Alemanha

Flick é demitido pela Alemanha como inegável fracasso, mas o problema vai além

A Alemanha sequer esperou o fim da Data Fifa e, antes do amistoso contra a França, anunciou a demissão de Hansi Flick por causa da surra sofrida no amistoso contra o Japão

A Alemanha não quis nem esperar o final da Data Fifa para realizar uma mudança drástica nos rumos da seleção. Neste domingo, a DFB anunciou que Hansi Flick não é mais o treinador do Nationalelf. Os resultados da equipe nacional foram péssimos nos últimos ciclos e a equipe não apresentava sinais de melhora durante os amistosos recentes – pelo contrário, a piora se tornava cada vez mais evidente. A demissão acontece logo depois da vexatória derrota por 4 a 1 para o Japão, na Volkswagen Arena. Méritos dos nipônicos à parte, os alemães se expuseram bastante e poderiam inclusive ter perdido de mais. As declarações de Flick na coletiva de imprensa foram desconexas com a realidade e o diretor de seleções Rudi Völler apontou que a continuidade do trabalho seria avaliada internamente. Contudo, a federação agiu de maneira imediata por uma cisão. A aproximação da Euro 2024, que será sediada na própria Alemanha, é uma clara razão.

Segundo o comunicado oficial da DFB, neste domingo foi realizada uma reunião extraordinária da diretoria da federação. O presidente da entidade, Bernd Neuendorf, decidiu pela demissão imediata de Hansi Flick, bem como de seus dois assistentes, Marcus Sorg e Danny Röhl. O próximo compromisso da Alemanha acontece já na próxima terça-feira, com um amistoso diante da França em Dortmund. Quem assumirá a equipe interinamente será Völler, o diretor de seleções, retornando ao cargo que ocupou de 2000 a 2004. Seus assistentes serão Hannes Wolf e Sandro Wagner, que atualmente compõem a comissão técnica da seleção sub-20.

Hansi Flick durou apenas 25 partidas à frente da Alemanha, com 12 vitórias, sete empates e seis derrotas. Depois do turbulento fim de ciclo de Joachim Löw, o novo treinador conseguiu bons resultados de início, com uma sequência de oito vitórias. No entanto, o grupo acessível das Eliminatórias para a Copa do Mundo de 2022 mascarou a situação. E o nível caiu demais desde então. O Nationalelf fez uma campanha fraca na Liga das Nações, antes de cair logo na fase de grupos da Copa do Mundo. Desde então, em 2023, a Mannschaft disputou seis amistosos. Ganhou o primeiro do Peru, com quatro derrotas e um penoso empate desde então. Nada tão retumbante quanto os 4 a 1 do Japão.

Nestes jogos mais recentes, viu-se o pior de um time em frangalhos na defesa e inócuo no ataque. Flick, péssimo em sua tomada de decisões e alterações ao longo de toda a passagem, só reiterava isso. Não conseguiu formar um time equilibrado e insistiu inexplicavelmente com diversos jogadores que não rendiam. A equipe carecia de capacidade de execução, floreando demais as jogadas, e de nível de concentração, com erros bobos. Ninguém parecia sentir a real temperatura dos jogos. Eram questões que se evidenciaram na Copa do Mundo e que nos amistosos atingiram um nível deplorável.

A federação de futebol da Alemanha ainda aproveitou uma bem-vinda cortina de fumaça para realizar a demissão neste domingo, auxiliada pelo excelente trabalho da seleção de basquete. O anúncio da DFB aconteceu praticamente no mesmo momento em que nas, quadras, os alemães venceram a Sérvia e conquistaram o título inédito da Copa do Mundo de Basquete. Desta maneira, com o feito esportivo histórico em outra modalidade, as principais manchetes do país não estampam a demissão de Flick – relegada a um destaque secundário. Parece muito mais uma maneira de fugir das responsabilidades do que efetivamente de assumir os problemas. Vale lembrar que, nos últimos dias, o Amazon Prime Vídeo lançou uma série documental sobre os bastidores da Alemanha na Copa do Mundo de 2022. É mais um elemento contrário.

As explicações da DFB

Presidente da DFB, Bernd Neuendorf justificou a decisão: “Os comitês concordaram que a seleção principal masculina precisa de um novo ímpeto depois dos decepcionantes resultados recentes, tendo em vista a Eurocopa no próprio país. É necessário um espírito de otimismo e confiança. Para mim, pessoalmente, essa é uma das mais difíceis decisões do meu mandato, porque gosto de Hansi Flick e seus assistentes, como especialistas em futebol e como pessoas. No entanto, o sucesso esportivo é a principal prioridade da DFB. A decisão era inevitável”.

