A Superliga deixou claro: sem gente, não se faz futebol – popular por sua identidade, não pelo glamour
Em apenas 48 horas, a Superliga Europeia implodiu. A ideia de um supercampeonato reunindo os clubes mais poderosos do planeta é cíclica e não deve demorar tanto para voltar à tona, talvez com outros líderes, talvez com outras ideias. Porém, nunca ela tinha sido tão concreta. E, ainda que outros atores tenham sido responsáveis por dinamitar o grupinho dos ricaços, também nunca tinha sido tão evidente o poder dos torcedores ao redor do jogo. Os próprios donos dos clubes subestimaram os anseios e a compreensão de futebol de milhões de pessoas, que se colocaram prontamente contra o projeto. Se muito precisa ser discutido ao redor do esporte, porque está claro como as sementes da Superliga só germinaram por conta de um terreno fértil a tal empreitada, um passo fundamental que precisa ser tomado diz respeito ao poder de decisão necessário às torcidas. Será também um debate que florescerá com mais intensidade a partir desses dias tão insanos na Europa.
A Superliga caiu por uma conjunção de fatores que não pode ser dissociada. A pressão exercida pelas entidades, sobretudo pela Uefa, foi central. Também teve seu peso a união das ligas e federações dos três países com rebeldes, que não encamparam os discursos de que os mecanismos de solidariedade se ampliariam. Da mesma forma, os clubes excluídos tiveram sua voz, assim como exerceram pressão os ricaços que, de antemão, preferiram se afastar da ideia fechada ao redor da Superliga – como Bayern de Munique e Paris Saint-Germain. Os próprios governos se anteciparam para agir. De qualquer maneira, só ficou claro que a insatisfação era geral quando os grupos de torcedores se mobilizaram, indicando que não eram apenas os prejudicados pela Superliga que estavam na bronca. Foi no coração das torcidas envolvidas no projeto sem consulta, sobretudo as inglesas, que o desmonte se acelerou. E tal posicionamento deu mais confiança para que treinadores e jogadores dentro dos 12 clubes se posicionassem.
Um marco no desabamento da Superliga aconteceu nos arredores de Stamford Bridge. A tabela da Premier League ofereceu a ocasião perfeita para que, em plena terça-feira, horas depois da oficialização das intenções dos ricaços, um de seus membros entrasse em campo. O Chelsea pode ser conhecido por muitos como um clube de expansão recente, que dependeu de um oligarca russo para voltar a vencer a liga nacional e para se colocar realmente entre as equipes mais fortes da Inglaterra. A torcida dos Blues, porém, existe desde muito antes de Roman Abramovich, em tempos nos quais a agremiação correu sérios riscos de falência e suas arquibancadas eram tomadas pelo hooliganismo. E não foi a bonança das últimas duas décadas que impediu a massa azul de dizer não a um projeto que parecia usurpar não apenas a própria história do clube, como também a chance de outros tantos clubes escreverem suas próprias histórias.
O alvoroço em Stamford Bridge, que atrapalhou a chegada do time e, segundo o próprio técnico Thomas Tuchel, teve impacto dentro de campo, seria o primeiro resvalo na queda em sequência dos dominós que envolviam a Superliga. O Chelsea deu um passo atrás, assim como o Manchester City. Da mesma forma o fizeram os demais clubes ingleses, antes de serem seguidos pelos italianos e pelo Atlético de Madrid. Donos estrangeiros vieram a público pedir desculpas e admitir que menosprezaram os anseios dos torcedores, achando que uma canetada garantindo a permanência num grupo restrito de clubes ricos seria suficiente para comprar seu apoio. O futebol, afinal, envolve muito mais que isso.
E não será a admissão do erro que deve parar os protestos dos torcedores, sobretudo na Inglaterra. Se muitos dos donos já eram mal vistos pelo envolvimento distante com os clubes, tal postura intransigente só escancara a fratura, que não deve ser facilmente curada. Os protestos se seguiram nos últimos dias, entre torcedores do Arsenal, do Liverpool e do Manchester United. Em Wembley, Manchester City e Tottenham ofereceram mais uma ocasião imensa para que o público escancarasse aquilo que não deseja, durante a final da Copa da Liga. A saída dos investidores não acontecerá da noite para o dia e parte deles já manifestou as intenções de seguir no poder. Todavia, é óbvio como esse poder precisa ser mais compartilhado, ou que pelo menos existam mecanismos que protejam a história dos clubes de decisões tão restritas.
