Espanha

Hermoso fala pela 1ª vez após beijo forçado e mostra o porquê de ser a cara da revolução na Espanha

Em sua primeira entrevista após beijo forçado de Rubiales, Jenni Hermoso rebateu polêmicas da mídia espanhola e deixou claro que suas reivindicações são pelo mínimo

Mais de dois meses depois da cerimônia de premiação da Copa do Mundo Feminina que aumentou exponencialmente os holofotes da mídia sobre sua pessoa e a transformou em um símbolo feminista, Jenni Hermoso concedeu sua primeira entrevista após o assédio que sofreu por Luis Rubiales, ex-presidente da Real Federação Espanhola de Futebol. A campeã mundial com a Espanha não falou sobre o dirigente contra quem abriu um processo judicial no mês passado e que foi banido por três anos pela Fifa, ou mesmo sobre o beijo forçado em si, mas deu uma aula aos que ainda tentam invalidar as reivindicações da seleção espanhola feminina e mostrou que a luta por igualdade e por respeito no ambiente de trabalho não poderia estar melhor representada.

Eleita a “Mulher GQ do Ano”, Hermoso concedeu uma longa e valiosa entrevista à revista GQ. A atacante falou sobre tudo que tem enfrentado desde o escândalo, o apoio que recebeu de familiares, jogadores e diferentes celebridades ao redor do mundo, a importância do acompanhamento psicológico, a volta à seleção espanhola e, claro, sobre a luta por igualdade no futebol feminino. Com uma consciência gigantesca sobre o papel que assumiu em causas do tipo, a camisa 10 da Espanha deu declarações tão boas quanto seu futebol.

O período após o escândalo do beijo forçado

O primeiro tópico abordado na entrevista é como a vida de Jenni Hermoso mudou após o beijo forçado de Luis Rubiales na cerimônia de premiação da Copa do Mundo Feminina. A atacante não escondeu que ser o centro das atenções da mídia não foi nada fácil, mas destacou a importância do apoio psicológico para não querer parar de jogar futebol.

— Sim (muita coisa mudou), e não precisamos ir muito longe. Há três meses eu nem era campeã mundial, que é o máximo que poderia aspirar, e certamente não poderia imaginar estar no centro das atenções. Tenho muitas discussões com um amigo porque não acredito em destino. Para mim, são coisas que acontecem com você porque você trabalhou para elas. Não sei se a vida me reservou isso ou não, mas me fez ver tudo de uma forma diferente e perceber que embora tenha chegado ao topo na minha carreira esportiva, há muito mais. Tenho que estabelecer novas metas para me aprimorar novamente — afirmou.

— Estas semanas foram muito difíceis. Também ter que contar isso repetidamente estava me machucando muito. Mas eu sei que tive que deixar isso passar de alguma forma. Continuo trabalhando nisso com a ajuda da minha psicóloga, que me acompanha há muitos anos. Para mim a saúde mental é tão importante quanto o treino diário, como as horas que tenho que dormir para poder ir ao campo. Graças à ela me sinto forte e não fico arrasada nem pensando em não querer mais jogar futebol, não perdi meu entusiasmo — completou a campeã mundial.

Rubiales surpreende Jennifer Hermoso com um beijo no pódio de premiação da Copa do Mundo, enquanto a meia fica sem reação (Foto: Reprodução/Sportv)

Jenni Hermoso foi alvo de ataques e ameaças nas redes sociais. Os debates em torno das reivindicações por igualdade e da luta contra o machismo da seleção espanhola feminina foram muitas vezes cruéis, com personagens importantes da mídia espanhola diminuindo o movimento e afirmando que as jogadoras visavam apenas atenção ou queriam receber salários astronômicos como os principais atletas masculinos da modalidade. Felizmente, ela chutou para longe essas declarações ao dizer com perfeição o que deseja: o mínimo.

