[Arquivo Padrim] Como o futebol internacional era transmitido para o Brasil antes das TVs a cabo
No último mês de outubro, lançamos aqui na Trivela o nosso novo projeto de financiamento coletivo, na plataforma Padrim. A ideia é trazermos recursos para, primeiro de tudo, nos mantermos em pé. Mas também queremos fazer mais. Mais matérias especiais, mais vídeos, mais podcasts. Assim, para apresentar um pouco de nossa história e resgatar o tipo de conteúdo que pretendemos privilegiar no site, iremos republicar semanalmente reportagens e outros artigos fundamentais na trajetória da Trivela – seja no site ou na nossa antiga revista.
O conteúdo escolhido para esta quinta foi publicado originalmente em outubro de 2015. Nele, Emmanuel do Valle destrincha a transmissão do futebol internacional na TV brasileira antes da eclosão da TV a cabo no país. Um assunto pertinente, considerando o fatiamento cada vez maior dos campeonatos entre diferentes emissoras e plataformas na atual temporada. Leia e apoie o nosso Padrim:
*****
Por Emmanuel do Valle
Em tempos de cardápio variado de futebol internacional na televisão brasileira nos canais fechados especializados em esportes, sem falar no que rola fora da tela e nas inúmeras opções de streaming pela internet, vale lembrar de um tempo em que esse papel de trazer o jogo de além das fronteiras brasileiras era feito (ou não era feito, em alguns casos) pela TV aberta. Um jogo das Eliminatórias europeias ou uma final da Liga dos Campeões tinha que abrir espaço na grade de programação entre uma atração infantil e uma reprise de novela.
Nos anos 70, por exemplo, mesmo o futebol nacional era mostrado com parcimônia, na maioria das vezes em videotapes no começo da madrugada, horas depois de realizadas as partidas, ou mesmo nas manhãs seguintes. O que vinha de fora então era mais raro ainda de ser exibido, mas nem sempre por empecilhos técnicos. Alguns casos são anedóticos.
Em maio de 1973, época da final da Copa dos Campeões, o jornal O Globo publicou, logo abaixo de sua matéria sobre a decisão, uma nota que hoje parece inacreditável: “Brasil, Colômbia, Peru e México são os países latino-americanos que receberão a imagem da decisão de hoje, em Belgrado, entre Ajax e Juventus. Entretanto, os torcedores brasileiros não assistirão ao jogo, pois nenhuma televisão nacional solicitou à Embratel a transmissão da partida”.
Pois é: para as emissoras daqui, não havia nenhum interesse por parte do público em acompanhar futebol estrangeiro, especialmente onde não houvesse brasileiro em campo – o que era então o caso de praticamente todo o resto do mundo pré-globalização. Se hoje em dia os canais abertos e fechados disputam a tapa os direitos de transmissão dos torneios europeus com propostas fabulosas, houve um tempo em que o sinal esteve disponível sem necessidade de grandes aportes financeiros e foi oferecido para todas as estações, mas nenhuma delas achou que valeria a pena.
A grande explosão da atração pelo futebol internacional no Brasil se dá no começo dos anos 80, num contexto de êxodo em massa de craques daqui, especialmente para os clubes europeus, e que acabou se estendendo não só para a liga italiana – onde a maioria destes astros atuavam – como também para outros campeonatos de clubes e de seleções. O público fazia questão de acompanhar os grandes craques mesmo que eles não desfilassem mais semanalmente em nossos gramados.
Além das transmissões “obrigatórias” de Copas do Mundo, Jogos Olímpicos, Copas América, amistosos da Seleção Brasileira, partidas de clubes brasileiros contra adversários internacionais e da Taça Independência, organizada aqui pela CBD em 1972 e que contou com ampla cobertura televisiva, confira o que mais a TV aberta brasileira e de alcance mais ou menos nacional já mostrou, até o começo da popularização dos canais pagos, em meados dos anos 90.
Eurocopa
O torneio europeu de seleções teve três edições transmitidas (quase sempre) ao vivo pela TV Globo: a de 1980, na Itália, vencida pelos alemães ocidentais; a de 1988, na Alemanha Ocidental, conquistada pela Holanda de Gullit e Van Basten; e a de 1992, na Suécia, quando a Dinamarca surpreendeu e levou a taça.
Na primeira edição, a emissora levou ao ar todos os jogos da Azzurra dona da casa (sendo que a partida contra a Inglaterra foi transmitida em compacto noturno) e três partidas da campeã Alemanha, contra Holanda e Tchecoslováquia na primeira fase e contra a Bélgica na decisão. Os horários variavam entre 12h45 e 15h30 de Brasília.
