Inglaterra

Tim Vickery: Sou adepto do ‘Blanchflowerismo’, filosofia pela glória e contra o tédio

Danny Blanchflower era um vitorioso mas, mais do que qualquer coisa, era um discípulo de futebol bem jogado

O mundo é complicado. Existe um ‘ismo' capaz de solucionar os nossos problemas? Sei lá. Tenho pensamentos e preferências, mas não tenho um programa coerente. O futebol é mais simples. Sei exatamente a minha posição. Sou adepto do Blanchflower-ismo.

Quase ninguém vai me entender. Paciência. Vou tentar explicar.

O Danny Blanchflower era um jogador da Irlanda do Norte, um meio-campista. Jogou a Copa de 1958 com a sua seleção. Mais importante para mim é o fato que ele ficou dez anos defendendo o Tottenham Hotspur, de 1954 até 1964.

Era o capitão. O time ganhou o campeonato e a copa em 1961, e quase repetiu a dose no ano seguinte, quando ganhou a copa de novo e terminou a liga somente dois pontos atrás do campeão. Em 1963, um dos seus últimos jogos, ajudou o Tottenham a se tornar o primeiro clube inglês com um título continental, vencendo o grande favorito Atlético Madrid por 5 a 1 na final da Recopa europeia.

Danny Blanchflower (Tottenham) cumprimenta Jimmy Adamson (Burnley) na final da FA Cup de 1962 (Foto: Imago)
Danny Blanchflower (Tottenham) cumprimenta Jimmy Adamson (Burnley) na final da FA Cup de 1962 (Foto: Imago)

A essência de Blanchflower

Blanchflower era, então, um vitorioso. Mas isso era de menos. Mais do que qualquer coisa, era um discípulo de futebol bem jogado. Parou de jogar um ano antes que nasci, mas ouvia as histórias do meu pai de um meio-campo sensacional. Tinha o lendário Dave Mackay, mais forte que pedra mas cheio de classe também. Tinha o John White, o homem de movimento perpétuo, tão bom que dá para imaginar ele no time hoje em dia de Barcelona.

E tinha Blanchflower, o mago de passe, ditando o ritmo. Dois escoceses e um da Irlanda do Norte, produzindo futebol arte em Londres.

E o objetivo era justamente a arte — por causa de Blanchflower. Era o líder do time, o homem dos ideais. E que ideais!

A grande falácia,” falava, “é que o futebol é todo sobre ganhar. Não é nada disso. O jogo é sobre glória, sobre fazer as coisas com estilo, sobre sair para se impor aos adversários, e não esperando que eles morram de tédio.”

Isso aí era a essência de Danny Blanchflower, a beleza da frase andando junto com a beleza do pensamento. Quer um outro exemplo? Uma vez ele declarou que o Tottenham estava iniciando uma tática nova: “A gente empata antes que eles abram o placar!”

E isso foi a sensibilidade de futebol que aprendi com o meu pai, e a filosofia que até hoje existe dentro da alma da torcida do Tottenham. Uma das musiquinhas mais comuns nas arquibancadas: “Glory, glory, Tottenham Hotspur!

Não é nenhuma surpresa que Mourinho, Conte e Nuno Espírito Santo não tenham dado certo no clube. São pragmatistas, que estavam perdidos na terra de sonhadores. E explica porque, apesar de uma temporada muito ruim, o técnico atual, embora muito questionado e provavelmente de saída, ainda tem um pouco de apoio da torcida.

O Ange Postecoglou é um sonhador também. Depois de um início promissor na temporada passada, os resultados têm sido muito decepcionantes. Mas dá para identificar nos métodos dele pelo menos uma tentativa de glória Blanchfloweriana.

A temporada depende da quinta-feira, o jogo de volta nas quartas-de-final da Liga Europa. Semana passada, empatou por 1 a 1 em casa contra o Eintracht Frankfurt da Alemanha. Mereceu mais, mas ficou frustrado pela atuação de um goleiro brasileiro, o Kauã Santos. Vai ter que buscar o resultado lá fora de casa. Sem problemas. Ganhando — com estilo — por lá vai trazer mais glória. Caso contrário, a busca vai seguir no ano que vem. Assim pensa um adepto de Blanchflowerismo.

Foto de Tim Vickery

Tim VickeryColaborador

Tim Vickery cobre futebol sul-americano para a BBC e para a revista World Soccer desde 1997, além de escrever para ESPN e aparecer semanalmente no programa Redação SporTV. Foi declarado Mestre de Jornalismo pela Comunique-se e, de vez em quando, fica olhando para o prêmio na tentativa de esquecer os últimos anos do Tottenham Hotspur.
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