Tim Vickery, no aniversário da morte de Thatcher: ‘A história vai ser mais cruel com ela do que eu fui’
Jornalista inglês e colunista da Trivela falou com exclusividade sobre crítica forte e engraçada que fez à "Dama de Ferro" em 2013

O vídeo é conhecido por quem acompanha futebol nas redes sociais. Ele começa com o jornalista André Rizek, então apresentador do “Redação SporTV”, mostrando as manchetes dos principais jornais brasileiros, que destacavam a morte de Margaret Thatcher, ex-primeira-ministra da Inglaterra.
O programa, um dos mais tradicionais do canal de esportes da Globo, aconteceu na manhã de 9 de abril de 2013 — um dia depois da morte de Thatcher. E, na bancada, além de Rizek, estavam os jornalistas Carlos Eduardo Éboli e Tim Vickery, britânico que vive no Brasil há mais de 30 anos.
Depois de mostrar as capas dos principais jornais do Brasil, o apresentador repassa uma pergunta de um internauta a Vickery, querendo saber se o inglês estava de luto pela morte da Dama de Ferro. A resposta é um pouco chocante — até para quem nunca gostou de Thatcher.
— Eu acho que estou mais de luto porque ela nasceu.
A reação de Rizek é de poucas palavras, o que obriga Tim a se explicar. O jornalista relembra uma das frases mais famosas de Thatcher: “Não existe essa coisa de sociedade. Existem indivíduos e suas famílias”. Vickery argumenta que essa linha de pensamento é “muito nociva” e explica o fato dela “não ter entendido o fenômeno coletivo e social do futebol“. Também lista as dificuldades econômicas vividas por ele em sua adolescência nos anos governados por ela, na década de 80.
8 de abril é dia de lembrar do Tim Vickery lamentando o nascimento da Margaret Thatcher pic.twitter.com/7tn0Px7exC
— @dersuzzalla.bsky.social 🇵🇸 (@dersuzzalla) April 8, 2022
Mas essa parte não ficou tão marcante quando a primeira frase. Tanto que até hoje, exatos 12 anos depois do evento, ele continua lidando com as consequências dele.
— Toda semana alguém me para na rua para lembrar daquela frase. Que, tudo bem, foi engraçada, mas não me dá muito orgulho — diz o jornalista.
Mas não confunda isso com arrependimento. “Normalmente (falar com as pessoas na rua) é uma experiência enriquecedora“, garante ele. “Embora eu ache que a mensagem sobre ela poderia ter sido colocada em termos mais racionais e elegantes, se as pessoas gostaram, quem sou eu para discordar?“.
E a opinião não é à toa. Em entrevista exclusiva à Trivela, o colunista e participante da Trivela FC, live semanal no YouTube, apontou vários motivos para não tirar uma palavra do que disse.
Estamos confundindo o significado de paixão com o de ganhar a todo custo? 🧐
🎙️ @Tim_Vickery pic.twitter.com/lbjfNd9fvN
— Trivela (@trivela) April 2, 2025
Oposição a Margaret Thatcher
Tim Vickery tem um argumento claro: para ele, o projeto neoliberal aplicado por Thatcher na década de 80 foi um “desastre total“, que até hoje traz consequências econômicas, sociais e até psicológicas em diferentes partes do mundo.
Segundo ele, que se formou em História e Política pela Universidade de Warwick, a flexibilização do mercado de trabalho, a desregulamentação do setor financeiro e o fortalecimento do mercado imobiliário em detrimento de pilares como os sindicatos, educação pública e moradia popular, que resumem o Thatcherismo, fizeram com que pessoas enriquecessem através do patrimônio, não do trabalho.
— Quem produz tem o dinheiro sugado por quem cobra aluguel. O colapso da sociedade ocidental vem da quebra de contrato social. O contrato social era: se você trabalha, pode ter uma vida decente. Para muitas pessoas que trabalham muito, isso não existe mais. Essa quebra básica no contrato social vem das ideias dela — afirma Tim.