Arquibancada vazia, oficina do diabo
O quebra-cabeças da Superliga parece se encaixar quando pensamos no momento em que as decisões foram tomadas. Embora os dirigentes dos 12 clubes dissidentes citassem um “altruísmo comovente” em seu texto de fundação, indicando que a criação do novo campeonato tentaria frear os impactos da pandemia sobre toda a pirâmide do futebol, estava claro que, antes de mais nada, eles colocavam suas contas acima do resto. A bolha do futebol existe muito por conta dos superclubes, catapultados de diferentes maneiras (lícitas ou não tão lícitas) e sempre dispostos a dar um jeitinho para escapar dos mecanismos de controle criados nos últimos anos. Em nenhum momento eles indicam a possibilidade de discutir uma readequação do inflado mercado do futebol, mas apenas desejam dar um passo à frente, mesmo que isso imploda o restante das estruturas. Tudo, é lógico, para salvar o próprio rombo causado pela pandemia em suas contas.
Porém, a pandemia também gerou um cenário à parte ao redor do futebol para tal projeto. Os estádios vazios se aproximam cada vez mais de um ideal forjado a partir dos anos 1990, em que o sustentáculo principal está nas transmissões televisivas e na publicidade que se espalha ao redor do mundo através das “marcas” dos clubes. O futebol deixou de ganhar dinheiro com arquibancadas durante a pandemia, mas só a retomada dessa receita não será suficiente para a recuperação dos grandes clubes nos próximos meses, mesmo que a vacinação se encaminhe em muitos países europeus. Era preciso um passo a mais, um passo além das fronteiras continentais, e foi isso que os 12 gananciosos acabaram por fazer.
Os últimos meses de estádios vazios, afinal, mostraram como o interesse pelo futebol não morre sem os torcedores. Se a atmosfera acaba com as arquibancadas vazias, os alto-falantes dos estádios dão um jeito. Efeitos visuais eletrônicos também foram usados, assim como a tática de ocupar o cenário com bandeirões e cartazes em referências aos torcedores. Para a maioria, aquilo era um sinal de que a presença da massa estava implícita e que eles logo voltariam, porque não há futebol sem paixão. Para os 12 donos, aquilo era apenas um canal de marketing, enquanto se ganhava certeza sobre a maneira como o produto continuaria com um ótimo mercado, mesmo alijado das raízes locais e do calor das multidões.
Além do mais, as arquibancadas vazias pareciam diluir as resistências. Difícil imaginar o Manchester United x Burnley ocorrendo normalmente no domingo enquanto se arquitetava o lançamento da Superliga. Old Trafford, mesmo se tornando um estádio morno com o passar dos anos, certamente veria setores ferverem em protestos contra a iminente cartada de seus odiados donos. O mesmo talvez acontecesse em Getafe x Real Madrid horas depois, enquanto o Coliseum Alfonso Pérez não podia abrigar a insatisfação da torcida excluída. As limitações impostas ao público, que ainda persistem, certamente tiraram um foco de oposição contra o projeto de golpe. Mas não foi isso que conteve a erupção do vulcão, quando os torcedores decidiram mostrar que eram contra a Superliga. Nas ruas, nem mesmo as orientações dos governos quanto ao distanciamento segurou o furor das massas – especialmente das torcidas diretamente envolvidas no novo campeonato. Um movimento que provavelmente seria vezes maior se o coronavírus não existisse.
Logo na segunda-feira, o Leeds United x Liverpool aconteceu na casa do clube renegado. Um clube que, há 20 anos, talvez fizesse parte da Superliga – e que, ironicamente, viveu sua derrocada porque os donos preferiram dar como certo o dinheiro da classificação à Champions, gastando o que não tinham. De diferentes formas, a insatisfação foi demonstrada em Elland Road, mas dava para perceber como o discurso encampado pelo Leeds não se restringia à voz de donos ignorados pelo clubinho, mas falava por muito mais gente. Assim como fez a torcida do Chelsea no dia seguinte, antes do jogo contra o Brighton, quando ficou evidente como a postura dos donos não era unanimidade dentro dos próprios clubes. E se os magnatas conseguiam se organizar entre si, logo as multidões demonstraram como poderiam ter o mesmo poder de mobilização.
