Espanha

Rubiales quis mais confetes, mas enfim deixou o cargo de presidente da federação

Luis Rubiales confirmou sua saída neste domingo, com uma carta e uma entrevista ao jornalista Piers Morgan, mas ainda se faz de vítima do episódio

Luis Rubiales, enfim, entregou seu cargo como presidente da federação espanhola de futebol (RFEF). A decisão acontece somente depois de três longas semanas desde as escandalosas atitudes do dirigente na final da Copa do Mundo Feminina, ao forçar um beijo sem consentimento da meia Jennifer Hermoso e se comportar de maneira deplorável outras tantas vezes. A resistência de Rubiales se arrastou desde agosto, entre acusações mentirosas do cartola e uma tentativa de se fazer de vítima. No entanto, com as sanções realizadas pela Fifa e a investigação aberta pelo Ministério Público, estava claro como a situação era insustentável. E a saída de cena de Rubiales ainda teve confetes. Sua renúncia foi anunciada numa entrevista de duas horas ao jornalista Piers Morgan, bem como numa carta divulgada em suas redes sociais.

A maneira como Rubiales escolheu comunicar sua decisão só reforça o interesse midiático do dirigente em se promover. O cartola sequer optou por uma emissora de seu país, ao conversar com um jornalista britânico bem mais célebre pelo sensacionalismo. Rubiales mais uma vez pôde reforçar sua tentativa de vitimizar-se, como se estivesse sendo caluniado e como se sua conduta fosse plenamente normal. Pelo contrário, o ex-presidente da RFEF continua sem admitir o erro que cometeu e sem pedir desculpas convincentes a Hermoso, inclusive pela pressão que fez contra a jogadora para que mudasse sua versão. Rubiales afirma que houve uma “campanha desmedida”.

É difícil de imaginar que Rubiales volte tão cedo a um cargo diretivo no futebol, pelo menos entre as entidades organizadoras. Diante do cerco, mesmo quem aplaudiu o ex-presidente agora mudou de opinião – a exemplo do técnico da seleção espanhola, Luis de la Fuente, que o apoiou e depois voltou atrás. Dificilmente alguém se aliará a Rubiales com seu filme queimado junto à Fifa e à Uefa. Além do mais, o dirigente da RFEF era inimigo declarado de Javier Tebas, presidente de La Liga – que também possui uma série de indagações sobre seu currículo e suas posturas, mas se fortaleceu no espectro do futebol diante do caso. Rubiales corre o risco de pegar inclusive uma pena de 15 anos junto à Fifa.

Contudo, não surpreenderá se Rubiales tentar se promover politicamente a partir do episódio. O discurso do ex-presidente tem essa característica, em querer criar um cenário de que há um exagero do “falso feminismo”. Na assembleia geral da RFEF, ele atacou publicamente membros do governo. A própria carta de despedida do cartola também traz traços popularescos, agradecendo o apoio das ruas e colocando os interesses do país acima de tudo – no caso, para não atrapalhar a intenção de sediar a Copa do Mundo de 2030. Se o futebol não é mais um caminho para o dirigente, uma candidatura a algum cargo público parece lhe apetecer.

E uma pena que a principal vítima dessa história tenha sido relegada a um segundo plano, diante do maior feito do futebol feminino da Espanha em sua história. Jennifer Hermoso foi gigante na Copa do Mundo e acabou bem mais citada pela maneira como foi usada por Rubiales. O dirigente quis roubar os holofotes com um ato escabroso e, no fim, também atrapalhou as discussões sobre os méritos esportivos da equipe nacional. Que as jogadoras agora possam desfrutar pelo menos de um pouco de tranquilidade, sem mais que a novela se arraste depois que o ex-presidente largou o osso.

As implicações criminais contra Rubiales

A postura de Rubiales teve diversos atos lamentáveis além do beijo sem consentimento. Primeiro, pela pressão que a federação criou sobre Jennifer Hermoso. A entidade publicou declarações em nome da jogadora que foram forjadas e depois a pressionou para que ela apoiasse publicamente Rubiales. A entidade tentou envolver a família da atleta para forçá-la a adotar uma postura favorável ao dirigente diante das câmeras. Depois disso, começou uma campanha de difamação contra Hermoso, como se ela fosse culpada por dar liberdade ao cartola. Inclusive, tentaram desvirtuar imagens e dizer que a futebolista o levantou no pódio de entrega das medalhas – quando o próprio Rubiales pulou em seu colo.

