Leste Europeu

Na Bulgária, a liga começou com o duelo entre CSKA 1948 e CSKA Sofia, dois times que brigam pela mesma história

A temporada 2019/20 ainda não se encerrou na Europa, com a realização das fases finais das competições continentais. Ainda assim, muitos países iniciaram seus campeonatos nacionais de 2020/21 durante os últimos dias. São algumas ligas que optaram por terminar a campanha anterior prematuramente, mas também outras tantas que se aproveitam de um calendário mais enxuto ou podem se reorganizar melhor por causa da pausa de inverno. E entre os jogos que já acontecem pelos estádios europeus, o mais interessante neste final de semana ficou para o Campeonato Búlgaro. Foi um clássico diferente: o CSKA Sofia enfrentou o CSKA 1948. Dois clubes que disputam a mesma tradição, mas que dentro de campo ficaram no empate por 2 a 2.

O atual CSKA Sofia é o clube que carrega os direitos do antigo CSKA Sofia em relação ao passado. Fundado em 1948, o CSKA original virou uma força durante os tempos de comunismo por sua relação com o exército e seguiu mandando no país mesmo depois da queda do regime. São 31 títulos do Campeonato Búlgaro em sua galeria, ainda o maior campeão do país, além de duas campanhas até as semifinais da antiga Copa dos Campeões da Europa. Os problemas, entretanto, se agravaram ao longo dos últimos anos e explicam tal cisão.

O CSKA Sofia original conquistou o Campeonato Búlgaro pela última vez em 2007/08. Naquele momento, a crise já se deflagrava nos bastidores e os débitos impediram que o time disputasse a Champions League. O clube havia passado os anos anteriores ligado a empresários obscuros, acusados de relação com o crime organizado e lavagem de dinheiro. Também se discutia a própria perda da licença na liga nacional por conta dos débitos, o que levava ao risco do CSKA ser rebaixado às divisões amadoras. Vários jogadores partiram em meio ao caos, mas a situação se amainou e a diretoria conseguiu manter o status na primeira divisão, até descolando classificações à Liga Europa depois disso. Mas não significava uma reconstrução total.

As expectativas de recuperar o CSKA Sofia aumentaram em 2014, quando o clube entrou na bolsa de valores da Bulgária. Meses depois, a saída do presidente e mudanças na gestão geraram temores quanto ao futuro da agremiação. Os débitos eram enormes e os investimentos se faziam necessários. O que não aconteceu. Ao final da temporada 2014/15, por conta das dívidas, a federação búlgara retirou a licença do CSKA. O time precisaria se reconstruir a partir da terceira divisão nacional.

Em 2015/16, os alvirrubros disputaram a terceirona e foram campeões. Contudo, não foi isso que aliviou a situação financeira. A agremiação entrou em processo de administração externa e, com os donos declarando-se incapazes de saldarem as dívidas, a falência ocorreu em 2016. Os símbolos do CSKA Sofia passaram a pertencer ao estado e o clube estava oficialmente morto. Ainda assim, os dirigentes tomaram um atalho à elite.

A manobra do CSKA seria comandada pelo empresário Grisha Ganchev, que se tornou o novo dono do clube de Sofia em junho de 2015. O magnata é ligado ao setor automotivo e petrolífero, embora igualmente acusado de atividades ilícitas. Ele já tinha uma ampla experiência em investir no esporte, inclusive no futebol: a partir de 1996, comprou o time de sua cidade natal, rebatizado como Litex Lovech – nome em referência à Litex Motors. A equipe tornou-se relevante, a ponto de conquistar quatro títulos no Campeonato Búlgaro. E, sem quitar as dívidas do CSKA Sofia, Ganchev buscaria outros caminhos.

O Litex Lovech seria rebatizado como o novo CSKA-Sofia (repare no hífen) para a temporada 2016/17, mesmo sem ter direitos totais sobre os símbolos do clube original, e se mudaria à capital. Foi a manobra encontrada para que o maior campeão nacional recuperasse sua licença, ao mesmo tempo em que fugia do saldo negativo. Já o Litex Lovech acabaria mesmo relegado à terceirona, sem voltar à elite desde então. Com o investimento de Ganchev, o CSKA foi vice-campeão da liga nacional durante as últimas quatro edições, sempre atrás do Ludogorets Razgrad. Além disso, em outubro de 2018, garantiu os direitos sobre o CSKA Sofia original junto à Fifa e se tornou seu sucessor legal.

