Futebol feminino

‘Brotheragem’ acolhe agressores e perpetua violência contra a mulher no futebol

Não é só culpa do machismo: Caso Rubiales é só a ponta do iceberg de agressões que o ambiente boleiro continua a fomentar

Ser mulher no futebol é uma missão cansativa. Não só pelo machismo, mas por toda a carga que o preconceito traz em sua bagagem. Os traumas surgem dos lugares mais improváveis. Por exemplo, imagine você realizar um feito histórico, como conquistar uma Copa do Mundo, e ser beijada à força no pódio ao invés de receber uma medalha. 

Seria inimaginável para um jogador. Mas sabe por quê? Porque algo tão bizarro só poderia ter acontecido com uma mulher. A Trivela conversou com o professor e pesquisador Maurício Rodrigues, doutorando em Antropologia pela Universidade de São Paulo (USP), que explica a agressão sexual a Jenni Hermoso, da seleção espanhola, é só a ponta do iceberg de violências que o futebol perpetua contra as mulheres.

“Brotheragem” 

O episódio de Jenni Hermoso, que aconteceu em frente às câmeras e com milhões de testemunhas, é só mais um diante dos milhares de casos de assédio, abuso sexual e agressão que permeiam o futebol. Mas todos eles têm algo em comum: um homem que se diz inocente. 

Nem mesmo fotos, vídeos e provas concretas são o suficiente para que o homem se sinta envergonhado e admita um erro. Neste caso, o beijo forçado de Luis Rubiales parecia muito óbvio, mas mesmo assim ele mentiu – e ainda foi aplaudido por isso na sede da RFEF pelo então técnico da seleção, Jorge Vilda. Parece loucura, delírio coletivo, mas um ponto existencial explica muito bem isso: empatia. 

O caso do ex-jogador Robinho, condenado por estupro coletivo na Itália, é um exemplo concreto do quanto a afinidade masculina cria um cenário tóxico para mulheres.

Diego e Robinho, campeões do último Campeonato Brasileiro com mata-mata (Foto: AP)

– Diego Ribas, que hoje é comentarista, sabendo de toda a repercussão do caso do Robinho, ainda assim se permite tirar uma foto com alguém que ele jogou junto, que ele considera um amigo do futebol. Eu acho que isso é bem significativo sobre essa permissividade – disse Maurício Rodrigues.

– Talvez, ele não se veja como um potencial agressor, mas pense que aquilo foi só um deslize… Ou até tente projetar que tal comportamento só aconteceu por conta de condutas da mulher, da pessoa que foi vítima da situação. Isso é muito recorrente em relação a essa normalização da violência de gênero e da cultura do estupro.

Normalização da violência de gênero

No Brasil, uma menina ou mulher é estuprada a cada 10 minutos; três mulheres são vítimas de feminicídio todos os dias; uma travesti ou mulher trans é assassinada a cada dois dias e 26 mulheres sofrem agressão física por hora. Os dados são do relatório do 16º Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2022, realizado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública. 

Um estudo conduzido pela OMS junto à London School of Hygiene and Tropical Medicine e ao Medical Research Council, baseada em dados de 80 países, descobriu que, em todo o mundo, quase um terço (30%) das mulheres que estiveram em um relacionamento sofreram violência física e/ou sexual ou por parte de seu parceiro.

Com todo um contexto histórico e social no plano de fundo, o futebol reproduz com maestria todas as violências que o gênero feminino enfrenta diariamente. 

– É inegável que a gente está falando de um universo que é hegemonicamente masculino. E acho que, talvez, mesmo com o aumento do da prática do futebol por mulheres, ainda é um universo muito masculino, né? Levando isso em conta, é um ambiente menos propenso a ter uma autocrítica e onde há a normalização da violência de gênero – disse 

Impunidade

Outro ponto que chancela o comportamento machista nas entranhas do futebol é a impunidade dentro e fora dele. As denúncias recentes de agressão física contra Antony, realizadas pela ex-namorada do atacante do Manchester United, colocaram mais uma vez os holofotes sobre essa questão. 

Antony foi afastado pelo Manchester United (Icon Sport)

Sendo um jogador da nova geração, de apenas 23 anos, Antony só foi afastado do clube inglês e da Seleção após o vazamento das supostas provas na imprensa. Até que imagens das alegadas agressões fossem divulgadas, as entidades de futebol não demonstravam tanta preocupação com a gravidade das acusações.

– As pessoas fecham os olhos para a situação e continuam tendo o acusado no convívio, porque talvez sintam que não foi tão grave assim. Talvez, tenha aquela coisa “ah, se fosse com minha filha ou alguém da minha família”. Como não é, dentro dessa lógica masculinista, se tem a ideia de transferir a responsabilidade, ou parte dela, a quem está se colocando como vítima, mesmo que tenha sido agredida ou violentada.

Somente após muita pressão, tanto da mídia quanto das redes sociais, Antony foi cortado da convocação brasileira e afastado do United. Um recado agridoce para as mulheres que quebram o ciclo de violência no ambiente boleiro.

Foto de Livia Camillo

Livia Camillo

Livia Camillo é jornalista multimídia e videomaker. Foi colunista de esportes femininos por um ano e meio no Nós, vertical de diversidade do Terra, portal onde também foi repórter de vídeo na editoria de games e eSports. Tem passagem pelo hard news do UOL Esporte e por outras redações de São Paulo.
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