A união que fez a diferença
“Fizemos o que os torcedores de futebol fazem de melhor: nos unimos. Nós nos juntamos e dissemos: ‘O que faremos sobre isso?’, então logo começamos”, afirmou Joe Blott, líder do Spirits of Shankly, grupo de torcedores do Liverpool com um nome ainda mais sugestivo para a ocasião, em entrevista ao jornal The Guardian. “As pessoas pensam que existe rivalidade e, por 90 minutos no sábado, claro que existe. Mas no resto do tempo há mais elementos que nos unem do que nos dividem. Isso é extremamente importante e é algo que esses proprietários nunca entenderiam”.
As palavras de Blott são cabais para entender o que aconteceu na Inglaterra. De fato, há um sentimento que une as torcidas, e que não se restringe ao clube pelo qual torcem. Neste ponto, houve uma concordância imediata de que a Superliga os afastaria daquilo que mais apreciam no futebol – e aqui não estão as vitórias ou os astros. Há um senso de identidade e de companheirismo que se alimenta nas arquibancadas. Cada torcida tem suas razões para se orgulhar, mas isso não significa suprimir a existência do outro. O triunfo se restringe em campo, já que cada clube representa uma comunidade, por mais que os supertimes tornem tal visão mais difusa. Criar a nova competição poderia privilegiar seis torcidas, mas tornaria incerta a existência de centenas de outras no país e milhares ao redor da Europa.
A reação mais contundente na Inglaterra tem, em partes, uma explicação na própria concepção do futebol local. Mais do que qualquer outro povo, os ingleses se orgulham pela forma como o futebol é uma parte indispensável de sua cultura e uma forma de construção da sociedade local. Durante mais de um século, laços foram criados ou se fortaleceram ao redor do esporte. A formalização da modalidade com suas regras pode ter surgido no seio da aristocracia no Século XIX, mas o futebol só se tornou um fenômeno social a partir das massas. E afastá-lo dessas massas seria tirá-lo de sua essência. Deixaria de ser o futebol, do qual tanto se orgulham, com uma história profunda no país e apegado a cada canto.
Mais do que isso, também ajudou a própria capacidade de organização das torcidas na Inglaterra. Por conta do modelo de negócios, os principais grupos de torcedores no futebol inglês passaram a se coordenar de maneira ímpar a partir dos anos 1990: através das chamadas “supporters trusts”. Essas associações serviam para agrupar a torcida e levantar fundos em busca de participações acionárias nos clubes – como bem explica Irlan Simões, neste texto publicado aqui na Trivela. Tais iniciativas não necessariamente evitaram a venda gradual de clubes profissionais a empresários com interesses pouco claros e parca ligação com as comunidades. Ainda assim, as “supporters trusts” permitem uma postura unificada de torcidas e uma participação ativa na política do esporte, mesmo que essas associações não estejam diretamente inseridas no controle de cada time.
As “supporters trusts” não evitaram que os principais clubes ingleses parassem nas mãos de donos estrangeiros. Em compensação, possuem sua representatividade para peitá-los e para serem ouvidas pelo governo britânico. Foi o que aconteceu nesta semana, não apenas nos protestos organizados ao redor dos estádios, mas também nas pontes construídas para conversar com políticos durante o levante e também para assinalar uma frente uníssona contra o ideal separatista da Superliga.
Quem tomou à frente no posicionamento contrário, logo no domingo, foi a Football Supporters Association: “A FSA se opõe totalmente às propostas que buscam criar uma ‘Superliga Europeia' separatista. A motivação por trás desta chamada Superliga não é promover o mérito esportivo ou nutrir o futebol mundial – ela é motivada apenas por uma ganância cínica. Esta competição está sendo criada nas nossas costas por proprietários de clubes bilionários que não respeitam as tradições e continuam a tratar o futebol como seu feudo pessoal. A FSA e, sem dúvida, os torcedores em todo o continente, continuarão a lutar contra a criação da Superliga”.
Paralelamente à FSA, as “supporters trust” dos seis clubes ingleses envolvidos na Superliga também se manifestaram e deram declarações fortes contra os seus próprios dirigentes. Muitos os acusavam de “traição” e “falta de consideração à história”. Apontavam como tudo aquilo ocorria de maneira contrária à própria criação de identidade dos clubes, algo inerente aos torcedores, e que os proprietários se apropriavam disso para manter suas rodas da fortuna girando. Não tiveram freios para chamar os donos de “avarentos” ou “gananciosos”.
