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[Arquivo Padrim] A Rua Javari abraçou o Haiti: Como a Copinha retratou a esperança dos imigrantes em SP

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O texto escolhido para esta quinta foi publicado originalmente no site, em janeiro de 2016. Fala sobre a participação dos Pérolas Negras na Copa São Paulo, a maneira como a Rua Javari abraçou os visitantes ilustres e, principalmente, a importância do futebol na integração de imigrantes / refugiados do Haiti que vivem em São Paulo. Como o texto é de quase três anos atrás, é possível que algumas informações estejam desatualizadas. Leia e apoie o nosso Padrim:

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A Rua Javari abraçou o Haiti: Como a Copinha retratou a esperança dos imigrantes em SP

Por Leandro Stein

A saída do metrô e as ruas da Mooca não indicavam nada de diferente na primeira quinta-feira do ano. A pressa do dia a dia se repetia nos passos apertados de cada pedestre. Mas, a cada quarteirão em que a Rua Javari se aproximava, dava para sentir a atmosfera bem mais calorosa na já quente tarde de verão. O Estádio Conde Rodolfo Crespi, mais uma vez, serviu de refúgio à desgastante intensidade de São Paulo. Os gritos se ouviam nas redondezas. Pouco importava se a capital seguia a sua rotina em horário de expediente. Centenas de pessoas viviam um dia de domingo nas arquibancadas cheias – e, melhor, com entradas gratuitas.

Refúgio. Talvez não haja palavra mais cheia de significado para descrever o que aconteceu na Javari. Afinal, a casa do Juventus já serve a cada semana como refúgio a um futebol que não se vive muito mais na capital paulista. Futebol torcido no alambrado e no cimento, e não sentado nas cadeiras de plástico das arenas. Apaixonado pela identidade de sua região. Apegado às tradições. Por tudo isso, o estádio que remete a outros tempos e a outra cidade serviu de abrigo perfeito ao Pérolas Negras – ou o Perles Noires, como é chamado em seu país. O clube haitiano que disputou a Copa São Paulo de Futebol Júnior foi acolhido na Javari. Da mesma maneira como os imigrantes do país caribenho acabaram abraçados pela torcida grená e quem mais apareceu nas arquibancadas.

Em novembro, o governo brasileiro autorizou a permanência de 43,7 mil haitianos que vivem no Brasil. Milhares deles, em São Paulo, cidade que chegou a receber por dia três ônibus cheios de imigrantes. Diante da situação preocupante, diversos projetos sociais passaram a ser desenvolvidos junto à comunidade. No entanto, episódios de xenofobia também ganharam as manchetes. No bairro do Glicério, onde a Paróquia Nossa Senhora da Paz desenvolve a chamada Missão Paz, seis haitianos foram baleados em agosto. O atirador teria gritado contra os “empregos roubados” antes de cometer o crime.

A Javari, por sua vez, integrou os haitianos durante os três jogos do Pérolas Negras na Copinha. Nada mais natural, em um bairro e em um clube construídos por imigrantes, que também sofreram suas doses de intolerância na chegada ao país. Caracterizada por sua ideologia além do que acontece dentro de campo, a torcida juventina emprestou a sua voz aos convidados ilustres. Nesta quinta, não mais do que 30 haitianos estiveram presentes no estádio para ver o duelo com o São Caetano, na despedida de seu time do torneio, já eliminado. Chegaram aos poucos e tiveram o apoio da maioria dos presentes.

Ainda no começo do jogo, os haitianos começavam a se somar na Javari
Ainda no começo do jogo, os haitianos começavam a se somar na Javari (Foto: Leandro Stein)

Os haitianos foram ao estádio reunidos em pequenos grupos. Eles se faziam perceptíveis pelas conversas em crioulo ou francês, bem como pelo negro intenso de suas peles – símbolo de um país cuja população de afrodescendentes supera os 95{a12cf170529acbd7b36c6d9566dcea6b97d0f72dc979800f5851fcdd34e7d94a}, e também uma lembrança de seu maior orgulho nacional. Antiga colônia escravagista francesa, o território se tornou livre graças à rebelião de cativos liderada por Toussaint Louverture, o primeiro general negro do exército francês, influenciado pelos ideais iluministas. Após o momento histórico em 1804, o Haiti se transformou no segundo país independente das Américas, depois apenas dos Estados Unidos. Mas, ao longo dos últimos dois séculos, a nação sofreu com outros domínios e tiranias. A ponto de se tornar o país mais miserável do continente, com milhares de imigrantes fugindo da calamidade – especialmente após o terremoto de 2010, que deixou mais de 160 mil mortos. Muitos rumaram ao Brasil, destino ideal não somente pela representatividade econômica, mas também por adotar a política de não deportar quem chegasse.