Rudi Völler também falou em caráter oficial: “Hansi Flick se desgastou nos últimos meses. Ele e sua comissão técnica deram tudo para fazer seus nomes após deixarem o clube. Infelizmente, temos que concluir hoje que o trabalho não foi bem sucedido. O jogo contra o Japão nos mostrou claramente que não podemos fazer qualquer progresso. Não é um momento fácil para mim, porque eu me juntei à DFB em fevereiro para dar apoio a Hansi Flick, com todas as minhas possibilidades para que ele fosse bem sucedido em campo. E eu acreditava firmemente que, como nosso treinador, ele poderia trazer a seleção de volta aos trilhos. Mas, agora, temos que agir com responsabilidade e mudar alguma coisa para podermos desempenhar o papel ambicioso e exigente de anfitriões da Eurocopa. É isso o que os torcedores esperam de nós”.

A passagem de Rudi Völler pelo comando da seleção, entre 2000 e 2004, aconteceu no momento mais desacreditado do Nationalelf até então. A equipe vinha de uma fraca campanha na Euro 2000, eliminada na fase de grupos. Völler teve dificuldades de início, especialmente pelos históricos 5 a 1 da Inglaterra em Munique, que forçou os alemães a disputarem a repescagem nas Eliminatórias para a Copa do Mundo de 2002. No Mundial da Coreia do Sul e do Japão, ao menos, Völler liderou sua equipe limitada rumo à decisão contra o Brasil. Em abril de 2004, Völler chegou a resistir a uma goleada da Romênia por 5 a 1 em amistoso. Todavia, o time de novo foi mal na Eurocopa, com apenas dois pontos e a queda na fase de grupos – com direito a um empate por 0 a 0 contra a Letônia. Völler deixou o cargo depois disso, substituído por Jürgen Klinsmann.

Völler garantiu, todavia, que seu intuito neste novo momento não é continuar no cargo e sim procurar o quanto antes um novo comandante para a seleção: “Por enquanto, estarei no comando da seleção no jogo contra a França, com Hannes Wolf ao meu lado. A tarefa mais urgente será então contratar um novo técnico para a seleção, que realinhe nossa equipe num curto período e a prepare rumo à Eurocopa, que todos esperamos que dê um impulso positivo ao futebol alemão e ao país. Queremos um treinador que eleve o nível da seleção àquilo que todos conhecemos e esperamos a longo prazo”.

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A enorme decepção com Hansi Flick

Hansi Flick, técnico da Alemanha (Icon Sport)

Quando Hansi Flick assumiu a seleção da Alemanha, se sugeria a melhor escolha possível. O treinador não tinha longos trabalhos como treinador principal, mas vinha de uma coleção de títulos com o Bayern de Munique. Sua saída dos bávaros se deu mais por atritos internos do que necessariamente por falta de resultados. E, além da capacidade para gerir o Nationalelf, dado o relacionamento antigo com muitos jogadores, ele ainda trazia grande bagagem nos corredores da própria federação. Flick tinha sido o assistente de Joachim Löw de 2006 a 2014, presente na conquista do tetracampeonato mundial. Depois disso, ainda desempenhou por três anos o cargo de diretor esportivo. Parecia mais do que qualificado para conduzir os alemães.

A transição de Hansi Flick não seria tão simples, depois de 15 anos sob as ordens de Joachim Löw. A seleção da Alemanha tinha um desgaste ao seu redor, pela maneira como o treinador campeão do mundo foi mantido muito além de seu prazo de validade. As campanhas recentes não auxiliavam, com a vergonhosa queda precoce na Copa do Mundo de 2018, além dos vareios na Liga das Nações e da fraca aparição na Euro 2020. Hansi Flick chegava para revigorar a confiança e até conseguiu isso em seu primeiro semestre. A Alemanha não vinha bem nas Eliminatórias da Copa de 2022 e o treinador venceu as últimas sete rodadas, com a fácil classificação. Entretanto, estava numa chave sem grandes desafios que facilitou bastante o serviço.

Os primeiros sinais de problemas se tornaram mais claros na fase de grupos da Liga das Nações 2022/23. A Alemanha estava num grupo difícil, mas acumulou muitos empates e não empolgou. Até goleou a Itália, mas também perdeu em casa para a Hungria. O time continuava sem render bem em desafios mais difíceis. Já outro entrave grande aconteceu na preparação para a Copa do Mundo, quando o time não realizou o melhor planejamento. O único amistoso teve uma vitória sofrida por 1 a 0 sobre Omã. Naquele momento, existiam razões mais do que concretas para desconfiar da campanha no Mundial do Catar. O que se provou em campo.

