasília abriu 5 a 0 em apenas 15 minutos, com quatro gols de Endrick. Écio se viu obrigado a substitui-lo.

— Era uma partida contra o Iate Club, e um amigo meu que jogou na Europa recém tinha chegado. Eu tive que tirar ele, porque ele tinha feito quatro gols. Ele ficou me perturbando para voltar a jogar, mas eu falei que não, vai derrubar meu treinador, meu amigo — se diverte o treinador.

Todo esse destaque fez Endrick entrar na mira do São Paulo, também com ajuda de Marília Rocha. Ela decidiu levar o menino em uma viagem com outros garotos para avaliação no clube.

Mesmo mais novo, o atacante jogou por alguns minutos. Foi suficiente para que o São Paulo o colocasse em seu radar. As viagens à capital paulista era frequentes a cada três meses.

— O Endrick entrou, jogou bem dentro do possível para a idade dele. O Tupã (observador) falou que ele era muito novo e que seria monitorado à distância. Eu disse que era bom para ele ver o que era o futebol, e o Tupã aceitou. Ele continuou sendo monitorado e ia a cada três meses para São Paulo — conta Marília.

Endrick posa para foto com Paulo Miranda, do São Paulo
Ainda menino, Endrick posa para foto com Paulo Miranda, do São Paulo, em uma das idas para a capital paulista (Foto: Arquivo pessoal)

Vídeo chamou atenção do Palmeiras? Não é bem assim

A história consagrada da ida de Endrick para o Palmeiras versa sobre um vídeo que chegou via WhatsApp ao celular do olheiro João Sampaio.

Os lances de um menino de nove anos que entortava zagueiros e fazia golaços na Go Cup, tradicional competição de base, despertou a atenção do observador e foi “evidência” para levá-lo ao Palmeiras.

O vídeo até hoje está disponível no YouTube em uma conta de Douglas, o pai de Endrick.

Mas o relato contado tanto por Écio Antunes, quanto por Marília Rocha é de que o Palmeiras já tinha Endrick em seu radar muito antes do vídeo.

— Ele foi bem na competição, se não me engano fez 16 gols. E foi feito o vídeo, né? Até o pai fala que foi através desse vídeo (que ele foi para o Palmeiras). Não foi. A gente teve conhecimento de que o pessoal do Palmeiras já estava atrás dele antes — explica Écio.

Campo que era utilizado pelo Brasília Academia quando Endrick tinha sete anos
Campo que era utilizado pelo Brasília Academia quando Endrick tinha sete anos (Foto: Eduardo Deconto)

A história a partir daí também é conhecida por todos. O São Paulo monitorava Endrick, mas uma mudança na diretoria afetou também os rumos do interesse do Tricolor.

O clube não quis oferecer um emprego para Douglas Ramos se mudar com o filho para São Paulo. Sinalizou com apenas uma ajuda de custo.

O Palmeiras, por sua vez, apresentou a proposta com uma vaga de trabalho na Academia de Futebol. E Endrick passou a atuar “do outro lado do muro”.

O resto, como sabemos, é história que testemunhamos agora pelo Real Madrid e pela seleção brasileira.

Mas há também questões financeiras que parecem ter ficado mal resolvidas.

Ex-marido de Marília Rocha, o empresário Fábio Rodrigues chegou a firmar um contrato para ter direito a 10% dos direitos de Endrick ao levá-lo ao Palmeiras em uma parceria com o agente Fábio Roca.

Mas o relato é de que esses 10% nunca viraram realidade. Depois, a família do atleta optou por uma nova mudança e fechou com a antiga Traffic, hoje TFM. O próprio Fábio Roca se sente traído por isso.

Edição: João Vítor Castanheira

Foto de Eduardo Deconto

Eduardo DecontoSetorista

Jornalista pela PUCRS, é setorista de Seleção e do São Paulo na Trivela desde 2023. Antes disso, trabalhou por uma década no Grupo RBS. Foi repórter do ge.globo por seis anos e do Esporte da RBS TV, por dois. Não acredite no hype.
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