Europa

Como Puskás transformou um clube de bairro em um dos maiores esquadrões da história

O Kispest surgiu em 1909, como uma equipe modesta. O clube foi fundado por um professor para fomentar a prática de esportes e representar a vila de mesmo nome, nos arredores de Budapest – seria incorporada como distrito da capital apenas em 1950. Durante suas primeiras décadas de existência, o time acostumou-se com o mero papel de figurante. Chegou a ser vice do Campeonato Húngaro em 1919/20, além de faturar a Copa da Hungria em 1926. No entanto, eram apenas glórias esparsas, em meio a um mar de mediocridade. A transformação de um dos maiores esquadrões da história dependeria de um nome. Ou melhor, de um sobrenome: Puskás. O pai e o filho. Os responsáveis por dar o primeiro impulso aos rubro-negros, antes de formarem seu elenco mais célebre.

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O ano de 1927 é decisivo para o Kispest. Não apenas pela chegada de Ferenc Purczeld, centro-médio de 24 anos que defendia antes o Vasas, da capital. Mas também pelo nascimento do filho do novo contratado. Em 3 de abril, veio ao mundo seu primogênito, batizado de Ferenc Purczeld, como o pai. E o menino cresceria totalmente ambientado ao clube. A casa pequenina na qual moravam ficava ao lado do estádio. A cozinha tinha uma janela com vista ao campo.

Como atleta, o Ferenc pai viveria temporadas relativamente bem-sucedidas com os rubro-negros. Até a primeira metade da década de 1930, em quatro temporadas, a equipe terminou o Campeonato Húngaro entre o quinto e o sexto lugar – já grandes feitos para o seu padrão. Além disso, o meio-campista Rezső Somlai foi convocado à Copa de 1934. Apesar disso, precisava conciliar a carreira com outros “empregos comuns”, para garantir o sustento de sua família. Chegou a trabalhar na companhia ferroviária e também em um matadouro.

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Enquanto isso, o pequeno Ferenc crescia. Com dez meses já chutava a primeira bola. Aos três anos, acompanhava as partidas. Roubava as meias da mãe para fazer bolas e gastava as solas dos sapatos no campinho de areia ao de casa. Durante a infância, limpou as chuteiras dos jogadores e o campo no clube onde o pai trabalhava, chegando até mesmo a ajudar na reconstrução do estádio, após um incêndio. “Uma de minhas lembranças mais antigas é o clamor dos torcedores que entrava pela janela da nossa cozinha em dias de jogo. Eu ficava fascinado”, contou, no livro ‘Puskás, uma lenda do futebol’.

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Purczeld seguiu atuando até 1936, aos 33 anos. Nesta época, adotou o sobrenome que se tornou célebre em todo o mundo: descendente de alemães, temendo as associações com o regime nazista que se estabelecia, optou por transformar o Purczeld em Puskás, uma adaptação ao idioma magiar. E, ao pendurar as chuteiras, não abandonou o clube. Pelo contrário, seguiu como um dos mais fiéis funcionários. Em 1937, assumiu o posto de técnico dos quatro elencos mantidos pelo Kispest, do infantil ao principal. Ano também decisivo para a carreira de seu filho, seguindo os seus passos.

Muitos poderiam achar que o pequeno Ferenc tinha as costas quentes. Contudo, sua chegada ao clube aconteceu por debaixo dos panos. O garoto estava brincando de bola na rua, quando um funcionário do Kispest foi observar o jogo. O olheiro gostou de Jozsef Bozsik, vizinho e amigo inseparável de Puskás – os dois costumavam combinar as peladas com simples batidas na parede que separava suas casas. Ao ver o parceiro escolhido, Puskás falou: “E eu? Jozsef e eu sempre jogamos juntos e fazemos muitos gols”. O suficiente para amolecer o observador. O problema é que Ferenc tinha dois anos a menos do que o mínimo para jogar no infantil. E o prodígio falsificou os documentos, rebatizado como Ferenc Kovacs. Um delito que era sabido pelos adversários, mas que não precisou durar muito tempo.

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Ao mesmo tempo, o Puskás pai elevava o desempenho do Kispest no nível principal. Em suas duas primeiras temporadas à frente do time, os rubro-negros terminaram na quarta colocação do Campeonato Húngaro, a melhor classificação em quase duas décadas. Mas as expectativas cresciam mesmo para o futuro, olhando a reputação que os garotos construíam na base. Os prodígios arrasavam nos campeonatos nacionais e traziam ótimas perspectivas ao clube modesto.

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No fim das contas, a Segunda Guerra Mundial acelerou a eclosão de Puskás, Bozsik e companhia. Aliada dos nazistas, a Hungria sofria com os bombardeios em seu território e ia convocando toda a população masculina para lutar no front russo. O Campeonato Húngaro de 1943/44 foi o último completado antes do fim da guerra, em 1945. Também marcou a estreia dos dois pratas da casa. Ambos menores de idade, não podiam servir as forças armadas. “Em certo sentido, o futebol protegeu-me da guerra. Eu estava tão absorvido pelo jogo que esquecia o que estava acontecendo ao redor”, afirmou Puskás, tempos depois. Nesta época, contudo, o velho já não estava mais à frente do Kispest, deixando o comando do time principal em 1942.

