Copa do Mundo

A Alemanha de 2022 não é tão vexatória quanto a de 2018, mas precisa da autocrítica que faltou há quatro anos

A Alemanha ainda responde por ecos que se arrastam desde a hecatombe na Rússia e, mais do que uma limpa no elenco ou na comissão técnica, precisa arejar a mente de quem toma as decisões e não acerta a mão faz tempo

A Alemanha assiste a um filme de terror repetido. Com novo roteiro, mas o mesmo final: a eliminação na fase de grupos da Copa do Mundo. Há uma herança maldita que se carrega desde 2018, num legado péssimo deixado por Joachim Löw que ecoa ainda hoje. Porém, já não dá mais para colocar apenas na conta do ex-treinador. A campanha fraca em 2022 reforça como a defasagem é mais ampla, sobretudo de quem manteve o antigo técnico no cargo, varreu os problemas para baixo do tapete e preferiu ares de empáfia desde o tetra mundial. Há uma série de questionamentos necessários para os alemães fazerem – incluindo também a nova comissão técnica e os atuais jogadores. A federação alemã, de qualquer maneira, é quem mais merece ficar em xeque. A falta de autocrítica nos últimos anos custa muito caro à autodenominada “Mannschaft”. O preço é o pior momento da história dos germânicos nos Mundiais, revivido outra vez quatro anos depois.

A campanha de 2022 é ligeiramente melhor que a de 2018, cabe deixar claro. Não apenas pelos quatro pontos conquistados, mas porque a somatória das atuações desastrosas contra México e Coreia do Sul supera o que não deu certo nos três compromissos do Catar. Mas não que esteja bom. Não que seja o suficiente para o que se espera da Alemanha. E a reflexão que inexistiu após a hecatombe na Rússia, com Löw pegando bodes expiatórios no próprio elenco, precisa ser realmente profunda e sincera desta vez. Não para crucificar qualquer nome, mas para saber que tem muita coisa para ser melhorada e trabalhar em cima disso.

A Alemanha não deveria ver um cenário de terra arrasada, necessariamente. Hansi Flick não deveria ser sumariamente demitido por um trabalho que não engrenou. Mas o treinador precisa reconhecer que não foi bem. O equilíbrio tático que se esperava não se notou, num time com buracos. Problemas básicos de treinamento eram evidentes, a exemplo das sempre ineficientes bolas paradas ou mesmo da desconexão entre as peças. Faltou mais consistência a uma equipe com tantas dificuldades para resolver, que se colocava em perigo atrás. E o protecionismo do técnico a alguns nomes específicos também teve seu preço. A insistência com Thomas Müller no posto de centroavante, onde reconhecidamente não rende bem, é o melhor exemplo.

Nos últimos oito anos, pouca coisa realmente relevante aconteceu com a Alemanha. A equipe passou mais pela camisa do que pela bola na Euro 2016. A conquista da Copa das Confederações de 2017 parecia oferecer um frescor, mas a queda seria grande na Copa de 2018. A federação preferiu respaldar Löw em sua perseguição a parte dos veteranos de 2014. Viu um treinador empoderado e sem qualquer acerto no time, que resultou em repetitivas pancadas na Liga das Nações. Assim, o mero ato de passar na fase de grupos da Euro 2020 era aliviante por evitar uma hecatombe. Mas não que o time apresentasse muita bola para ir além.

Hansi Flick chegou para garantir a classificação à Copa, numa campanha que não tinha começado bem. Só que não era o grupo mais desafiador do qualificatório. E as novas dificuldades na Liga das Nações ligavam o sinal de alerta. Na hora em que a Copa do Mundo chegasse, ia pegar no tranco? Não pegou. O Nationalelf continua sem perceber o nível de urgência das ocasiões. Foi o que aconteceu principalmente contra o Japão, e se repetiu em certa medida diante da Costa Rica. A forma como o time por vezes baixa o ritmo, não toma as melhores decisões e não sabe converter o volume de jogo em gols é problemática. Mas piora quando a defesa permanece exposta da mesmíssima maneira ao longo de oito anos.

A Alemanha não soube encontrar sua melhor formação nesta Copa do Mundo. As carências eram sabidas em posições-chave – a falta de um lateral direito, a linha de zaga lenta, a lateral esquerda exposta, a ausência de um camisa 9. O time muito tentou ao longo do Mundial e mesmo assim não achou uma forma minimamente equilibrada. Teve poucos minutos realmente avassaladores, para muitos mais modorrentos ou desesperados. Foi uma equipe que criou muito, isso é inegável, mas não soube transformar isso em vantagem. Além disso, sofreu bastante em cada escapada dos adversários em velocidade.

