Henderson foi um capitão exemplar ao Liverpool, quase até o último instante
Henderson superou desconfianças e críticas para se tornar uma lenda do Liverpool, mas troca o clube pela Arábia sob justas acusações de hipocrisia
Alguns jogadores incorporam o cargo de capitão. Como Francesco Totti na Roma. Como Steven Gerrard no Liverpool. É mais do que qualidade técnica: é personalidade, postura, profissionalismo, comprometimento e liderança. Quando Gerrard foi embora para os EUA, a braçadeira ficou vaga e era difícil imaginar que outra pessoa com essas qualidades emergiria imediatamente. Talvez não tanto quanto o seu antecessor, mas Jordan Henderson foi também um capitão exemplar dos Reds, imortalizado ao levantar as taças que marcaram o renascimento do clube durante a era Jürgen Klopp. O seu lugar no panteão de Anfield está garantido, por mais que sejam lamentáveis as circunstâncias em que se despede, criticado por parte da torcida por ter acertado com o Al Ettifaq, da Arábia Saudita – treinado por Gerrard.
Emlyn Hughes, Phil Thompson, Graeme Souness e Steven Gerrard eram os únicos homens que haviam levantado a taça da Champions League (ou da Copa dos Campeões) antes de Henderson fazê-lo em 2019. O jejum de 30 anos sem títulos ingleses terminou oficialmente quando ele ergueu a Premier League no ano seguinte, em um estádio infelizmente vazio. Está entre os 15 jogadores que mais vezes defenderam o Liverpool. O quinto que mais vezes utilizou a braçadeira de capitão. Conquistou todos os torneios que disputou, com exceção da Liga Europa, e todos os relatos confirmam que foi um líder perfeito, sempre disposto a emprestar o ombro ao companheiro e estabelecendo, pelo exemplo, os padrões de comprometimento e esforço.
Nada mal para quem foi precocemente considerado um erro de Kenny Dalglish quando chegou do Sunderland. Nada mal para quem foi criticado pelo modo de correr na autobiografia de Alex Ferguson. Nada mal para quem quase foi trocado por Clint Dempsey.
O quanto o Liverpool é um clube realmente diferente é tópico de um apaixonado debate na Inglaterra, e os rivais rapidinho dirão que é bobagem. No entanto, os seus torcedores no geral acreditam que exista uma preocupação genuína com a justiça social, uma conexão próxima com a comunidade, e encontraram em Henderson um capitão que representava esse idealismo, como quando liderou os outros capitães da Premier League em uma ação para financiar o Serviço Nacional de Saúde do Reino Unido durante a pandemia.
Representou tão bem que criou uma armadilha para si próprio, agora criticado por aceitar fazer parte do projeto megalomaníaco de um país que criminaliza a homossexualidade depois de se posicionar como um irredutível defensor da comunidade LGBTQ+.
Mais partidas como capitão do Liverpool
- Steven Gerrard (472)
- Ron Yeats (416)
- Emlyn Hughes (335)
- Donald McKinlay (293)
- Jordan Henderson (268)
Do fardo à imortalidade
Como muitos clubes, o Liverpool também tem o seu pacotão de reforços que, de tão ruim, virou folclore. Foi ainda no começo da administração da Fenway Sports Group, que na época estava fascinada pelo potencial da aplicação dos conceitos do Moneyball ao futebol, mas ainda não havia aprendido a usar as estatísticas da melhor maneira. Depois de queimar o dinheiro de Fernando Torres em Andy Carroll, trouxe Stewart Downing, Charlie Adam, Craig Bellamy, José Enrique, Sebastián Coates e um meia-direita do Sunderland chamado Jordan Henderson.
Em sua segunda autobiografia, Alex Ferguson escreveu que Henderson esteve no radar do Manchester United, mas a avaliação havia notado que ele “corria com os joelhos, com as costas retas, enquanto o jogador moderno corre com os quadris”, e isso o deixava suscetível a lesões. Uma crítica direta do maior treinador da história da Inglaterra o acompanhou por muito tempo, especialmente nos primeiros anos em que teve dificuldade para se firmar, para ganhar a confiança de Brendan Rodgers e, principalmente, das arquibancadas.