— Com tudo o que aconteceu, acho que muitas de nós estamos mais conscientes do que a palavra ‘feminismo' realmente significa, incluindo muitos amigos e familiares. Nós, no futebol, vivemos em primeira mão a luta pela igualdade. Nos chamaram de caprichosas. Sempre se disse que queríamos ganhar o mesmo que os meninos e isso não era verdade. Fico muito irritada quando dizem que o futebol feminino não gera tanto quanto o futebol masculino. Obviamente sabemos disso e nunca pedimos para sermos pagas como eles. Queríamos simplesmente o mais básico: ter um salário mínimo, ser respeitadas e ter a oportunidade de fazer algo muito grande. Assim que conseguimos, ganhamos um campeonato mundial — declarou.

— Acho que é por isso que tanta comoção foi gerada e, especificamente, tantos danos foram causados ​​a mim. Tive que assumir as consequências de um ato que não provoquei, que não escolhi nem premeditei. Recebi ameaças e isso é algo a que nunca nos habituamos. Entendo que cada um pensa como pensa e também adoraria poder focar apenas no meu esporte, mas quando você vê situações injustas, tem que estar de um lado ou de outro. As pessoas vão me odiar ou me amar, mas tenho a minha maneira de pensar e não me importo de dizer isso abertamente: não sei se o apoio deles teria facilitado tudo, mas certamente teria nos ajudado muito — complementou Hermoso, que virou um símbolo da luta feminista com o surgimento do movimento #SeAcabó nas redes sociais.

Volta à seleção da Espanha após beijo forçado

A primeira convocação da seleção espanhola feminina após a conquista da Copa do Mundo na Nova Zelândia e Austrália foi repleta de polêmicas. Depois de manifestarem publicamente sua recusa à equipe nacional após o caso Rubiales, jogadoras foram convocadas pela nova técnica Montse Tomé e obrigadas a se apresentarem sob muito constrangimento e vários holofotes. A treinadora deixou Jenni Hermoso fora da lista sob a justificativa de que queria “protegê-la”.

No mês passado, por outro lado, a camisa 10 voltou à seleção. A entrevista à GQ foi concedida justamente um dia depois do retorno, que obviamente foi um assunto abordado por ela.

— Ontem foi um dia bem difícil, eu estava voltando depois de tudo que aconteceu. Também não tinha visto minhas companheiras, nem vestido a roupa do time, nem a camisa com a estrela. Saí de casa tranquila, depois tive algumas crises, mas no geral procuro ser feliz. Para uma jogadora de futebol, não há nada mais bonito do que poder jogar pelo seu país. Sempre gostei de estar na seleção, representando o meu país, mas houve algo que nunca me deixou aproveitar plenamente e se isso não tivesse acontecido, tudo teria permanecido igual — relatou.

Jenni Hermoso ficou no banco diante da Itália no último dia 27, pela terceira rodada da fase de grupos da Liga das Nações, mas entrou no segundo tempo e marcou o gol da vitória da Espanha por 1 a 0. Dias depois, ela foi titular na goleada por 7 a 1 sobre a Suíça, pela mesma competição.

Em seu retorno à seleção espanhola, Jenni Hermoso marcou o gol da vitória por 1 a 0 sobre a Itália (Foto: Icon sport)

Apoio da família foi essencial para Hermoso

O apoio da família também foi importante para Jenni Hermoso, especialmente o de familiares masculinos. Ela revelou que teve avô como principal referência futebolística e destacou o papel do irmão, que entendeu a causa mesmo sendo homem, durante todo o escândalo.

— Na minha família, ele era o único jogador de futebol. Meu pai assiste muito futebol, mas não é profissional. Meu irmão não gosta nada, ele é mais um cara de academia. Nem minha irmã (gosta de futebol). O gene vem do meu avô. Ele tem sido minha referência no esporte, mas também na vida. Em geral, os homens da minha família são muito importantes para mim. Eles sempre me apoiaram para que eu pudesse ser jogadora de futebol — pontuou.

— Ele (irmão) me viu ser campeão mundial e, sem comer nem beber, acabou envolvido nessa história porque estava lá, viveu tudo comigo. Meu irmão está sendo muito importante nesse processo, porque além de tudo que implica ter o apoio dele, ele me dá uma visão masculina com os meus mesmos valores. Ele é minha família, mas também um homem que apoia a causa. Para mim, há muito valor em ter essa mentalidade — disse.