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Uma das rotas mais comuns de entrada no Brasil passa pelo Equador, cruzando a fronteira do Peru com o Acre. O caminho percorrido por Bertrand Charles, que está há três anos no Brasil. Professor de francês em sua terra-natal, atualmente faz instalações elétricas. “Não tive muitas oportunidades de dar aulas no Brasil, mas fico feliz porque estou trabalhando. Às vezes eu encontro amigos brasileiros e dou cursos particulares de francês”, afirmou, com a satisfação de quem consegue tocar a vida dignamente no novo país. O professor era um dos mais empolgados entre os seus conterrâneos na Javari.

Os haitianos formaram um grupo mais numeroso com o passar do primeiro tempo. Mesmo sendo dona da casa naquele momento, a torcida do Pérolas Negras se reuniu no lado das arquibancadas de menor apelo aos juventinos. Tornou-se o seu próprio lugar no estádio. Sob o sol forte das 14 horas, os imigrantes tiveram a companhia dos brasileiros – estudantes, aposentados, missionários. Os gritos de allez ganhavam sotaque em português. Juntos, cantavam uma música crioulo dizendo que o “Haiti pertence ao Senhor Jesus”, graças a um folheto que facilitava a leitura mesmo a quem não domina a língua.

“Fui duas vezes para o Haiti e nós sabemos o quanto este povo precisa de esperança. Então nos organizamos para vir aqui e dizer que eles não estão sozinhos, que nós oramos e nos preocupamos com eles. É um povo que foi explorado desde sua independência, que não tem perspectivas”, afirmou João Batista Junior, membro de uma comunidade evangélica de Barueri que ajudou a liderar a torcida do Pérolas Negras com cânticos e faixas – incluindo uma bandeira do país, sobre a frase ‘Deus abençoe o Haiti’. Através da ONG Conexão Voluntários em Campo, o grupo organiza ações humanitárias na ilha, levando médicos, enfermeiros, dentistas e pastores à comunidade carente.

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Mas não era apenas a religiosidade que tomava conta da torcida do Pérolas Negras. O tão tradicional clima festivo dos jogos da Copinha se somava à vontade de ver a alegria dos forasteiros. A solidariedade também vinha na forma de zoeira, com gritos dos brasileiros contra adversários e árbitros. Desta vez, não se repetiram os protestos contra a presença de tropas militares brasileiras no Haiti, que marcaram a estreia do Pérolas Negras – em episódio que teve até mesmo uma faixa de apoio de torcedores juventinos barrada pela Polícia Militar.

Para os haitianos, o valor de participar de uma competição no Brasil é imenso. Remete à fascinação que os jogadores brasileiros exercem sobre a população do país, ampliada principalmente depois da visita humanitária da Seleção para um amistoso na ilha, em 2004. “É uma alegria muito forte ver o Pérolas Negras disputando uma Copa São Paulo. Eu agradeço ao povo brasileiro por tudo o que fez anteriormente e por aquilo que continua a fazer por nós. O Brasil ajuda muito o Haiti, inclusive o futebol. Nossos jogadores estão entrando nos países, algo que eu nunca vi antes”, afirmou o servente Gabriel Elie, que abandonou seus compromissos para estar presente junto com a sua comunidade. Pouco lhe importava a eliminação do time ou o calor escaldante, diante da representatividade do momento. “Deixei de trabalhar para ver o jogo, porque eu amo o futebol. É ver o meu país, a minha bandeira, todo mundo junto. Os brasileiros aqui no sol, também, ajudando o nosso time. Como haitiano, eu tenho essa coragem”.

A participação da torcida dos Pérolas Negras foi mais intensa no primeiro tempo, quando o duelo seguia empatado. Se os berros em francês e crioulo por vezes se intercalavam com momentos de silêncio, um haitiano não se conteve. O homem se juntou a outros brasileiros grudados no alambrado. Baixo, não mais de 1,70 m, o rapaz tinha até pinta de empresário de jogador: camisa polo, brinco prateado, óculos escuros na testa. Tentava orientar, em crioulo, os atletas do Pérolas Negras. A cada lance errado, se exaltava. Mas era apenas mais um torcedor dominado pelo espírito fervoroso do fanatismo. Quando o São Caetano abriu o placar, já nos minutos finais da etapa inicial, ele voltou resignado para as arquibancadas. Passou a falar em alto e bom som com outros amigos haitianos, no que parecia ser uma crítica à postura do time. E não queria conversar com mais ninguém.