Também ao Guardian, Martin Cloake, co-presidente do Tottenham Hotspur Supporters' Trust, explicou que um grupo de Whatsapp com representantes de torcidas dos seis times ingleses envolvidos na Superliga ajudou à canalizar os esforços: “Começamos trabalhando com cada contato que tínhamos, fazendo declarações de unidade entre todos os clubes envolvidos e deixando claro que nós falávamos também por colegas nos clubes fora dos chamados ‘seis grandes'. Não se tratava apenas de nós, mas de todo o esporte”.
Além da Inglaterra, também se posicionou a Football Supporters Europe, que visa a aproximação de grupos de torcidas ao redor do continente. Porém, diferentemente do que aconteceu entre os ingleses, a FSE teve uma posição mais institucionalizada – sem coordenar protestos de maneira tão expressiva, como na Premier League. “A natureza insustentável do futebol moderno – sua falta de regulamentação, desigualdade generalizada e ganância desenfreada – foi revelada para todos verem”, pontuaram.
Outros empoderados pela torcida
E cabe notar como o posicionamento extensivo das torcidas ajudou outros atores do futebol a se colocarem de forma mais veemente contra a Superliga. Jogadores, treinadores e até mesmo diretores podem ser funcionários dos clubes. Contudo, ainda são mais próximos dos torcedores em sua raiz do que exatamente dos proprietários. Se no domingo, durante as coletivas de imprensa, os treinadores pareciam medir palavras para não contrariar os patrões, a partir da segunda-feira, com os torcedores dos próprios clubes apoiando os contrários ao golpe almejado pela Superliga, muitos outros dentro desses times abraçaram a oposição ao projeto.
Os posicionamentos dos treinadores ainda foram um tanto quanto pontuais, com destaque a Pep Guardiola e Jürgen Klopp na Premier League. Entre os jogadores, porém, o movimento foi crescente e liderado pelos próprios capitães. Se durante a pandemia as conversas entre os donos das braçadeiras foram fundamentais para cobrar uma postura mais solidária dos clubes e desmanchar planos de concentração do poder, também se tornou importante que eles indicassem a insatisfação da maioria de seus pares contra uma Superliga que sequer foi conversada internamente.
“Foi fantástico ver os torcedores se mobilizarem imediatamente para garantir que suas vozes fossem ouvidas e essa ideia acabasse jogada fora. Os torcedores estão sempre nos apoiando e é certo que também devemos apoiá-los. Não somos apenas jogadores, somos torcedores que crescemos com o esporte e sabemos o que ele significa para as pessoas nas arquibancadas e em casa. Somos sortudos, vivendo nossos sonhos de infância e também das pessoas que dão seu suado dinheiro a cada fim de semana para ver seus times jogarem”, escreveu de maneira excelente o zagueiro Ben Mee, capitão do Burnley, em artigo ao The Guardian.
“Jogadores atuam pelos torcedores, não pelas pessoas na diretoria. Ninguém marca um gol ou dá um carrinho para receber os elogios dos donos. Fazemos isso pelo sentimento que surge quando a multidão grita. O sentimento de euforia quando vencemos é o mesmo de quando era criança, algo com o qual aqueles que pouco entendem o futebol não podem se identificar. Futebol é competição e diversão – por isso amamos o jogo. Sem isso, são apenas negócios”, complementou.
O futebol que se vive
Talvez o maior erro dos 12 conspiradores da Superliga não tenha sido menosprezar a importância dos torcedores dentro dos clubes. Um erro ainda mais crasso é ignorar o que o futebol representa. Quebrar tradições não apenas mexe com estruturas vigentes, mas também parece ameaçar a forma como se vive e se sente a paixão pelo esporte.