Henderson foi titular em sua primeira temporada. Kenny Dalglish só não sabia exatamente onde colocá-lo. Jogou pela direita, pelo meio, atrás, na frente, e o Liverpool terminou em oitavo lugar, a sua pior campanha na elite da Inglaterra desde 1993/94, embora tenha chegado às finais das duas copas inglesas. Brendan Rodgers substituiu Dalglish e uma das suas primeiras decisões foi tentar enviar Henderson para o Fulham, em um negócio que traria Clint Dempsey para Anfield. Ele bateu o pé para ficar e acabou sendo mais reserva no primeiro ano do norte-irlandês.
O primeiro vislumbre do jogador que se tornaria viria em 2013/14, quando o Liverpool foi vice-campeão, segurando a barra no meio-campo ao lado de Gerrard para o quarteto com Coutinho, Suárez, Sterling e Sturridge brilhar. Apesar do bom rendimento, não passou incólume porque levou cartão vermelho por uma entrada desajeitada no fim da uma crucial vitória sobre o Manchester City e foi desfalque na derrota para o Chelsea, o jogo da fatídica escorregada do seu novo chefe que custou o título. A temporada seguinte foi um desastre completo para o Liverpool, mas começou a usar a braçadeira de capitão na ausência de Gerrard, que fazia seus últimos jogos pelos Reds.
E quando ela ficou vaga, o fardo de substituir um líder tão identificado caiu nas suas costas e se juntou aos outros que carregava. Porque agora era o sucessor de Gerrard e (pelo menos) metade da torcida ainda nem tinha certeza se era bom o suficiente para jogar no Liverpool. Klopp começou a mudar a história do clube assim que ele foi promovido a capitão, mas seus dois primeiros anos sob o comando do alemão foram prejudicados por problemas físicos. E, ainda em 2017, o treinador sentia a necessidade de ir a público para defender Jordan Henderson.
— Eu vivo nesta cidade e entendo um pouco de como as pessoas falam sobre isso. Ser o capitão do Liverpool é o trabalho mais difícil do futebol mundial porque o homem que usava a braçadeira antes dele era Steven Gerrard. Sinto muito, ele parou de jogar futebol, não podemos tê-lo de volta. Eu quero que todo mundo respeite que Jordan Henderson é nosso capitão porque ele merece e ele é o homem certo para o cargo. Ele é um jogador tão importante para nós. Eu não entendo por que eu tenho que dizer isso.
Em 2018, Gerrard ainda dizia que Henderson “dividia a opinião” dos torcedores, mas não para ele. E também não para quem prestava atenção. A campanha de 2017/18 na Champions League, quando o Liverpool perdeu a final para o Real Madrid em Kiev, foi quando começou a se firmar não apenas como um bom líder, mas também como um grande jogador. Aquela temporada culminou na Copa do Mundo da Rússia, onde Henderson foi um dos melhores jogadores da Inglaterra, que quebrou um longo jejum sem chegar às semifinais.
Foi daí para cima. Em setembro daquele ano, ganhou um novo contrato de cinco anos com o Liverpool e continuou crescendo. Uma das suas atuações marcantes foi nas quartas de final da Champions League contra o Porto, em 2019, quando voltou a atuar um pouco mais avançado. Por necessidade, e Henderson sempre fez o que fosse melhor para o time, estava jogando como primeiro volante. A contratação de Fabinho permitiu que voltasse à função de área-a-área que prefere. Brilhou novamente na épica reviravolta contra o Barcelona na semifinal, desabando no gramado em exaustão. Klopp até pediu desculpas por ter demorado tanto para utilizá-lo em sua melhor posição, mas explicou que “precisávamos dele ali” como camisa 5.
O auge técnico de Jordan Henderson foi a conquista da Premier League. Em um time homogêneo que ganhou quase todos os jogos que importavam, talvez tenha sido o mais regular. Pelo menos foi o que os jornalistas concluíram porque foi eleito o melhor jogador do Campeonato Inglês em 2019/20. Um prêmio que passou pelas mãos de Thierry Henry, Cristiano Ronaldo, Robin Van Persie, Gareth Bale e Eden Hazard, de Ian Callaghan, Kevin Keegan, Kenny Dalglish, Ian Rush, John Barnes, Steven Gerrard, Luis Suárez e Mohamed Salah, agora estava nas mãos daquele cara que não sabia correr direito.
Por que Henderson está sendo criticado?