Outras causas que Hermoso abraça

Mas não é só a bandeira do feminismo que Hermoso quer levantar. Durante a entrevista, a atacante falou sobre a importância da comunidade LGBQIAP+ deixar de ser um tabu dentro do esporte, lembrando o caso da companheira de seleção Irene Paredes, abertamente homossexual e campeã mundial neste ano.

— Ver Irene (Paredes) com o filho e a esposa em uma Copa do Mundo é um exemplo para as mulheres do grupo. E essa é também a mensagem que queremos passar, principalmente para quem tem dificuldade em assumir ser de determinada forma caso se machuque. Há muitas pessoas que podem criticar, mas há muitas mais que se identificam nestas ações e isso ajuda-nos muito a continuar assim — destacou.

O tema é muito mais discutido e falado no futebol feminino do que no masculino. Para Jenni Hermoso, isso é decorrência da falta de referências masculinas abertamente homossexuais e do estereótipo do jogador de futebol.

— Acho que se deve ao estereótipo de um jogador de futebol ao longo da vida. O pai de família, aquele que tem namorada. O jogador que pensa em se assumir carece de referências e acredita que isso prejudicará sua carreira esportiva porque a sociedade ainda não é tão inclusiva. Por outro lado, as mulheres têm tido uma mentalidade muito diferente em relação a isto. Eles viram que era absolutamente normal. Agradeço a quem começou neste esporte, que criou essa visão para todos que vieram depois e eliminou qualquer barreira — afirmou.

Carreira e futuro de Hermoso

Por fim, Jenni Hermoso falou sobre as mudanças de mentalidade que foi tendo durante sua carreira, que já está na reta final. A jogadora de 33 anos iniciou a carreira no Atlético de Madrid, passou por Rayo Vallecano, Tyreso (Suécia), Barcelona, Paris Saint-Germain e hoje atua pelo Pachuca, do México.

— Quando fui para a Suécia encontrei algo totalmente diferente do que havia vivido na Espanha. As jogadoras de futebol eram tratadas como uma profissional deveria ser, o nível de treinamento era mais exigente. Lá vi que o futebol também era um modo de vida para nós. Na França, acima de tudo, o contraste foi econômico. Nos últimos anos que passei no Barça as coisas mudaram. Senti que poderia ter um futuro como profissional. Para as novas gerações de jogadoras existe um horizonte muito promissor. Isso me pega agora aos 33 anos e vejo um final muito positivo para a minha carreira, e isso é graças à luta de quem antes abriu o caminho para nós. Obviamente que haverá muito poucos privilegiados que se permitirão viver do futebol quando se aposentarem, ainda há um longo caminho a percorrer — disse.

Ao ser perguntada sobre como deseja ser lembrada, Hermoso foi fantástica mais uma vez. Ela sabe que o episódio com Rubiales não deveria ter ocorrido ou que as coisas que teve que passar não deveriam fazer parte da vida de uma jogadora de futebol, mas sabe que suas vivências e experiências certamente contribuirão para mudar mentalidades e iniciar uma nova era no futebol feminino.

— Como uma pessoa que quis sair de Espanha no topo, mas, sobretudo, como alguém que tentou mudar muitas mentalidades. Felizmente ou infelizmente existe essa história (do assédio de Rubiales), mas vou aprender a aproveitá-la positivamente para lutar pelo que acredito ser bom para a sociedade. O movimento #SeAcabó deve trazer uma nova era. Nestes meses, com tudo o que aconteceu, minha mente se afastou um pouco do futebol. Às vezes eu não lembrava que era jogadora de futebol. Mas volto a treinar, ao campo, a vestir o uniforme, e quero voltar a dar a minha melhor versão. Na corrida para os Jogos Olímpicos, na minha equipe mo México, na seleção nacional. Vou continuar gostando desse esporte — concluiu.

Foto de Felipe Novis

Felipe NovisRedator

Felipe Novis nasceu em São Paulo (SP) e cursa jornalismo na Faculdade Cásper Líbero. Antes de escrever para a Trivela, passou pela Gazeta Esportiva.
Botão Voltar ao topo