A discussão ao redor da Superliga parece criar uma dicotomia entre quem vê o futebol nos estádios e quem assiste aos jogos através da televisão. Sem muitas dúvidas, o segundo grupo é aquele com mais potencial de crescer e trazer ganhos financeiros aos clubes. Foi em busca destes que os 12 clubes apresentaram seu projeto, visando consequentemente mais visibilidade e contratos mais polpudos. Mas, ainda que as arquibancadas vazias na pandemia tenham mostrado como o futebol consegue ser levado sem torcida presente nos estádios, ou ao menos ignorando ainda mais o interesse desses, está claro como o futebol não vai se sustentar afastado das massas para sempre. O objetivo de qualquer torcedor do sofá é estar presente também nas arquibancadas. Das arquibancadas se transmite o futebol de verdade ao sofá, inclusive a paixão que envolve cada clube. E mais gente estará envolvida com o futebol enquanto mais gente puder trocar o sofá pelo estádio.
O futebol é um jogo local cada vez mais global. As tradições e as identidades ao redor dos clubes, mesmo dos clubes mais poderosos, estão enraizadas quase sempre numa cultura bastante específica e num senso de pertencimento comunitário. E, por mais que outros rincões do planeta se interessem pelos times mais midiáticos, isso não os dissocia de seu caráter regional. Pelo contrário, alguns desses supertimes só conseguem atingir tal alcance por uma identificação que fala mais sobre alguns quarteirões de uma cidade do que exatamente por diferentes países e continentes.
Um torcedor estrangeiro pode adotar um clube por seus títulos, por seus astros, por seu glamour. Normalmente, é isso que faz um time vender mais camisas ao redor do mundo. Porém, craques não são eternos e títulos nem sempre são frequentes – e seriam ainda menos com a tendência de que a Superliga se fechasse em si com o passar dos anos. A fidelidade de uma torcida, mesmo em outro país, tem muito mais a ver com a tradição do clube e com uma identidade criada. Tal capacidade tenderia a se perder numa Superliga bem mais calcada num conceito supranacional, que só emprestaria “as marcas” dos clubes poderosos de início, mas sem grandes necessidades de fixar residência.
Confrontos mais frequentes entre esquadrões e estrelas internacionais, de fato, poderiam gerar mais audiência, como queria a Superliga. Mas até que ponto o futebol pode sustentar sua popularidade baseado no mero entretenimento diante da TV? Isso se afasta potencialmente dos fatores que tornaram o futebol realmente um esporte tão acompanhado ao redor do mundo. E que falam muito mais do sonho local, não dos holofotes globais.
O futebol é um esporte democrático, em seu seio, por permitir que qualquer um o pratique. Qualquer objeto minimamente semelhante a uma bola pode lapidar o talento de um craque. Não são todos que atingem o sonho, mas são todos os que sonham. E tal capacidade de sonhar ainda depende de uma rede de clubes imensa, enraizada em cada localidade, que possibilite tal escalada. A Superliga poderia afetar os próprios sonhos gerados pelo futebol e a maneira como ele atinge em cheio as pessoas. É mais fácil se apaixonar pelo esporte através da bola, não por um escudo reconhecido em todo o mundo.
Outro ponto nevrálgico do futebol como um esporte democrático (e, portanto, tão popular) é entender como a identificação com o global ainda depende de um apego ao local. O fanático por futebol não se cria apenas vendo dois grandes jogos na semana diante da TV. Ele é forjado inicialmente na infância, pegando gosto por jogar e sonhar, mas também consumindo o máximo de futebol que lhe for ofertado. Ver os astros na televisão durante o final de semana e jogar com eles no videogame pode ser uma pedida a gerações mais novas. Mas o sentimento ao redor do futebol, inerentemente, está atrelado a lembranças e vivências. A relações familiares, a pertencimento, a coletivismo e a outros tantos laços que não são criados apenas com um supercampeonato. Aproximar esses potenciais consumidores globais também em torcedores dos clubes locais, forjados em arquibancadas modestas, é algo também importante à popularidade.
Como nenhum outro esporte, o futebol vende contos de fadas. Até pela maneira como o esporte é constituído, com placares mais apertados, ver um time modesto vencendo um mais incensado é possível – ainda que, em partes, isso tenha permitido hegemonias cada vez maiores construídas pelo capital nos últimos anos, sob a falsa premissa de que o caminho é igual a todos. A Superliga, ainda assim, impediria de vez tal discurso – mais romântico do que prático, é verdade. Os mecanismos oferecidos de início pelos 12 clubes pareciam não ser abertos o suficiente, como acontece nos atuais sistemas de descenso e promoção, em que (teoricamente) qualquer um pode pleitear a ascensão através de um trabalho bem feito. Era esse outro tipo de sonho que a nova competição implodiria.