O inglês relembra um exemplo da própria vida para justificar a opinião. Tim cresceu na cidade de Hemel Hempstead, 38 quilômetros ao noroeste de Londres. Nascido em 1965, ele afirma ter desfrutado dos “benefícios do Estado de bem-estar social que foram colocados na Europa após a Segunda Guerra Mundial”. Relata ser um “embaixador de um país que não existe mais”, que investia e potencializava os cidadãos.
Vickery cresceu numa família que o próprio classifica como “limitada”. “Lembro da vida sem televisão, sem geladeira, mas não éramos pobres”. Em determinado momento, seu pai, que trabalhava numa loja de departamento, foi demitido e a família precisou sair da casa, que estava ligada ao emprego.
— Naquela época, o Estado forneceu moradia. Se fosse hoje, por causa das mudanças da Thatcher, a gente ficaria sem teto — exemplificou.
Uma das medidas mais marcantes da primeira-ministra para Tim, então criança, foi fechar sua escola pública para construir um imóvel no lugar — o intuito era ganhar dinheiro com o inflacionado mercado imobiliário, descreve ele. Já na adolescência, em 1983, o inglês começou a trabalhar num jornal que faliu na semana seguinte. O mesmo aconteceu com uma loja de roupas, seu segundo emprego.
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‘Covardia intelectual'
O famoso publicitário Maurice Saatchi publicou, em dezembro de 2024, um artigo na “The i Paper” intitulado “Eu adorava o capitalismo até almoçar com Margaret Thatcher”. Saatchi é considerado um amigo próximo da ex-ministra e, ao lado do irmão Charles, foi o responsável pela campanha que a levou ao poder em 1979. Ele também foi líder do Partido Conservador no Parlamento britânico entre 2003 e 2005.
No artigo, Saatchi relata um almoço que teve com Thatcher após ela deixar o poder, no início dos anos 90. Na oportunidade, conta o publicitário, a Dama de Ferro reagiu de forma inconformada ao saber que os cinco maiores bancos da Grã-Bretanha participavam de 80% de todas as transações financeiras do país.

“Algo obviamente deu errado”, escreve ele, um dos apoiadores mais ferrenhos da ex-primeira-ministra. “Foi chocante pensar que eu, acidentalmente, ajudei a criar um mundo de impressionante desigualdade, onde o salário médio de um CEO é 440 vezes maior que o salário médio de um funcionário”.
— Thatcher sabia, nos últimos anos, que o projeto foi um fracasso. Ela tinha o delírio de um mundo com 500 mil empresas competindo lealmente. Mas só criou grandes corporações. O fato dela nunca ter reconhecido que os resultados foram ruins é, para mim, uma grande covardia intelectual. Eu acho que você tem um dever moral de compartilhar esse conhecimento com o público — completou Tim.
‘A história vai ser mais cruel do que eu fui'
O jornalista enxerga consequências da política de Thatcher até na ascensão da extrema-direita observada durante os últimos anos.
Vickery enxerga a volta do fascismo também como uma tentativa de recuperar valores comunitários — “uma rebelião dentro do lado direito contra o neoliberalismo“.
Daí surgem problemas como o discurso de ódio contra imigrantes ou o Brexit — um resgate comunitário, mas escolhendo quem pode fazer parte da comunidade. De acordo com pesquisas recentes, o Brexit, aprovado pela população britânica em 2016, só conta com o apoio de 30% da sociedade em 2025.
— A história vai ser muito mais cruel para ela do que eu fui falando com o Rizek — garante Tim Vickery.
E o futebol?
Toda essa aula de política, história, cultura e sociedade começou em Hemel Hempstead e teve seu auge na bancada do Redação SporTV, em 9 de abril de 2013. Um programa esportivo que tinha como principal assunto o futebol.
Apesar disso, Tim pouco falou de futebol durante a entrevista. Prova de que a atuação da primeira-ministra foi além do esporte, não de que não o atingiu.
Ao mirar nos sindicatos como seus maiores rivais, Thatcher acertou também nos torcedores de futebol, uma vez que os grupos são historicamente ligados. Assim como em outros lugares do mundo, muitas dos torcedores organizados têm origens na classe trabalhadora.
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Só que o futebol inglês dos anos 80 era um terreno fértil para mudanças. O cenário era composto por estádios degradados, dirigentes incompetentes e muita violência nas arquibancadas — o hooliganismo manchava a imagem do país desde o fim da década de 60.