Obviamente, nem todo mundo gostou da postura liderada por Grisha Ganchev, incluindo torcedores e antigos membros do CSKA Sofia. Ao mesmo tempo em que o Litex Lovech trocava de nome, um novo CSKA seria fundado nas divisões amadoras do Campeonato Búlgaro. Era o CSKA 1948, que passou a se ver como guardião da história e da honra da agremiação mais tradicional do país. Traz as mesmas cores e um escudo muito parecido – ligeiramente alterado em relação ao original, após a vitória do CSKA-Sofia junto à Fifa pelos direitos em 2018. A fundação esteve ligada a uma associação de torcedores e a grupos militares. A equipe dissidente passou a receber seu próprio apoio, tanto de seguidores descontentes quanto de marcas dispostas a patrociná-la. Mas teria que recomeçar a partir da quarta divisão.

Com investimento alto para as divisões inferiores e arquibancadas com bom número de presentes, o CSKA 1948 protagonizou uma ascensão meteórica. Na primeira temporada, conquistou o título da quarta divisão e também foi vice-campeão da Copa da Bulgária para amadores. Também seria campeão da terceirona em 2017/18. E, depois de bater na trave pelo acesso na segunda divisão em 2018/19, consumou o feito na última temporada. Quando a competição foi encerrada previamente por causa da pandemia, o CSKA 1948 liderava com três pontos de vantagem e, assim, acabou subindo diretamente. Também fez bom papel na Copa da Bulgária, caindo nas quartas de final – eliminado pelo Lokomotiv Plovdiv, que ficaria com a taça.

Há uma rivalidade claríssima entre CSKA-Sofia e CSKA 1948, que tende a se incendiar durante os próximos anos. As autoridades búlgaras até tentaram promover uma reconciliação para evitar problemas entre os dissidentes e propôs uma fusão, algo obviamente refutado. E a intenção do CSKA 1948 será recuperar o título nacional antes do CSKA-Sofia. O Ludogorets ainda será o maior obstáculo a ambos, com nove taças consecutivas na liga, mas não deixará de ser uma corrida particular entre os dois concorrentes da capital.

O CSKA 1948 atua no Estádio Vasil Levski, casa do Levski Sofia (o maior rival do velho CSKA), mas que é do governo e também abriga os jogos da seleção. Seu técnico nesta temporada é Krasimir Balakov, que não chegou a atuar nos clubes da capital durante sua condecorada carreira, mas treinou anteriormente o Litex Lovech. E o interesse pelo projeto é tamanho que a Adidas passou a fabricar o material esportivo. Além disso, há uma ligação direta com a Efbet, a principal casa de apostas da Bulgária. O elenco é composto quase que inteiramente por jogadores nascidos no país, exceção feita a Simeon Petrov, francês de origem búlgara.

Quis o sorteio do Campeonato Búlgaro que a primeira rodada logo proporcionasse o confronto entre CSKA 1948 e CSKA-Sofia. As duas equipes se enfrentaram nesta sexta-feira, no Vasil Levski. O clube fundado pelos torcedores chegou a abrir dois gols de vantagem, com Martin Kamburov e Daniel Mladenov balançando as redes em pouco mais de meia hora. Valentin Antov descontou ao CSKA-Sofia nos acréscimos e Ali Sowe determinou o empate no início do segundo tempo. O placar de 2 a 2 acaba se tornando até simbólico, por todo o contexto. E, olhando ao lado positivo, as arquibancadas vazias por conta da pandemia evitaram confrontos entre ultras.

Uma disputa como a ocorrida entre os CSKA não é inédita e possui exemplos em diversos países pela Europa – Romênia, Inglaterra, Áustria, Espanha e Portugal, entre outros. Todavia, os demais casos não chegaram a tal ponto de sucesso, com os dois times competindo lado a lado para ver quem será melhor na primeira divisão. Será interessante ver quem, no fim das contas, conseguirá se aproximar do que um dia já foi o antigo CSKA, pelo qual as duas torcidas eram apaixonadas – e sem divisões.

Foto de Leandro Stein

Leandro Stein

É completamente viciado em futebol, e não só no que acontece no limite das quatro linhas. Sua paixão é justamente sobre como um mero jogo tem tanta capacidade de transformar a sociedade. Formado pela USP, também foi editor do Olheiros e redator da revista Invicto, além de colaborar com diversas revistas. Escreveu na Trivela de abril de 2010 a novembro de 2023.
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