Mesmo que o dinheiro do futebol tenha se concentrado em poucas mãos nos últimos anos, o discurso de peitar gigantes ainda prevalece. O futebol, como o esporte em geral, valoriza ainda mais as glórias escritas em meio às penúrias. Afinal, o futebol ainda é feito de boas histórias, e não precisa estar necessariamente atrelado ao glamour para isso. E as boas histórias precisam de um aspecto mais democrático no acesso ao esporte, precisam de um enraizamento maior para criar diferentes identidades, precisam da simples porta aberta para sonhar. A Superliga fechava tal porta, e não dá para dizer que a popularização do esporte estaria a salvo com o poder e com o dinheiro nas mãos de 12 dirigentes. Muito pelo contrário, o futebol corria o risco de se afastar de sua essência, as pessoas. Além de destruir a pirâmide do esporte como um todo, tal clubinho pensado com a Superliga talvez tivesse impactos irreversíveis na forma de se relacionar com o futebol e nas bases que o tornam realmente popular.
Não só mais poder, mas mais atenção
O golpe frustrado na Superliga não quer dizer, porém, que o futebol vive um mar de rosas com sua estrutura atual. Uefa e Fifa são responsáveis por parte das justificativas dadas pelos superclubes, mesmo os barrando. Muito precisa ser discutido. Dar mais poder aos torcedores é um ponto importante, abordado de maneira recorrente principalmente na Inglaterra. De qualquer maneira, o futebol pode se aproximar mais do povo e, mais popular, conseguir não só recuperar sua economia, mas também distribuir melhor seu dinheiro.
A curto prazo, talvez a mudança mais próxima de se atingir é o aumento de poder aos torcedores dentro das instituições. Muitos caminhos são discutidos, como a garantia de um representante nas diretorias (o que já acontece em algumas agremiações, como o Liverpool) ou a adoção de um modelo mais próximo ao visto na Bundesliga. De fato, o chamado 50+1 dá mais voz aos associados e, de certa forma, bloqueou a Superliga na Alemanha. Cabe lembrar que o Bayern ajudava a encabeçar a ideia anos atrás e, diante das revelações da revista Der Spiegel em 2018, com uma clara posição contrária dos torcedores diante das intenções indicadas pelos dirigentes, os bávaros mudaram de estratégias. Foram muito mais ponderados nos últimos meses e não abraçaram a última empreitada da Superliga quando as chances de uma insatisfação interna seriam enormes.
Adotar o 50+1, porém, seria uma transformação gigantesca dentro das estruturas administrativas da maioria das ligas na Europa. A Bundesliga pode ser um exemplo na participação associativa, mas emular o que acontece na Alemanha significaria uma quebra que não parece imediata – num momento em que aumentar a participação dos torcedores se faz urgente. Sendo assim, outros caminhos poderiam ser adotados.
Na própria Inglaterra, uma alternativa poderia ser a chamada “ação de ouro”. Os donos desses mecanismos não seriam necessariamente acionistas do clube, mas teriam poder de voto sobre decisões significativas. Seria um caminho, por exemplo, para direcionar aos torcedores o direito mais básico sobre algumas “propriedades imateriais” dos clubes – como seus símbolos, sua história e seus títulos. Os proprietários teriam a concessão para usar as “marcas”, mas qualquer mudança que afetasse um estatuto específico sobre tais “bens imateriais” poderia passar por uma consulta entre as torcidas. Como, por exemplo, criar uma liga rebelde que rompesse com a própria história.
Pela estrutura associativa, os clubes espanhóis poderiam ser barrados na Superliga por seus mecanismos internos. A decisão dos proprietários, todavia, corria o risco de não ser impedida na Inglaterra ou na Itália. Por isso mesmo, a possibilidade de manter a propriedade imaterial a grupos de torcedores ou de associados seria tão importante. Seria difícil imaginar que os 12 rebeldes da Superliga se aventurassem em tal empreitada se as suas torcidas, por lei, pudessem barrá-los de usar seus símbolos e representar sua história. A atratividade desses superclubes ao redor do mundo depende de uma identidade construída ao longo de décadas, que não é propriedade de administradores e nem foi comprada por investimentos massivos nos últimos anos.