A campanha da Alemanha na Copa de 2022 foi menos pior do que se viu em 2018. Porém, refletia o acúmulo de problemas e não deixava de representar o nível muito abaixo do que se espera do Nationalelf. A equipe não soube aproveitar seus momentos e ruiu diante da efetividade do Japão na estreia, com uma derrota que se provaria cara demais. Ainda não jogou bem contra a Espanha, mas pelo menos o empate arrancado garantia sobrevida. A única vitória pintou contra a Costa Rica, numa partida agonizante dos alemães, e que mesmo assim não possibilitou a classificação. O filme de terror se repetia novamente. E a autocrítica interna, que faltou na Rússia, enfim apareceu depois da hecatombe no Catar.

Àquela altura, ainda, a DFB parecia não ter motivos suficientes para demitir Hansi Flick. O treinador não conseguiu solucionar os problemas, mas herdava uma carga pesada de seu antecessor e mesmo da má gestão acima do comando técnico. Não à toa, figuras importantes da federação pediram demissão e uma nova administração se iniciou no departamento de seleções. Flick não teria necessariamente calma, mas ganhou um voto de confiança para conduzir o trabalho rumo à Euro 2024. Entretanto, as carências da equipe se tornaram ainda mais graves nos últimos meses. Não havia uma clareza sobre a identidade de jogo, sobre a base titular ou sobre a formação ideal.

A vitória por 2 a 0 sobre o Peru, na Data Fifa de março, foi a única conquistada nesse ano. O time perdeu para a Bélgica dias depois. Já em junho, o caos se evidenciou a partir do empate por 3 a 3 contra a Ucrânia, arrancado na unha, numa partida que deveria ser de festa pelo milésimo compromisso da Alemanha. Os alemães logo perderam para seleções fragilizadas de Polônia e Colômbia, sem nem ver a cor da bola contra os Cafeteros. Mesmo assim, Völler deu publicamente mais uma chance a Flick. O Japão foi exatamente o melhor time que o Nationalelf enfrentou neste ano. Tomou uma sova, com problemas gigantescos na defesa e pouca criatividade no ataque, além das conhecidas dificuldades de Flick em sacodir o time. A derrota por 4 a 1 saiu barata, não fossem as boas defesas de Marc-André ter Stegen e os lances isolados de Leroy Sané no ataque.

Algo que pesou contra Hansi Flick nos últimos meses também foram os seus discursos. Se a DFB teve autocrítica nos meses recentes, ele próprio não teve – porque, mesmo preservado, vinha mal desde antes da Copa do Mundo. O treinador muitas vezes minimizou os problemas para dizer que todos buscavam seu máximo e que havia coisas bem feitas além das derrotas. Entretanto, a falta de resultados pesava contra suas próprias palavras. Para essa Data Fifa, o comandante prometia uma mudança mais profunda em busca da melhora. O que se notou foi uma evidente piora, sobretudo do ponto de vista tático, que expôs a carência técnica. Depois da goleada do Japão, ele ainda veio a público dizer que estavam “tentando de tudo para preparar o time perfeitamente”, além de garantir que as coisas estavam “sendo bem feitas” e que ele era “o técnico certo”. Não foi o que a DFB pensou.

Hansi Flick é o segundo técnico mais breve da história da seleção da Alemanha, que normalmente garante a continuidade de seus comandantes por anos. Com 25 partidas, ele disputou apenas um jogo a mais que Erich Ribbeck, contratado após a Copa do Mundo de 1998 e que pediu demissão após a Euro 2000. Não dá para dizer que as condições de Flick eram as melhores, por todo o histórico que ele acabava assumindo de Joachim Löw. Entretanto, depositaram-se muitas esperanças no comandante e ele passou distante de justificá-las. Teve inclusive certa paciência ao longo dos últimos meses, mas não indicou um caminho e pareceu mais interessado em se defender do que a se comprometer com uma mudança mais profunda.

O sucessor de Hansi Flick

Por enquanto, não há clareza sobre o potencial substituto de Hansi Flick. O nome óbvio no mercado é o de Julian Nagelsmann. O treinador segue sem equipe, após sua contestável saída do Bayern de Munique. Possui a seu favor a relação anterior com muitos jogadores, que não concordaram com sua demissão no clube, e também uma imagem que providencia uma renovação de ares à federação, por ser bastante jovem. Entretanto, não é que ofereça necessariamente uma quebra tão grande assim. De novo, a DFB gira ao redor do Bayern de Munique e pode eleger exatamente quem sucedeu Flick no clube.

Entretanto, são escassas as alternativas à disposição no mercado. Jürgen Klopp é o melhor treinador alemão das últimas décadas e dificilmente abandonaria o Liverpool, mesmo com a chance de trabalhar na Eurocopa dentro de casa. O mesmo vale para Christian Streich, um nome forte dentro da Bundesliga pelos anos excelentes à frente do Freiburg, mas que não parece propenso a largar o barco com a temporada em andamento. Pela facilidade no negócio, o nome de Nagelsmann é uma escolha natural.