O auge, até então, aconteceu em 1985, quando 39 torcedores italianos morreram em Heysel, Bruxelas, na final da Liga dos Campeões entre Liverpool e Juventus, por culta de torcedores dos Reds. Os clubes ingleses foram excluídos das competições europeias por seis anos e Thatcher viu o contexto perfeito para adotar medidas contra uma parte da sociedade contrária ao seu governo.
A Dama de Ferro conseguiu, de fato, diminuir o poder dos hooligans na Inglaterra. Mas as mudanças vieram ao custo da elitização dos estádios, que tornou o esporte menos acessível, e ao aumento do preconceito contra as classes mais baixas.
Classes estas que, pela política econômica de privatização, já sofriam com desemprego. Especialmente em cidades com indústrias pesadas no norte da Inglaterra, como Liverpool, que entraram em crise com os esforços do governo para deslocar o polo comercial para o sul do país. Tanto que Thatcher é lembrada com pouco carinho até hoje por esses torcedores.

Thatcher endossou mentiras em Hillsborough
Quatro anos depois de Heysel aconteceu o episódio de Hillsborough, em 1989, quando 97 torcedores do Liverpool morreram num jogo de futebol por conta da negligência policial envolvida na segurança do evento.
Tanto o formato do estádio quanto a reação dos policiais intensificaram a tragédia. Os setores das arquibancadas eram divididos por grades, que mais pareciam gaiolas, uma medida incentivada pelas forças de segurança para enfrentar o hooliganismo — mas que, na verdade, só permitiu que as pessoas ficassem presas enquanto eram pisoteadas e asfixiadas.
E, a partir do momento que algumas vítimas conseguiram pular da arquibancada para o campo, fugindo da situação desesperadora, a primeira reação dos policiais foi correr em direção à torcida do time adversário, com medo de que aquilo fosse um início de confusão entre hooligans. Outra orientação do governo que atrasou os primeiros socorros e aumentou o desastre. Dos 97 mortos, apenas 12 chegaram com vida ao hospital.
Ao lado de veículos de imprensa como o “The Sun”, Thatcher varreu para debaixo do tapete os erros da polícia e reforçou a tese de que a tragédia havia sido culpa da própria torcida.
A mentira perdurou por décadas até o processo ser reaberto em 2012, um ano antes da sua morte. A nova investigação provou que a negligência policial foi a principal responsável pelas mortes e que os culpados foram encobertados pela gestão da primeira-ministra.
“Mais um motivo para ter um certo desprezo por ela“, opinou Vickery.
Em setembro de 2012, apenas alguns meses antes da morte de Thatcher, foi publicado pelo governo britânico o resultado de uma investigação independente sobre o que realmente havia ocorrido.
A torcida do Liverpool, destratada pela gestão Thatcher, não tinha culpa alguma. pic.twitter.com/9eMaXVO8sU
— Copa Além da Copa (@copaalemdacopa) April 9, 2023
“Você não ligou quando mentiu, nós não nos importamos que você morreu“, escreveu a torcida dos Reds na época da morte da Dama de Ferro.
Os bastidores da fala de Tim Vickery
Na bancada, Tim jura que a reação foi 100% espontânea, nada combinado anteriormente, e que tampouco teve um feedback da direção após o programa. Ele também considera que o posicionamento fechou algumas portas em sua carreira, mas que se encaixa na “missão” de um jornalista.
— Quem recebeu uma oportunidade tem a obrigação de compartilhar. Eu recebi oportunidades através dos investimentos do Estado. Foi muito bom para mim. Eu acho que foi muito bom para a sociedade em que eu cresci, então acho importante argumentar a favor desses valores. É uma coisa importante para mim.
Entre algumas gargalhadas, o jornalista só desvia quando a pergunta é se ele sente luto pelo nascimento de alguma personalidade que ainda está viva.
— Eu tenho algumas ideias, mas vou guardar para mim. Se eu ainda estiver aqui em 15 anos, eu não quero pessoas me parando na rua para falar “que bom que você comemorou a morte de tal pessoa”. Se eu serei lembrado, gostaria de ser lembrado por coisas mais positivas.