Leste Europeu

O Honvéd, clube lendário de Puskás, sofreu o segundo rebaixamento de sua história no Campeonato Húngaro

O Honvéd tinha sido campeão nacional há seis anos e levou a copa há três anos, mas despencou nas últimas temporadas, mesmo com a inauguração de seu novo estádio

O Honvéd é um sinônimo da grandeza do futebol húngaro. O clube nutriu o talento de Ferenc Puskás desde a infância e revelou o craque para o mundo. A partir do Major Galopante, a agremiação acabaria apadrinhada pelo exército e se tornaria uma das bases da seleção que assombrou o mundo nos anos 1950. Depois disso, os Leões tiveram outro período dourado nos anos 1980, até que perdessem fôlego e sofressem seu primeiro rebaixamento em 2003. Após o retorno imediato, os rubro-negros se recuperaram na última década, a ponto de encerrarem um jejum de 24 anos no Campeonato Húngaro e de conquistarem a Copa da Hungria na primeira final realizada na novíssima Puskás Arena. Contudo, a amargura é mais comum que as glórias. Neste final de semana, depois de 19 anos consecutivos na elite nacional, o Honvéd voltou a ser rebaixado à segundona húngara.

O Honvéd possui uma história única no futebol europeu. O clube surgiu em 1909, como Kispest, fundado nos arredores de Budapeste por um professor que queria fomentar a prática de esportes na localidade. A equipe chegou à elite do Campeonato Húngaro menos de uma década depois, mas era um time modesto, com no máximo um vice da liga e um título da Copa da Hungria em 1926. A mudança das perspectivas aconteceu mesmo a partir de 1927, quando o Kispest contratou Ferenc Purczeld, centro-médio de 24 anos vindo do Vasas. Naquele mesmo ano, também nascia o filho que seguiu seus passos: Ferenc Puskás – cujo sobrenome Purczeld, de origem alemã, seria adaptado para a língua húngara como forma de se distanciar da ascensão nazista.

Os Puskás moravam numa casa cuja a janela da cozinha tinha vista para o estádio do Kispest. O pai se tornou um dos principais jogadores do clube. Enquanto isso, o filho frequentava as arquibancadas e até limpava as chuteiras dos jogadores. Mesmo com a aposentadoria do centro-médio, a família seguiu ligada ao Kispest. Ferenc Purczeld virou treinador do time principal e da base, enquanto Puskás ingressou na equipe infantil ao lado do vizinho e amigo József Bozsik. Já sem o velho Purczeld no comando, os dois garotos pintaram no time de cima na primeira metade da década de 1940 – quando, por serem menores de idade, se safaram de ir para o front na Segunda Guerra Mundial. O Kispest começava a viver seu auge.

Puskás e Bozsik estavam entre os craques do Campeonato Húngaro na segunda metade dos anos 1940, quando o Kispest passou a flertar com o título. Ainda tinham que trabalhar numa loja de ferragens para se sustentar enquanto iniciavam a carreira, mas faziam estrago em campo. Já em 1949, com a instauração do regime comunista, o Kispest passou a ser controlado pelo exército e ganhou o nome de Honvéd. Viraria de vez uma potência, com as adições de outros jogadores “convocados” às forças armadas e o retorno do velho Purczeld ao comando. Puskás se transformou em Major Galopante e os rubro-negros conquistaram o Campeonato Húngaro pela primeira vez em 1950. Foram cinco títulos em oito possíveis, até 1955.

O elenco do Honvéd se desmanchou em 1956, quando vários dos craques da seleção deixaram o país na esteira da Revolução Húngara – incluindo Ferenc Puskás, Sándor Kocsis e Zoltán Czibor. Os Leões ainda preservaram alguns craques, entre eles Bozsik, mas iniciaram um período de seca. De 1957 a 1979, o time amargou sete vices e nenhum título, por mais que continuassem na primeira divisão do Campeonato Húngaro. O fim da espera só aconteceu em 1980. A partir de então, o Honvéd faturou oito títulos em 14 edições da liga nacional até 1993. Tempos em que Lájos Detari surgiu como nova liderança dos rubro-negros rumo à glória, enquanto o técnico Lájos Tichy era o laço com o esquadrão de outrora.

Com a queda do comunismo e o fim do apadrinhamento do exército, o rebatizado Kispest-Honvéd passou a lidar com uma grave crise financeira e despencou na tabela do Campeonato Húngaro. O rebaixamento parecia se aproximar, até que aconteceu em 2002/03. Depois de 87 anos na primeira divisão, os Leões deixariam de figurar na elite nacional. A agremiação passou por um processo de liquidação e precisou ser refundada, mas conseguiu contornar os problemas. Chamado novamente de Honvéd, o time manteve sua licença na segunda divisão e buscou o acesso de imediato em 2003/04. Desde então, os rubro-negros se mantinham na primeira prateleira do Campeonato Húngaro, embora tantas vezes como figurantes. Tinham sua reconstrução financiada por George F. Hemingway, um empresário nascido na Hungria e radicado nos Estados Unidos que passou a investir no clube.