A defesa de causas sociais como o combate à homofobia e o racismo ganharam espaço no futebol nos últimos anos, o que é uma boa notícia. Mesmo que muitos (incluindo entidades como Uefa e Fifa) façam um ativismo de “faixada”. Literalmente porque às vezes não vai muito além de mostrar uma faixa antes dos jogos. Jordan Henderson fez mais do que isso. Sempre foi muito eloquente quando falou sobre as dificuldades que a comunidade LGBTQ+ encontra para se sentir confortável em um meio ainda muito hostil a ela. Entrava em detalhes, parecia mais consciente do que a média, e passava a impressão de que realmente se importava.
E é por isso que a sua transferência para a Arábia Saudita dói mais nos torcedores do Liverpool do que a de Roberto Firmino. Ou a de Robbie Fowler. Ou a do próprio Gerrard.
Não tem como olhar de outra maneira: abraçou o ativismo quando ele fazia com que ganhasse pontos com a torcida e construía uma imagem de jogador consciente, mas o abandonou assim que chegou uma proposta grande o suficiente. Isso não quer dizer que nunca se importou de fato ou que não esteja se transferindo com ressalvas, mas, pelo menos, que não era algo tão importante quanto deixou transparecer, muitas e muitas vezes.
Como nestas declarações de 2021:
— A ideia de que eles têm que esconder para serem aceitos? É exatamente como muitos membros da comunidade LGBTQ+ se sentem. Nós sabemos disso porque eles nos dizem. Então temos que ouvir, apoiá-los e trabalhar para melhorar. Antes de ser jogador de futebol, sou um pai, um marido, um filho, um irmão e um amigo de pessoas que importam muito para mim. A ideia de que qualquer uma delas se sentiria excluída de jogar ou ver um jogo de futebol, simplesmente por ser e se identificar como é, é incompreensível para mim.
No ano anterior, em dezembro de 2020, ele enviou uma resposta bacana pelo Twitter a um torcedor do Liverpool que havia respondido a uma foto de Henderson usando a braçadeira de capitão com as cores do arco-íris, uma ação recorrente na Premier League, dizendo que, apesar dos problemas que encontrou quando se assumiu homossexual aos 17 anos, o Liverpool sempre fez com que se sentisse em casa:
— Significa muito para pessoas como eu que alguém que é capitão do Liverpool, alguém que foi capitão da Inglaterra, coloque aquela braçadeira de capitão e tenha dado uma resposta tão legal para mim como ele fez — disse o torcedor, Keith Spooner, à Sky Sports.
You’ll never walk alone Keith. If wearing the #RainbowLaces armband helps even just one person then it’s progress. Everyone is welcome at Liverpool Football Club. Hope you enjoyed the game tonight. #YNWA https://t.co/TfIhASribZ
— Jordan Henderson (@JHenderson) December 6, 2020
Alguns meses depois, ele entregou as suas contas de redes sociais a uma instituição de caridade que combate o discurso de ódio na internet e foi nomeado para o prêmio de aliado no futebol da comunidade LGBTQ+ em 2021. Depois, em agosto, o fundador da Kop Outs, um grupo de torcedores homossexuais do Liverpool, Paul Amann, conversou com Jürgen Klopp após torcedores dos Reds usarem um grito homofóbico contra Billy Gilmour em um jogo contra o Norwich. Na ocasião, segundo Amman, Henderson disse: “Se houver alguma coisa que eu posso fazer para ajudar, é só pedir”.
Nesta quarta-feira, a Kop Outs pediu.
— Então eu peço que você cumpra suas palavras aliado declarado e defensor dos direitos LGBT+, dos direitos das mulheres da dignidade humana básica. Não vá para a Arábia Saudita — escreveu o grupo no Twitter.
E expandiu em uma nota oficial:
— Então, Henderson, o que tinha no contrato de muitas milhões de libras que mais te afastou do seu compromisso com direitos humanos? Dadas as escolhas que ele fez recentemente, a Kop Outs duvida e questiona se Henderson alguma vez foi realmente um aliado. Estamos muito decepcionados que ele está escolhendo trabalhar para uma operação de sportswashing, tentando distrair de um regime onde mulheres e pessoas LGBT+ são oprimidas e que regularmente lidera as tabelas de sentença de morte do mundo. O regime foi responsável pelo assassinato de jornalistas Jamal Khashoggi. Chicoteia pessoas apenas por defender os direitos humanos dos outros. É chocante que um pai de crianças pequenas esteja se mudando para um regime que quebra sua promessa de executar juvenis
O grupo não limpou a barra de Gerrard também e criticou até o clube por ter aceitado dinheiro do regime saudita por Jordan Henderson.