Haitianos se abrigam na sombra atrás de um dos gols
Haitianos se abrigam na sombra atrás de um dos gols (Foto: Leandro Stein)

Diante do sol que castigava as cabeças, os haitianos se reuniram durante o intervalo na sombra que fazia ao lado do placar manual. Por lá ficaram, sem o mesmo ânimo, para o segundo tempo. “Cadê os nossos irmãos haitianos?”, perguntou um brasileiro. Ainda assim, menos numeroso, o grupo na lateral do campo voltou a se reunir e a cantar. Se as circunstâncias do jogo não ajudavam, com o São Caetano ampliando a vantagem para 2 a 0, a torcida do Pérolas Negras encontrava a sua brecha para festejar. Os toques de bola se encadeavam sob os gritos de olé. E um belo drible na lateral do campo causou furor, quase tão explosivo quanto um gol. Ainda assim, derrotados por 2 a 0, faltou o tento dos haitianos, como já haviam feito nas duas primeiras partidas. “Pô, queria ver a festa em um gol deles”, falou um menino juventino, ao amigo. Não só você, meu caro, não só você.

Ao final da partida, os jogadores do Pérolas Negras saudaram os dois setores nas laterais do campo. Foram correspondidos por aplausos agradecidos de sua torcida. “Quando os brasileiros falam ‘é nóis’, é um sentimento que eles têm com os haitianos. Sabem que somos um país muito sofrido, isso aumenta a sensibilidade. A paciência que os brasileiros têm com a gente é incrível. É uma coisa assustadora. Ver eles torcendo por nosso time é uma emoção. Eu não consigo nem explicar o tanto de emoção que eu senti dentro do estádio”, complementa o servente Gabriel. O espaço que os haitianos receberam no futebol não deixa de refletir as esperanças de sua comunidade no Brasil. O respeito que todos os imigrantes almejam e que, no caso do clube, começa desde a ajuda ao próprio Haiti.

Criado pela ONG Viva Rio, a academia do Pérolas Negras em Porto Príncipe garante, além dos treinamentos, também estudo e moradia para os seus atletas. O projeto começou a ser desenvolvido em 2008, mas só foi iniciado três anos depois, atrasado pelo terremoto de 2010. Hoje, atende 110 jovens de 12 a 20 anos. A Copa SP recebeu aqueles que vivem os seus últimos dias no projeto. Apesar das três derrotas, o time fez um bom papel no torneio, oferecendo resistência a adversários tradicionais. Ainda que a capacidade tática e técnica não fosse tão grande, os jogadores demonstraram o seu potencial – como o camisa 7 Camille Dany, destaque contra o São Caetano. O esforço de muitos que vieram ao Brasil sob a expectativa de ganhar vaga em algum clube profissional daqui.

A gratidão dos jogadores do Pérolas Negras (Foto: Vitor Madeira | Viva Rio)
A gratidão dos jogadores do Pérolas Negras (Foto: Vitor Madeira | Viva Rio)

“A vinda do Pérolas Negras ao Brasil representa um pouco dessa chance que temos de viver bem em outro país. Eu vim ao Brasil para trabalhar e para estudar, porque meu país não tem condições verdadeiramente boas para viver com minha família. É o mesmo que sonham esses jogadores”, analisou Wendy Josef, ajudante geral que veio ao Brasil há um ano. O futebol, no fim das contas, se tornou um recorte da realidade vivida pelos haitianos. A oportunidade de viver bem, que todos esperam quando cruzam a fronteira.

Com as arquibancadas cada vez mais ocupadas pela torcida grená, poucos imigrantes permaneceram para ver o jogo principal da tarde, o embate entre Juventus e América Mineiro. Mesmo assim, uma breve cena evidenciou ainda mais o magnetismo que o futebol brasileiro exerce sobre os haitianos. Uma aglomeração se formou na saída principal da Javari. As pessoas se amontoavam para ver um sósia de Pelé, destes que sempre aparecem em programas de auditório, gravando uma reportagem para a TV. Ao ouvirem os gritos de “Pelé, Pelé”, dois haitianos saíram em disparada, alucinados. A dupla se embrenhou em meio à organizada do São Caetano para tirar fotos com o Rei fajuto – talvez sem saber ao certo o grau de veracidade da situação. Depois, com a bola já rolando, se juntaram às centenas nas arquibancadas para assistir à partida. Mais dois torcedores que desapareceram em meio aos juventinos.

A cena simples acaba tendo um significado bem mais profundo. Sobre a vontade do haitiano em ser mais um ao Brasil. De poder se integrar ao resto da população, e não ser visto como um intruso. “Mesmo que o time esteja eliminado, eu estou muito feliz. Os jogos ajudaram a nossa relação, um monte de brasileiros nos apoiou e nos aplaudiu. Isso é muito mais importante para mim do que a classificação. Eu vou mais longe, na situação a parte do futebol, entre brasileiros e haitianos. Não é algo simples. Mas eu tenho que ver além, pensar na relação entre nós e os brasileiros. Tudo isso foi muito legal”, concluiu o professor Bertrand, com um sorriso expresso no rosto. Uma alegria contagiante que, por si, já faz a participação do Pérolas Negras valer.

(Foto: Vitor Madeira | Viva Rio)
(Foto: Vitor Madeira | Viva Rio)
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