Em 1988, foram nove os jogos transmitidos, todos eles ao vivo: Alemanha x Itália, Dinamarca x Espanha, Itália x Espanha e Alemanha x Espanha pelo Grupo A; Inglaterra x Irlanda e Irlanda x Holanda pelo Grupo B; mais as duas semifinais (a épica vitória holandesa de virada sobre a Alemanha em Hamburgo e o triunfo de uma forte URSS sobre a Itália), além da grande decisão (que teve narração de Galvão Bueno, veja aqui). Desta vez, as partidas eram exibidas às 10h30 e 15h15 de Brasília.
Na última vez em que transmitiu o torneio, a Globo mostrou apenas seis partidas, sendo quatro pela primeira fase, uma semifinal (a dramática vitória da Dinamarca nos pênaltis sobre a Holanda) e a decisão, com o triunfo dinamarquês sobre a Alemanha.
Em 1996, a Bandeirantes – que já vinha exibindo as Eliminatórias do torneio há alguns anos – assumiu a transmissão exclusiva e quase integral dos jogos da fase final, mostrando o caminho que levou a Alemanha ao tricampeonato em gramados ingleses.
Copas europeias de clubes
Em 1977, no domingo anterior à decisão da Copa dos Campeões entre Liverpool e Borussia Mönchengladbach, o Jornal do Brasil chegou a anunciar que a TV Globo transmitiria a partida ao vivo. Mas na data exata não há sinal de exibição na grade global, nem sequer menção do fato na matéria do jornal O Globo sobre a final.
LEIA MAIS: Esporte Interativo: “Champions só no EI. Não haverá jogos no Space ou na TNT”
Sendo assim, a primazia das transmissões de copas europeias (ou pelo menos de suas decisões) no Brasil cabe, surpreendentemente, a Silvio Santos (!), que, em maio de 1979, exibiu em sua TV Studio (depois TVS, atual SBT), às 19h30 de Brasília e em meio a uma grade preenchida majoritariamente por desenhos animados, o videotape da partida entre Nottingham Forest e Malmö, realizada mais cedo naquele mesmo dia.
Somente em 1984 – um ano inacreditável, para os padrões atuais, da TV Globo em termos de transmissões futebolísticas, como veremos – a emissora do Jardim Botânico enfim transmitiu sua primeira final de Copa dos Campeões, quando mostrou ao vivo, a partir das 15h de Brasília, a derrota nos pênaltis da Roma de Falcão e Cerezo para o Liverpool no campo “neutro” do Estádio Olímpico da capital italiana.
Dez anos depois da desistência global quanto à transmissão de Liverpool x Borussia Mönchengladbach, a nanica emissora carioca TV Copacabana (depois rebatizada TV Corcovado) chegou a anunciar nos jornais que mostraria ao vivo a final daquele ano, entre Porto e Bayern de Munique. Mas também ficou na promessa. A final europeia só voltaria à televisão brasileira no ano seguinte, quando a Globo iniciou uma certa tradição em exibir as finais.
Entre 1988 e 1995, foram vistas ao vivo na tela da emissora carioca todas as finais da Copa dos Campeões do período, mais as decisões da Recopa europeia em 1989, 1991, 1992 e 1993 e os jogos de ida e volta que decidiram o título da Copa da Uefa em 1991, 1992 a 1993.
Eliminatórias da Copa do Mundo
Além dos jogos do Brasil, as emissoras também já mostraram várias partidas de outras seleções válidas pela fase de classificação dos Mundiais. Em fevereiro de 1974, Espanha e Iugoslávia decidiram, com um jogo extra em Frankfurt, a vaga do Grupo 7 europeu, cujo vencedor já estava definido no sorteio como o primeiro adversário do Brasil na fase de grupos da Copa do Mundo da Alemanha Ocidental.
As TVs Globo e Tupi exibiram a partida ao vivo e em cores (a última inclusive reexibiu o jogo em compacto no fim da noite). Para a transmissão, a Globo destacou sua dupla “titular” da época, com os mestres Geraldo José de Almeida (“olha lá, olha lá, olha lá!”) na narração e João Saldanha nos comentários.
Porém, a grande oferta mesmo só veio nas Eliminatórias da Copa de 82. A Globo, já com Luciano do Valle na narração e Ciro José nos comentários, mostrou jogos bem interessantes, como Itália x Dinamarca, Itália x Iugoslávia, Holanda x França, Bélgica x França e URSS x Tchecoslováquia.
EXCLUSIVO: Palomino: “Concorrentes novos inflacionam os direitos de transmissão, mas isso nunca dura muito”
Galvão Bueno, na época narrador da Bandeirantes, comandou a transmissão da emissora paulista para um histórico Peru x Uruguai, quando a equipe treinada pelo brasileiro Tim acabou com as chances da Celeste de ir ao Mundial. Ao lado de Galvão, Márcio Guedes fazia os comentários e José Roberto Tedesco era o repórter de campo.
A curiosidade ficou mais uma vez por conta de Silvio Santos e sua TVS, que transmitiu nada menos que os confrontos entre México, EUA e Canadá pela fase inicial das Eliminatórias da Concacaf, ao vivo, em videotape ou compactos, entre outubro e novembro de 1980.