— Faz tempo que defendemos que o Liverpool resista ao investimento de países com históricos ruins de direitos humanos. Esperamos que Jordan Henderson e Steven Gerrard não experimentem a realidade dura pela qual o povo LGBT+ e os verdadeiros defensores dos direitos humanos passam — completou.
Se não é justo cobrar que um jogador de futebol acabe com a homofobia do mundo, ou o machismo em um país que apenas outro dia permitiu que mulheres assistam a jogos de futebol, é pelo menos razoável pedir que ele não traia uma bandeira que tanto defendeu para ganhar sete centenas de milhares de libras por semana em vez de apenas uma. É verdade que pode (será que pode?) continuar expressando sua opinião como jogador do Al Ettifaq, mas ainda o faria emprestando sua imagem e seu talento a um projeto de propaganda de um regime que a contraria diretamente.
A lição mais importante da transferência de Henderson à Arábia Saudita é que é fácil ter valores quando não tem nada em jogo.
O que o Liverpool perde com a saída de Henderson?
A prioridade do Liverpool no mercado de transferências era renovar o seu meio-campo. Mas não drasticamente. Contratou dois ótimos jogadores jovens, Alexis Mac Allister e Dominik Szoboszlai, e, apesar de rumores de que traria um terceiro, parecia que pararia por aí. A ideia era ainda manter um núcleo experiente, com Jordan Henderson, Fabinho e Thiago, para ajudar com a transição. Esse plano, como outros, foi atrapalhado pela Arábia Saudita porque, além de Henderson, Fabinho também está próximo de se transferir para lá.
Agora, a história é outra. Entre um ou dois meias devem chegar, com o jovem Roméo Lavia liderando a lista de interessados. As saídas prováveis de dois veteranos da posição, além dos três que já foram embora (Naby Keita, Alex Oxlade-Chamberlain e James Milner), deixam o setor bem desfalcado de experiência, e o Liverpool não tem o perfil de trazer jogadores prontos. Com a interferência saudita, será menos uma transição no meio-campo e mais uma revolução. Um problema extra para uma temporada em que o time de Klopp precisa dar uma resposta.
Em campo, Henderson teve bons momentos na arrancada da reta final da última temporada, mas havia começado a dar sinais de queda de rendimento. Talvez perdesse ainda mais espaço com as chegadas de Mac Allister e Szoboszlai. O principal problema é o vácuo de liderança, até porque o vice-capitão, Milner, também foi embora. Virgil van Dijk é o favorito para assumir a braçadeira.
O timing da transferência atrapalhou o planejamento do Liverpool e também impede que Henderson tenha a despedida que merece, ovacionado por arquibancadas cheias de Anfield. Precisou se contentar com um vídeo publicado no Instagram, outro preço que teve que pagar pelo ganho financeiro que terá, além de ter partido o coração de muitos de seus torcedores.
– Não sei se tenho palavras para resumir como estou me sentindo agora. Estou nos vestiários pela última vez, então vocês podem imaginar que é um momento emocionante. Mas eu preciso tentar explicar o que esses últimos 12 anos significaram para mim e para minha família. Não posso mentir. Houve momentos difíceis. Momentos muito difíceis. Mas quando olho para minha carreira com o Liverpool, sempre lembrarei dos bons momentos -, disse.
– Virar capitão do Liverpool foi uma das grandes honras da minha vida. Desde que a braçadeira passou para mim, eu fiz tudo que podia para me comportar como o capitão do Liverpool deveria. Mas as maiores honras no Liverpool não são as pessoais. Elas são coletivas. Todos nós, todos vocês, juntos. Eu acho o que eu quero mais dizer é simplesmente obrigado. Obrigado por me permitir fazer parte deste clube. Obrigado pelo seu apoio durante os bons e maus momentos. Obrigado por todos os sacrifícios. Eu sempre serei um Red até o dia em que eu morrer. Obrigado por tudo. You'll Never Walk Alone – encerrou.
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