Alguns sucessos voltaram a acontecer nesse período. O Honvéd encerrou um jejum de 11 anos sem títulos nacionais ao conquistar a Copa da Hungria de 2006/07. A taça foi recuperada novamente em 2008/09, quando se comemorava o centenário do clube. Outro momento especial aconteceu em 2016/17, com a volta ao topo do Campeonato Húngaro de maneira surpreendente. Os Leões botavam fim à seca de 24 anos, numa temporada em que se celebrou os 90 anos de nascimento do ídolo Puskás. E outro simbolismo imenso ocorreu em 2019/20, quando os rubro-negros levaram a Copa da Hungria naquela que foi a primeira decisão realizada na recém-inaugurada Puskás Arena. O clube parecia fazer questão de se manter atrelado à imagem de sua lenda.

Depois do título da liga em 2017, o Honvéd ainda se manteve entre os cinco primeiros do Campeonato Húngaro nas três edições seguintes. Parecia um momento promissor ao clube, que inaugurou um moderno centro de treinamentos e iniciou a reconstrução da Bozsik Arena, seu novo estádio, com apoio do governo. Porém, George Hemingway vendeu suas ações em 2019 para um grupo de empresários húngaros e os novos donos perderam o fio da meada. O Honvéd apareceu em décimo ao final da campanha de 2020/21, quando passou algumas rodadas na zona de rebaixamento e terminou somente quatro pontos acima do Z-2. Já em 2021/22, nem a inauguração da Bozsik Arena auxiliou. Uma reta final ruim de temporada deixou os rubro-negros em nono, dois pontos acima do Z-2. Eram sinais mais do que preocupantes sobre a decadência, que se confirmou com o descenso em 2022/23.

A goleada do Fehérvár por 4 a 0 na segunda rodada e a derrota por 3 a 1 para o rival Ferencváros já mostravam como seria uma temporada difícil para o Honvéd. Com vitórias pontuais, o time ainda passou a maior parte do primeiro turno fora do Z-2. Porém, as pancadas se tornaram mais frequentes a partir de novembro e nem mesmo a pausa para a Copa do Mundo auxiliou a equipe a entrar nos trilhos. Durante o segundo e o terceiro turno, raros foram os respiros do Honvéd fora da zona de rebaixamento. Até houve uma esperança no início de maio, quando uma série de dois empates e uma vitória tiraram os rubro-negros do Z-2. Entretanto, a derrota no confronto direto com o Mezökövesd na penúltima rodada recolocou os Leões na penúltima colocação.

Durante a rodada final, o Honvéd precisava vencer e torcer por pelo menos um empate do igualmente ameaçado Fehérvár no jogo paralelo. Os concorrentes tropeçaram, mas os Leões não fizeram a sua parte e caíram. O mais irônico é que o rebaixamento aconteceu diante da Puskás Akadémia, com a derrota por 2 a 1 na Pancho Aréna – estádio que leva o apelido do Major Galopante. Luciano Slagveer abriu o placar para os anfitriões aos 42 do segundo tempo e o Honvéd até empatou com Donát Zsótér aos 44, mas Artem Favorov decretou o descenso aos 49. Os rubro-negros reclamaram bastante de um pênalti negligenciado a seu favor, por toque de mão. A Puskás Akadémia, ligada ao primeiro ministro Viktor Orbán, lutava por vaga nas copas europeias durante a rodada final – e não conseguiu a classificação.

O detalhe é que o Honvéd não foi o único clube histórico da Hungria a ser rebaixado nesta temporada. Quem também caiu foi o Vasas, dono de seis títulos nacionais e potência do país nos anos 1960. Os rebaixamentos do clube, entretanto, foram mais frequentes nas últimas décadas – é a quarta vez que os rubroazuis caem desde 2002. Por outro lado, um dos times que sobem é o MTK Budapeste. Os celestes eram a outra base da seleção nos anos 1950 e donos da segunda maior marca de títulos nacionais, com 23 taças, só abaixo do Ferencváros. A equipe sofreu quatro rebaixamentos desde 2011, sempre com o acesso imediato.

O Honvéd possui elementos mais que suficientes para conquistar a promoção em pouco tempo. Possui uma boa estrutura, ganhou um estádio novíssimo e também conta com pessoas atreladas ao jogo de poder na Hungria. Porém, num campeonato em que vários clubes são apadrinhados políticos, os rubro-negros não conseguiram se afirmar em campo. O rebaixamento não deixa de ser um marco negativo, até porque as condições atuais são muito melhores do que duas décadas atrás. Entretanto, apesar desses sucessos pontuais, é um clube distante de seus tempos gloriosos. A imagem de Puskás se torna menor quanto tanta gente no país tenta se aproveitar dela.

Foto de Leandro Stein

Leandro Stein

É completamente viciado em futebol, e não só no que acontece no limite das quatro linhas. Sua paixão é justamente sobre como um mero jogo tem tanta capacidade de transformar a sociedade. Formado pela USP, também foi editor do Olheiros e redator da revista Invicto, além de colaborar com diversas revistas. Escreveu na Trivela de abril de 2010 a novembro de 2023.
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