Amistosos internacionais
Em alguns casos, a cobertura das seleções estrangeiras não ficou restrita às fases eliminatórias e finais dos grandes torneios. Alguns grandes confrontos amistosos entre forças do futebol internacional também deram o ar da graça na telinha por aqui.
Os futuros adversários do Brasil em Copas do Mundo, por exemplo, puderam ser observados várias vezes em seus jogos preparatórios pela Globo (Suécia x Alemanha Oriental em abril de 1978; Escócia contra Espanha e Inglaterra em fevereiro e maio de 1982, respectivamente; Suécia x País de Gales em abril de 1990) e Bandeirantes (Espanha x Polônia com VT completo em março de 1986).
Campeonato Italiano
Para quem se acostumou, a partir do fim dos anos 80, a acompanhar o calcio nas manhãs e tardes de domingo na Bandeirantes, com os comentários de Silvio Lancelotti dentro do Show do Esporte, pode ser surreal imaginar que a TV Globo já transmitiu uma temporada inteira da Série A italiana. Mas realmente aconteceu, e justamente uma das mais espetaculares daquela década, a de 1984-85, que consagrou o Verona como surpreendente campeão.
A emissora carioca transmitiu, sempre nas manhãs de domingo, uma partida de 28 das 30 rodadas da liga da bota – incluindo as três últimas do campeão Verona, contra Como, Atalanta (o jogo do título) e Avellino. As exceções foram o fim de semana de abertura e o dia 21 de abril, quando o horário dos jogos coincidiu com o do GP de Portugal de Fórmula 1 – a primeira vitória de Ayrton Senna na categoria.
E a coisa era feita no capricho: nos domingos em que não havia rodada, devido aos jogos da Azzurra, a Globo levava ao ar o Panorama do Campeonato, um programa curto, de cinco minutos de duração, com um balanço da competição até ali.
Um pouco antes disso, nas últimas rodadas da temporada 1982/83, a Bandeirantes chegou a exibir os jogos da Roma de Falcão, que se sagraria campeã. Na equipe de transmissão, um jovem jornalista chamado Antero Greco fazia sua estreia como comentarista de televisão, ao lado dos já veteranos Edgard de Mello Filho e Pedro Luiz Paoliello.
Campeonato Espanhol
Antes de incorporar definitivamente La Liga às suas tardes, no começo dos anos 90, a Bandeirantes transmitiu, lá em junho de 1983, a decisão da Copa do Rei entre Real Madrid e Barcelona. O Superclássico também foi mostrado ao vivo uma única vez na tela da TV Manchete, em abril de 1989.
Outras ligas
Lembram quando dissemos aí em cima que 1984 foi um ano inacreditável – para os padrões atuais – em termos de transmissões futebolísticas na Globo? Pois bem: além de mostrar pela primeira vez em sua história uma final de Copa dos Campeões e cobrir toda uma temporada do Campeonato Italiano, a emissora carioca exibiu ao vivo, na manhã de sábado, 19 de maio, nada menos que a final da FA Cup, entre Everton e Watford, direto de Wembley. Talvez o principal fator de atração fosse o fato de o então emergente clube londrino ter o astro pop Elton John como presidente.
Além dessa única experiência global, o futebol inglês na TV aberta brasileira também foi mostrado por pouco tempo na Bandeirantes nas noites de sábado e em compactos exibidos pela TV Educativa (TVE) nas noites de domingo, junto com os gols da rodada da Série A italiana. Em ambas as emissoras, durante outubro de 1991 – antes da Premier League, portanto. E pelo visto não teve grande repercussão, já que durou apenas aquele mês. A TVE substituiu a liga da terra da Rainha por VTs de partidas do Campeonato Alemão.
Quem também transmitiu a Bundesliga foi a TV Cultura paulista, com comentários de Gerd Wenzel nas manhãs de domingo, a partir da mesma época até por volta de 1995. A emissora também mostrou em 1993 e 1994 o Campeonato Japonês, passando a bola da J-League para a TV Manchete no ano seguinte. Outra liga europeia que teve esporádicas aparições em canal aberto brasileiro do período foi o Campeonato Português, do qual a Bandeirantes chegou a mostrar alguns jogos aos domingos, dentro do Show do Esporte.
Outros torneios internacionais
Em maio de 1976, a Globo transmitiu o Torneio Bicentenário da Independência dos EUA, que reuniu Brasil, Itália, Inglaterra e um combinado da liga norte-americana (NASL). E não ficou só nos jogos da Seleção Brasileira, à época dirigida por Osvaldo Brandão: exibiu ao vivo e na íntegra os confrontos da Azzurra contra a equipe da NASL e o English Team. Por fim, dez anos depois, a Bandeirantes mostrou ao vivo para todo o país a decisão do Mundial Interclubes (ou Copa Intercontinental, como preferir), entre River Plate e Steaua Bucareste, em Tóquio.