A imprensa alemã começa inclusive a aventar a possibilidade de buscar a contratação inédita de um estrangeiro. Segundo o jornal Bild, Louis van Gaal é um dos candidatos, depois de ter feito um trabalho importante de reconstrução no Bayern de Munique há mais de uma década. O holandês não estaria totalmente descartado, mesmo após a teórica aposentadoria ao término da última Copa do Mundo. Tem a seu favor também os bons papéis com a Oranje. Neste sentido, não vai surpreender se algum rumor envolvendo Jupp Heynckes pintar por aí. O veterano produziu o melhor trabalho do futebol alemão neste século, com a Tríplice Coroa do Bayern em 2012/13, mas está a bem mais tempo afastado do ofício, desde sua última passagem à frente dos bávaros.

Uma questão que não se restringe ao treinador

É bom que a Alemanha também tenha claro que seu problema não se restringe a uma mudança de treinador. Por mais que a demissão de Hansi Flick parecesse iminente a essa altura, não é que o técnico deva receber os questionamentos sozinho. Há muito de má gestão e arrogância dentro da própria DFB, que preferia se exaltar a traçar os próximos passos. Isso foi bastante retratado na última Copa do Mundo, ainda mais com a saída de Oliver Bierhoff do cargo de diretor de seleções. E não que a gestão atual faça um trabalho que mereça tantos elogios. Pelo contrário, Völler por tantas vezes pareceu passar a mão na cabeça de Flick e agora resolveu virar as costas ao treinador. O veterano, um personagem querido no país e respaldado também pelo trabalho como dirigente no Bayer Leverkusen, não começa bem neste retorno à DFB.

O elenco demonstra há tempos como não é tão forte quanto a geração que conquistou a Copa do Mundo de 2014. Desde então, a Alemanha sofre com a perda de lideranças e com a saída de jogadores que antes serviam também como referências técnicas nos momentos de dificuldades. Há claras deficiências em diferentes setores, como nas laterais ou mesmo no comando do ataque. Mas não que isso justifique por si os resultados tão ruins. Há uma combinação entre as lacunas no plantel e também a falta de capacidade do treinador para resolvê-las. Nesta goleada contra o Japão, a escolha do criticado Nico Schlotterbeck como lateral se provou desastrosa, assim como a inócua escalação de Kai Havertz, em mau início de temporada, como centroavante. Muitos jogadores foram mimados ao longo dos últimos meses e repetiram a acomodação vista no pós-2014.

Neste momento, há uma grande indagação sobre o estilo de jogo da Alemanha. Virtudes de outros tempos não existem mais – o equilíbrio, a consistência, a agressividade. Há um fio condutor que se perdeu, ainda nos tempos finais de Joachim Löw, e a identidade da equipe nacional não está clara. Flick manteve a ideia de escalar um time bastante leve e com mobilidade, partindo da disposição de jogadores de sucesso com o Bayern de Munique. Entretanto, o que se viu tantas vezes foi uma equipe fragilizada na defesa e ainda sem poder de definição. Não havia senso de urgência nas principais derrotas da Alemanha e a crise de confiança se tornou uma bola de neve. Mesmo soluções simples, como a escalação de Niclas Füllkrug, não foi totalmente abraçada pelo comandante. O centroavante pode não ser um primor, mas era quem garantia o básico sem firulas à equipe. A falta de contundência é talvez o maior problema atual dos germânicos em campo.

Por fim, talvez esse seja o momento de um questionamento até mais profundo sobre o atual estágio do futebol alemão. A Bundesliga passou por uma revolução importante no início do século, respondendo inclusive à crise ocorrida nos tempos de Ribbeck e Völler na seleção. O país ganhou novos estádios com a realização da Copa do Mundo, enquanto mudou suas prioridades na formação de jogadores. Contudo, tal processo parece viver uma estagnação em termos de talentos. E há também um inevitável entrave quando só um clube capitaliza basicamente todas as conquistas na liga local. O futebol alemão permanece com uma atmosfera incrível nas arquibancadas e um alto nível técnico dos jogos. Entretanto, a crise competitiva não é restrita à seleção.

Foto de Leandro Stein

Leandro Stein

É completamente viciado em futebol, e não só no que acontece no limite das quatro linhas. Sua paixão é justamente sobre como um mero jogo tem tanta capacidade de transformar a sociedade. Formado pela USP, também foi editor do Olheiros e redator da revista Invicto, além de colaborar com diversas revistas. Escreveu na Trivela de abril de 2010 a novembro de 2023.
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