Os números dizem muito: a Alemanha somou 69 finalizações ao longo da Copa do Mundo, com 24 delas no alvo. Somente seis acabaram nas redes. Keylor Navas e Shuichi Gonda operaram seus milagres, enquanto os centímetros de cinco bolas na trave também atrapalharam, mas a falta de contundência não se pode negar. Já na defesa, com cinco gols sofridos, o time não terminou uma partida sequer sem ser vazado. Os adversários precisaram de apenas 39 finalizações para marcar tanto. A exposição pesou bastante, com Neuer até salvando um bocado apesar das falhas indesculpáveis neste último encontro. Não houve também maior compactação.

A questão para a Alemanha não parece ser necessariamente falta de ideias, mas de capacidade na execução. Às vezes, o time até parece preferir florear demais do que executar. Falta uma concentração maior, um entendimento para tentar fazer lances mais simples, uma percepção da temperatura do jogo. Contra o Japão, os alemães chamaram os adversários para cima e não conseguiram reagir. Contra a Costa Rica aconteceu o mesmo, mas ao menos o amontoado de jogadores ofensivos tinha mais capacidade para virar contra um oponente também mais fraco. Porém, nem de longe as dificuldades nesses 4 a 2 devem ser aliviadas. Era um resultado que deveria ter vindo bem mais fácil, considerando que os alemães finalizaram cinco vezes mais. Abusaram dos erros e sentiram o baque, até os homens do banco entrarem para ajudar.

Falando de nomes, Jamal Musiala sobrou como o melhor jogador do time. Ainda não está realmente pronto e tantas vezes exagerou no individualismo, mas foi quem mais gerou perigo. Pecou na hora de simplificar. Ilkay Gündogan e Joshua Kimmich tiveram bons momentos de maneira mais constante, por isso devem ser citados separadamente. Niclas Füllkrug foi muito competente mesmo com todas as limitações conhecidas e deveria ter ganhado mais minutos em campo, decisivo em metade dos gols produzidos pelo time. Antonio Rüdiger consertou erros dos companheiros, mas também quis enfeitar demais e foi claudicante na despedida. Kai Havertz entrou muito bem contra a Costa Rica, mas não que tenha feito tanto antes, o mesmo para Serge Gnabry. David Raum foi ótimo no ataque e mal na defesa.

De resto, fica difícil ser minimamente elogioso com a Alemanha. E num time que carece de lideranças tantas vezes, talvez tenha chegado o fim da linha a outras duas. Thomas Müller fez a pior de suas quatro Copas, mesmo depois de ser ruim em 2018, e precisava ganhar um chá de banco no Catar. Hansi Flick insistiu no veterano sem razão, vindo de problemas físicos. Já Manuel Neuer alternou milagres com derrapadas. Está na história por sua Copa fantástica em 2014 e por se tornar o goleiro recordista em partidas no Mundial. Mas, aos 36 anos, talvez seja o momento de finalmente abrir espaço a outras opções, pensando em 2026.

Porém, a maior renovação deveria vir em postos acima dos jogadores e também da comissão técnica. A federação alemã parece sentada num trono dourado desde 2014. Merece elogios pelo processo que renovou o elenco a partir de 2006 e aumentou a quantidade de talentos à disposição. Entretanto, o futebol também mudou desde então e isso não parece bastar mais aos alemães. O time tem carências que poderiam ser melhor pensadas nas prioridades de preparação dos jogadores. Que a Alemanha tenha ganhado virtudes, perdeu também características importantes que marcaram o sucesso de seleções mais antigas – a mentalidade, o equilíbrio, a consistência, a agressividade. Não é mais um jogo em que 22 homens entram em campo e a Alemanha vence sempre.

Nessa crise de identidade da Alemanha, os dirigentes se isentaram a todo momento. Pelo contrário, preferiram se concentrar em questões superficiais, como criar novos apelidos à equipe nacional. Houve uma preocupação muito maior em exaltar uma grandeza (que se perdia), além de uma série de conflitos internos. O Nationalelf parou no tempo e degradou seu ambiente. Não há mais a mesma mobilização dos próprios torcedores, com descontentamento por essa soberba. Uma ligação que também acaba se perdendo em campo.

Talvez a limpa mais importante aconteça aí mesmo: na direção da federação alemã. Procurar alguém para pensar novos caminhos, repensar processos e talvez reconectar com algumas características importantes de outros trabalhos. Arejar. O mínimo que o Nationalelf precisa é de uma reflexão para entender que, se a bola deixa de entrar, também não é uma questão de acaso e pode existir uma quebra estrutural importante. Quem está no comando hoje, todavia, se mostrou incapaz de fazer essa autocrítica em outros momentos recentes.

Foto de Leandro Stein

Leandro Stein

É completamente viciado em futebol, e não só no que acontece no limite das quatro linhas. Sua paixão é justamente sobre como um mero jogo tem tanta capacidade de transformar a sociedade. Formado pela USP, também foi editor do Olheiros e redator da revista Invicto, além de colaborar com diversas revistas. Escreveu na Trivela de abril de 2010 a novembro de 2023.
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