Outro momento abjeto de Rubiales se deu na assembleia geral da federação espanhola. Quando se esperava o pedido de demissão do dirigente, ele quis se fazer de herói e disse que não largaria seu posto. Tal postura contou com o apoio de funcionários, como Jorge Vilda (técnico do time feminino, depois demitido) e Luis de la Fuente (treinador do time masculino). A maneira como Rubiales protegeu Vilda incondicionalmente desde antes da Copa do Mundo, mesmo com denúncias das jogadoras contra sua postura nos corredores da seleção, era bastante questionável. Qualquer tipo de máscara caiu a partir da final da Copa.

A pressão sobre Rubiales começou com a atitude rápida da Fifa para sancionar o dirigente e suspendê-lo provisoriamente. Da mesma maneira, os órgãos reguladores do governo espanhol agiram e pediram uma punição por danos à imagem do país. A queda do presidente também dependeu da atitude de vários clubes e dos dirigentes das associações regionais do futebol espanhol, que passaram a entregar seus cargos enquanto Rubiales não saísse. Já a seleção feminina foi a mais contundente, com o apoio incondicional das jogadoras a Hermoso e a renúncia da comissão técnica – apenas Jorge Vilda não entregou o cargo. Ainda foi importante a manifestação de jogadores e treinadores do futebol masculino, em especial dos antigos campeões mundiais de 2010 e dos capitães do atual elenco da seleção.

Rubiales ainda precisará enfrentar as consequências de seu ato na justiça espanhola. Na última terça-feira, Jennifer Hermoso se apresentou à Promotoria da Audiência Nacional e denunciou o dirigente pelo beijo não consentido. A investigação tinha sido iniciada ainda em agosto, por um possível delito de agressão sexual. Com a denúncia realizada pela atleta, o caminho fica aberto para a Promotoria imputar Rubiales numa via penal. Sem a iniciativa da atleta, o processo não seguiria em frente, já que a lei espanhola determina que delitos de agressão ou abuso sexual sejam denunciados pela vítima ou por seu representante legal. O código penal prevê reclusão de um a quatro anos por qualquer ato contra a liberdade sexual de outra pessoa sem consentimento, mas também pode ser aplicada apenas uma multa.

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A carta assinada por Rubiales

Boa noite.

Hoje transmiti ao presidente em exercício, D. Pedro Rocha, minha renúncia ao cargo de presidente da RFEF. Também informei que fiz o mesmo com meu cargo na Uefa, para que meu posto na vice-presidência possa ser substituído.

Depois da veloz suspensão realizada pela Fifa, além do resto dos procedimentos abertos contra a minha pessoa, é evidente que não poderei voltar ao meu cargo.

Insistir em continuar à espera e agarrar-me a isso não vai contribuir a nada positivo, nem à federação e nem ao futebol espanhol. Entre outras coisas, porque há poderes factícios que impedirão minha volta.

Lá está a gestão da minha equipe e, sobretudo, a felicidade que levo pelo enorme privilégio destes mais de cinco anos à frente da RFEF.

Não quero que o futebol espanhol possa ser prejudicado por toda esta campanha tão desproporcional e, sobretudo, tomo esta decisão depois de ter me assegurado que minha saída contribuirá à estabilidade que vai permitir que tanto a Europa quanto a África sigam unidas no sonho de 2030, que permitirá trazer a nosso país o maior evento do mundo.

Devo olhar adiante, olhar ao futuro. Agora há algo que me ocupa com firmeza. Tenho fé na verdade e vou fazer tudo o que estiver ao meu alcance para que ela prevaleça. Minhas filhas, minha família e minha gente sofreram os efeitos de uma perseguição desmedida, assim como muitas falsidades, mas também é certo que, na rua, cada dia mais, a verdade está se impondo. Desde agora transmito a todos os trabalhadores, assembleístas, federativos e gente do futebol em geral um forte abraço, desejando muita sorte.

Obrigado a todos que me apoiaram nestes momentos.

Foto de Leandro Stein

Leandro Stein

É completamente viciado em futebol, e não só no que acontece no limite das quatro linhas. Sua paixão é justamente sobre como um mero jogo tem tanta capacidade de transformar a sociedade. Formado pela USP, também foi editor do Olheiros e redator da revista Invicto, além de colaborar com diversas revistas. Escreveu na Trivela de abril de 2010 a novembro de 2023.
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