Histórias olímpicas: o W.O. que deu ouro à anfitriã Bélgica

Daqui a um ano, começam os Jogos Olímpicos de Tóquio-2020 (sim, esse será mesmo o nome). Para marcar a data, a Trivela inicia esta coluna em parceria com o OlimpCast, que trará toda semana um texto relembrando algum fato marcante dos torneios olímpicos de futebol
Se não fosse a epidemia do novo coronavírus, nesta quinta-feira já estaríamos no segundo dia do torneio de futebol dos Jogos Olímpicos de Tóquio. Mas, em função do adiamento, a competição começará daqui a exatamente um ano, em 23 de julho de 2021. Assim, iniciamos hoje uma coluna para ir esquentando o clima e trazendo um pouco de boas memórias olímpicas para os leitores da Trivela.
Há pouco mais de um ano, comecei um podcast, o OlimpCast, ou em qualquer agregador do ramo, com episódios sobre cada uma das edições dos Jogos já disputadas – até agora, estamos em Montreal-1976 e a ideia é retomar os episódios nas próximas semanas. Neles, falo um pouco das competições, conto histórias de algumas das estrelas e falo um pouco da política que envolve o esporte em cada momento histórico. O futebol apareceu pouco até agora.
Isso porque o futebol na Olimpíada (falo, claro, do masculino), não é de hoje, é um patinho feio: tem uma limitação de idade só para ele, diferente de qualquer outro torneio disputado mundo afora, e não faz parte do calendário oficial da Fifa, o que obriga as seleções a sofrer para conseguir a liberação de jogadores. É um cabo de guerra esquisito: a Fifa não libera geral para não ter concorrência com a Copa, mas ao mesmo tempo não abre mão de estar na maior festa do esporte; o COI, por sua vez, também não gostaria de ver as estrelas do atletismo e da natação dividindo espaço e mídia com Cristiano Ronaldo, Messi & cia., mas nem por isso dispensa a presença do esporte mais popular do planeta e os milhares de ingressos que ele é capaz de vender.
Mas esse não será o tema da coluna. O que nos interessa aqui não são engravatados nos bastidores, mas bola rolando, festa, suor e lágrimas. E, para iniciar a coluna, voltamos exatamente 100 anos no tempo, para recordar a única decisão de um torneio oficial de seleções até hoje que acabou em W.O.
A zebra atropela os inventores
Antuérpia, na Bélgica, foi o palco do retorno da Olimpíada após a Primeira Guerra Mundial, que havia provocado o cancelamento dos Jogos de 1916, marcados para Berlim e jamais oficialmente cancelados – a Alemanha, uma das protagonistas do conflito, se recusou a admitir o cancelamento, assim como o COI nunca emitiu um documento oficial.
Para os brasileiros, os Jogos de 1920 marcam não só a primeira participação do país numa Olimpíada, mas nossas primeiras medalhas, uma de ouro, uma de prata e uma de bronze, todas no tiro – contamos essa história com mais detalhes no episódio 7 do OlimpCast.
Mas, no futebol, o torneio olímpico contou apenas com seleções do lado de lá do Atlântico – foram a campo 13 equipes europeias e mais o Egito, que se despediu logo na estreia, derrotado por 2 a 1 pela Itália. Dos 16 inscritos, a Suíça desistiu na penúltima hora e a Polônia, em guerra com a União Soviética, simplesmente não apareceu.
A Grã-Bretanha, até então a “dona” do esporte, campeã de todos os torneios olímpicos anteriores (Paris-1900, Londres-1908 e Estocolmo-1912), decepcionou: perdeu logo na primeira rodada para a Noruega, por 3 a 1. Era um time de segunda linha, pois os principais jogadores já eram considerados profissionais, o que ainda não era aceito no movimento olímpico. Mesmo assim, até hoje o jogo é lembrado pelos noruegueses como um de seus principais feitos.
Só que a empolgação dos nórdicos não durou muito: nas quartas, levaram 4 a 0 da Tchecoslováquia, que já havia estreado com um 7 a 0 na Iugoslávia. A Bélgica, que havia passado “no chapéu” na primeira fase, pela ausência dos poloneses, fez 3 a 1 na Espanha; a França marcou 3 a 1 na Itália e a Holanda eliminou a Suécia num eletrizante 5 a 4, na prorrogação. Nas semifinais, os belgas passaram pelos vizinhos neerlandeses por 3 a 0, e os tchecos golearam de novo: 4 a 1 sobre os franceses.
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O espírito olímpico passou longe
Veio então a final, no dia 2 de setembro, diante de 35 mil torcedores no Estádio Olímpico recém-construído prontos para hostilizar os visitantes. Há relatos de que, na véspera, a imprensa belga acendeu os ânimos da torcida apontando os tchecos como “inimigos de guerra”, uma vez que o país acabara de se tornar independente do Império Austro-Húngaro, derrotado no conflito (vale lembrar que os países frutos da dissolução do império, Áustria e Hungria, bem como sua aliada Alemanha, foram impedidos de disputar a Olimpíada).
O trio de arbitragem também não ajudou muito. A Bélgica abriu o placar aos 6 minutos, com Robert Coppée, de pênalti, num lance em que os tchecos reclamaram de falta no goleiro Rudolf Klapka no início da jogada. Aos 30, Alfons Larnoe marcou o segundo – e desta vez os visitantes viram impedimento no lance. Os ânimos foram se esquentando e, aos 39 minutos, uma troca safanões entre Coppée e o lateral-esquerdo Karel Steiner terminou com a expulsão somente do tcheco.
Aí o caldo entornou: o time tcheco foi para cima do árbitro John Lewis, já um senhor sexagenário, e depois abandonou o campo – sob ameaça de agressão de torcedores que invadiram a cancha e rasgaram a bandeira da Tchecoslováquia. O espírito olímpico definitivamente passou longe daquela final. Os visitantes ainda protestaram junto à organização, sem sucesso, e perderam até a medalha de prata – que seria disputada num torneio de consolação, encerrado dias depois, e do qual eles foram banidos após o abandono de campo na final. A Espanha venceu a Holanda por 3 a 1, levando a prata e deixando os rivais com o bronze. O terceiro gol espanhol desse dia foi marcado por Rafael Moreno Aranzadi, o Pichichi, que hoje dá nome ao troféu do artilheiro de La Liga.
A dez anos da primeira Copa, aquele título foi comemorado como mundial pelos belgas, que até hoje seguem sem levantar uma taça em competições de primeira linha – o mais perto foi o vice da Euro de 1980, seguido pelo terceiro lugar na Copa da Rússia, dois anos atrás. E o Estádio Olímpico, palco da decisão, segue em pé, recebendo jogos do Beerschot, da segunda divisão local. Mas esses são outros torneios, outras histórias.