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Ao término do conflito armado, o treinador foi recontratado. Pai e filho começaram a trabalhar juntos, em parceria que renderia muitos frutos aos rubro-negros. A partir de 1945, o Kispest se estabeleceu entre os quatro primeiros colocados do Campeonato Húngaro. E possuía todo um clima familiar para se impulsionar, reforçando os seus laços com a comunidade. O futebol era uma válvula de escape durante os anos de reconstrução de Budapeste, bombardeada durante a guerra. Assim, os próprios moradores locais garantiam a manutenção do clube: o alfaiate dava os uniformes, o dono do restaurante oferecia o almoço, o açougueiro contribuía com as carnes.

“O publico do Kispest podia não ser enorme, mas os que compareciam eram muito entusiasmados. Eles tinham uma verdadeira afeição pelo time, não deixavam de apoiar nem quando estávamos perdendo. Era também um público com grande conhecimento de futebol, que sabia apreciar boas jogadas”, dizia o craque. Entretanto, a realidade provinciana do Kispest não duraria muito tempo. A equipe começou a ganhar destaque no resto da Europa, a partir de suas excursões. Puskás recebeu uma proposta da Juventus quando tinha 20 anos, enquanto queriam levar Bozsik para a França. Os dois preferiram continuar na Hungria, próximos de suas famílias, e por isso ganharam um emprego numa loja de ferragens para complementar o salário. Já em 1946/47, os rubro-negros chegaram ao vice-campeonato nacional, atrás apenas do poderoso Újpesti. Sucesso possibilitado pelo trabalho empreendido por pai e filho, que tratavam o clube como a própria casa.

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Em 1949, por fim, o Kispest perderia o seu caráter local e viraria uma potência. Diante da instauração do regime comunista, a agremiação foi incorporada pelo sistema. Assim como acontecera na União Soviética, os times acabaram apadrinhados por órgãos públicos. E o Kispest se transformou em Honvéd, ‘os defensores da pátria’, controlado pelo exército. As Forças Armadas chegaram a cogitar a adoção do Ferencváros, de longe o clube mais popular do país, mas as suas raízes fascistas e ligadas ao velho nacionalismo fizeram com que os militares desistissem da ideia. Embora menor, o Kispesti tinha suas raízes fincadas nas camadas populares. Conseguir a adesão do povo em pouco tempo, ainda mais com o talento de Puskás e Bozsik, não seria problema.

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A partir de então, o resto é história. Juntos, os Puskás conquistaram os dois primeiros títulos nacionais do Honvéd em 1950, quando o elenco passava a incorporar outros craques – por vezes arbitrariamente, é verdade. O pai deixaria o clube em 1951, um ano antes de sua morte. Não viu o filho se consagrar como o ‘Major Galopante', também principal expoente da seleção. Tomando por base o time do exército e o MTK, os Mágicos Magiares eternizaram sua lenda como uma das melhores seleções de todos os tempos, independentemente da derrota para a Alemanha Ocidental na final da Copa de 1954. Já o Honvéd acumulou seis taças em oito possíveis. Sustentou o rótulo de melhor clube do planeta, em época na qual não existiam competições que pudessem confirmar tal fama, provocou o desmanche do elenco após a visita ao Brasil.

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Sem Puskás, o Honvéd só voltou ao topo do Campeonato Húngaro a partir de 1980. Foram mais oito títulos nacionais até 1993, em geração encabeçada por Lajos Détári. O velho craque, todavia, só acompanharia o sucesso de longe. Proibido de retornar ao país até 1981, tratado pelo regime comunista como um pária por sua fuga, o mito passou a morar outra vez em Budapeste a partir de 1993. Naquele mesmo ano, foi o convidado especial na reinauguração do Estádio Molineux, em amistoso entre Wolverhampton e Honvéd. Depois disso, não faltaram oportunidades para homenageá-lo. Em 2000, o clube aposentou a camisa 10. Já em 2006, foram muitas as honras na ocasião de sua morte.

Neste final de semana, em jogo pelo Campeonato Húngaro, o Honvéd demonstrou mais uma vez que preserva a memória de seu ídolo. Os torcedores produziram um belíssimo mosaico na vitória por 2 a 1 sobre o rival Ferencváros, que manteve os rubro-negros na briga pelo título que não vem há mais de duas décadas. Levaram cartazes com o rosto do veterano e acenderam os sinalizadores como se fossem velas, para celebrar os 90 anos do nascimento de Puskás. De fato, eles têm muito a agradecer ao homem que mudou os rumos de seu clube.

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Foto de Leandro Stein

Leandro Stein

É completamente viciado em futebol, e não só no que acontece no limite das quatro linhas. Sua paixão é justamente sobre como um mero jogo tem tanta capacidade de transformar a sociedade. Formado pela USP, também foi editor do Olheiros e redator da revista Invicto, além de colaborar com diversas revistas. Escreveu na Trivela de abril de 2010 a novembro de 2023.
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