Se as torcidas podem ganhar voz, o mesmo deve acontecer com funcionários, principalmente os jogadores. Não dá para tratar os atletas como meros empregados dos dirigentes, quando eles são os verdadeiros protagonistas dentro de um clube de futebol. A voz deles também precisa ser mais levada em conta na tomada de decisões e mais estimulada. Talvez o rompimento da Superliga abra canais para isso. Não à toa, surgiram jogadores insatisfeitos com as mudanças anunciadas na Champions League ou com a forma como as entidades os submeteram a riscos durante a pandemia. Tal postura reforça a visão de muitos torcedores. Mais jogos podem gerar mais dinheiro às entidades, mas é óbvio como isso não necessariamente valoriza o produto oferecido.
O futebol também precisa melhorar seus canais de comunicação com os torcedores. Isso não significa resolver tudo por enquete ou ficar restrito aos ultras. Na Europa, até existem entidades para essa aproximação, que se tornaram pouco funcionais com o passar dos anos. Em muitos países, mesmo com protestos seguidos nas arquibancadas, a maioria das decisões é levada em frente sem diálogo. Permitir tal debate, mesmo que a palavra final não seja das torcidas, já seria positivo.
O futebol, afinal, precisa ter consciência que se colocar numa redoma de vidro só atrapalha sua popularização. Nos últimos anos, e não só na Europa, é cada vez mais comum ver os clubes se afastando das massas em troca de lucros e mesmo se blindando de uma relação mais aberta com a comunidade que o compõe. Isso, mais uma vez, se afasta da essência do que é feito o esporte. Isso cria mais abismos.
O futebol precisa se tornar mais democrático também na sua distribuição de recursos e nas aberturas competitivas. Um Getafe x Real Madrid ou um Chelsea x Brighton é “pouco atrativo” exatamente por mecanismos internos que concentram o dinheiro nas mãos de poucos e que só permitem um salto rápido quando há investimentos irreais caindo do céu – o que, por exemplo, tornou possível um conto de fadas como o do Leicester. Caso contrário, os gargalos se tornam mais apertados e fazem mesmo a Superliga soar como natural.
Uma mudança do tipo no futebol mexeria com poderes e, por isso, soa improvável. Mas, se a Superliga destrói a concepção de muitos atores sobre o que é o futebol, um caminho para ajudar na popularização seria exatamente desinflar a bolha e tornar o esporte mais competitivo – para que um Getafe x Real Madrid ou um Chelsea x Brighton atraísse mais jovens e mobilizasse aficionados pelo esporte em mais países. Tal transformação dependeria que os 12 superclubes adotassem uma postura contrária à que tiveram, o que não vai acontecer quando os lucros de seus donos estiverem em risco. Mas o futebol realmente competitivo, e meritocrático, dependeria de um reconhecimento maior aos acertos esportivos e administrativos em suas estruturas. Não é o que acontece, com os responsáveis pela bolha tentando se beneficiar ainda mais através da Superliga.
Depois dessas semanas de caos, a gestão do futebol precisa ter percebido como só se faz um esporte popular com gente, e não numa mesa restrita a 12 senhores feudais. Não é só a pirâmide que ficou em xeque, mas também a própria alma que torna o futebol tão popular. Do ponto de vista do entretenimento, ver um esporte cheio de pontos como o basquete ou o futebol americano pode ser mais interessante. Nesta disputa, o futebol, de gols tão pontuais quanto catárticos, poderia perder sua força que não se concentra apenas no jogo em si. Ou poderia mudar mais, para sequer se reconhecer no futuro.
A riqueza do futebol não se restringe a camisas pesadas ou a garotos-propaganda. A riqueza do futebol ainda depende de gente, de gente que se identifica com o futebol – gente nas arquibancadas, gente nos gramados, gente batendo bola nas ruas e, também, gente diante da televisão. Os sonhos não são feitos só de cifras, mas da paixão por persegui-los. É isso o que conduz qualquer criança que descobre na bola um novo amor, é isso que conduz qualquer clube que surge em seu bairro, é isso que faz cada pessoa dedicar sua fé a um time. É isso que torna o futebol, de raízes locais, num fenômeno global e num mobilizador de massas. Afastá-lo de parte dessa gente, e de parte desses sonhos, não seria sua salvação – seria sua ruína. A resposta precisava ser forte, e foi. Tomara, definitivamente.