Deputada propõe regulação independente do futebol inglês e enfrenta resistência de clubes
Tracey Crouch quer estabelecer órgão independente com poder de intervenção e taxa de transferências para financiar divisões inferiores e amadoras
O futebol é um negócio de bilhões de libras no Reino Unido e a falta de regulação levou os clubes a entrarem em um movimento como a Superliga Europeia, uma iniciativa que morreu apenas 48 horas depois de ser anunciada. Isso, porém, ligou o alerta que faltava regulação e mais participação dos torcedores, além de uma melhor distribuição do dinheiro para a pirâmide do futebol. Por isso, Tracey Crouch, deputada do Partido Conservador, propôs um projeto que ela mesma admite: terá muita resistência de clubes da Premier League.
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Tracey, que já foi Ministra do Esporte, defende o estabelecimento de um regulador independente, com poderes de intervir em clubes mal geridos, e também determinar uma taxa sobre as transferências para um fundo que financiaria o futebol da base da pirâmide, ou seja, das divisões inferiores e amadoras.
A deputada afirmou ao comitê selecionado de digital, cultura, mídia e esportes que estava otimista que a estrutura legislativa necessária para a introdução de um regulador independente seja incluída no próximo discurso da Rainha, com o objetivo de ser criado para começar a funcionar a partir da temporada 2023/24. O regulador independente seria formado por 50 especialistas em regulação financeira.
Crouch defende que seja criado um “regulador sombra”, que seja financiado por impostos para, digamos, regular os reguladores. O custo seria de £ 5 milhões e poderia começar a funcionar já em janeiro. Esse conceito de “sombra” é comum no Reino Unido: a oposição normalmente tem um “ministro da sombra” de cada área, que regula o trabalho do ministro de fato. É uma forma de ter mais independência e mais regulação no trabalho público.
O projeto, porém, deve sofrer muita resistência dos clubes, como a própria Crouch admite. O executivo chefe do Aston Villa, Christian Purslow, disse que as recomendações da deputada “arriscam matar a galinha dos ovos de ouro”. A parlamentar, claro, discorda dessa visão.
“Não vejo como algo que mata a galinha dos ovos de ouro. Bem ao contrário”, disse Crouch. “O que temos no momento é um sistema sujeito a vulnerabilidades. Se você remover algumas das vulnerabilidades por uma regulação melhor, isso na verdade encoraja o crescimento e investimento no futebol inglês”.
Segundo a parlamentar, falta consenso sobre o assunto entre os clubes da Premier League, mas ela sabe que a oposição ao projeto será maior do que apenas de Purslow. Angus Kinnear, executivo chefe do Leeds, deu uma declaração ainda mais dura sobre a ideia de pagar uma taxa por transferência para financiar o futebol da base da pirâmide: disse que a recomendação parecia Maoísmo, em referência à política de Mao Tsé-Tung, líder da revolução comunista chinesa.
Crouch considera que a reação de Kinnear foi “um pouco extrema” e que a comparação sequer fazia sentido. “Tudo que estou tentando fazer é ter mais dinheiro para a pirâmide do futebol. Algumas das críticas de executivos deixaram claro que eles sequer leram o relatório. Não se trata de um regulador do governo, é um regulador independente. A missão é sobre a sustentabilidade financeira do futebol a longo prazo”.
“Meu entendimento da reunião da Premier League na sexta é que eles irão argumentar muito, muito fortemente para que o regulador independente não seja determinado pelo legislativo. Acho que eles irão resistir muito, muito fortemente no aspecto estatutário do regulador independente e preferiram que fosse uma unidade dentro da Football Association”.
A deputada espera que a proposta da taxa sobre transferências, que seria destinada às divisões inferiores do futebol inglês, também sofra resistência dos clubes. “Isso é interessante, porque na verdade foi proposta por um clube da Premier League. A taxa de transferência é realmente importante”, afirmou ainda a deputada.
Crouch foi além ao provocar os dirigentes sobre a sua resistência a uma regulação externa dizendo que a Premier League poderia estabelecer ela mesma essa taxa, se assim quisesse, e isso diminuiria, digamos, o entusiasmo no governo para fazer isso pela via legislativa.
“A Premier League poderia mudar as regras amanhã se quisesse. Eles poderiam introduzir algo como 3%, por exemplo, em janeiro, que iria para o futebol de divisões inferiores e bem-estar dos jogadores e pronto. Isso os colocaria, para usar uma analogia do futebol, com 1 a 0 no placar e poderiam estacionar o ônibus em frente ao gol. Eu os encorajaria a fazer isso. Acho que foi muito razoável no que eu recomendei nesta revisão do futebol”.
Ainda há muita coisa para acontecer, mas é fato que as consequências daquela tentativa torpe dos clubes de criar a Superliga Europeia deixou consequências e mostrou o quanto o futebol precisa de mais participação popular, mais regulação, e não menos. A falta de regulação ainda é vista como um problema, porque o futebol parece cuidar pouco até de si mesmo, tentando sempre cuidar só dos interesses de uma parte dos interessados, e não do esporte.
A ideia da deputada pode ter falhas, mas é um bom começo para uma discussão relevante sobre processos regulatórios independentes no futebol, que não tenham o dedo dos governos, mas de órgãos que possam fiscalizar os clubes e as ligas, de modo que o esporte, que pode até ser privado no sentido estrito da palavra, mas é público no sentido amplo, de pertencimento à sociedade.
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