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O comportamento tóxico nos games precisa ser combatido mais seriamente

Mudanças recentes no FIFA levantam a bola e a comunidade reage de diferentes maneiras

Os meses de agosto e setembro são recheados de informações dos simuladores de futebol. Como o ciclo competitivo termina em julho, estes meses são uma espécie de pré-temporada antes do lançamento das novas edições, que acontece em outubro. Uma das novidades do FIFA 22 dividiu opiniões e levantou a discussão sobre a toxicidade da comunidade. Na nova edição, o jogador escolherá se quer ver a comemoração do adversário ou visualizar a reação do próprio time ao tento levado. A tentativa da EA Sports é diminuir o estresse nas partidas, em especial as online, e criar um ambiente mais saudável de competição. Na prática, esta é só a ponta de um iceberg muito maior e que não se limita aos jogos de futebol.

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O comportamento tóxico passa por atitudes anti-jogo e agressões verbais e não-verbais nos modos multiplayer dos games. Alguns são verdadeiros crimes, como racismo ou injúria racial, e não são nenhuma novidade para quem tem por hábito jogar multiplayer. Outros agem mais na base da irritação mesmo, como ficar segurando a bola na defesa vencendo ou algumas comemorações específicas de gol.

Fato é que a toxicidade está presente neste ambiente e é um fenômeno incentivado pela impressão de anonimato da internet, fazendo com que os indivíduos se sintam menos retraídos e cometam atitudes que estariam menos propensos a fazer em ambiente real. Para se ter uma noção, segundo o portal Olhar Digital, mais de 25 mil avisos relacionados a conteúdo ofensivos foram notificados e mais de 9 mil contas foram banidas apenas no FIFA 21.

Campanha no FIFA contra o racismo

Os casos de injúria racial são, infelizmente, recorrentes na comunidade gamer e no multiplayer dos jogos de futebol. Basta jogar a Weekend League, principal competição do Ultimate Team que acontece aos finais de semana, que você receberá diversos xingamentos após os jogos. Alguns deles terão cunho racial, pois é uma das principais formas de se xingar brasileiros no servidor sul-americano em que estamos. Aliás, já perdi a conta de quantas recebi este tipo de mensagem.

Dentro do jogo, há ações como a “No Room for Racism”, campanha da Premier League e que está presente em diversos formatos, anúncios, uniformes, badges, logos e afins. É uma forma de agir, mas o problema é mais profundo. Para a conta deste jogador ser punida por este comportamento é preciso que haja reincidência e diversos jogadores relatem casos similares.

Além da cor da pele, o machismo e a LGBTQIA+fobia estão presentes na comunidade de diferentes formas. Alguns casos são explícitos e chegam ofensas diretamente, tanto pelas mensagens privadas como também pelo bate-papo por áudio dentro de alguns modos de jogo.

Outros comportamentos são mais velados, como a criação de jogadores ou times com nomes ofensivos. Não ficaremos dando palco a esses babacas, mas basta você imaginar algumas figuras ou times que sofrem recorrentemente com isso, como o São Paulo, por exemplo, e será fácil entender como este tipo de violência acontece. Apesar de menos explícitas, não são menos ofensivas do que as agressões diretas.

Neste caso, é uma parte do futebol sendo reproduzida fielmente nos videogames. Se ainda não foi possível extinguir estes comportamentos nas torcidas, tampouco será o ambiente online, em que estas pessoas tendem a aproveitar a sensação de anonimato, que conseguirá fazê-lo.

Outro caso de comportamento tóxico é tirar proveito de tragédias para levar vantagem. Enquanto Christian Eriksen passava por um mal súbito no jogo Dinamarca e Finlândia, na Eurocopa 2020, o preço da carta do jogador no FIFA Ultimate Team, dobrava de preço. Dentro do FUT há o Mercado de Transferências, que é basicamente regulado pela lei da oferta e procura.

Os gamers, ao verem o jogador ao chão, correram para comprar as cartas do jogador dinamarquês e aproveitar para vendê-lo mais caro. Resultado: as cartas dele foram extintas, ou seja, todas foram compradas, e depois listadas mais caro. Antes do jogo, a carta de Eriksen custava 10 mil moedas, em pouco tempo ela estava sendo vendida a 20 mil, que é o preço máximo das cartas ouro — ou seja, poderia ser ainda pior.

Cristiano Ronaldo e sua famosa comemoração pedindo calma (Imago / OneFootball)

A chegada da icônica comemoração “Calma” – Calm Down, dentro do FIFA –  de Cristiano Ronaldo, foi um verdadeiro furor. O gajo havia calado o Camp Nou em 2012 e o simulador de futebol adicionou a animação do jogador pedindo calma, apontando para si e dizendo “Calma, eu tô aqui”. A questão é que a comemoração desencadeou uma forma de desestabilizar mentalmente seu adversário.

Muitos gamers começaram a se irritar com a constante reprodução em determinados momentos do jogo e, para o FIFA 21, a produtora EA Sports retirou a comemoração dos modos online, de modo a evitar o estresse proveniente das provocações. É uma forma de tentar, mas outras comemorações tomaram o lugar dela como uma das principais para provocar. Para a edição 22, uma nova opção faz com que o jogador escolha se quer ver a comemoração do adversário ou apenas a reação do seu time. Neste caso, faz mais sentido do que retirar animações.

É importante entender que o problema é estrutural. O que acontece nos games é a reprodução de uma realidade que vai além do ambiente virtual e reflete um lado da nossa sociedade. Assim como ocorre com o comportamento de manada em estádios, o indivíduo se sente menos desencorajado a praticar tais atos no ambiente online por ter a crença de que não será punido.

De fato, poucas vezes ocorre algo efetivo como afastamento ou criminalização. Apesar disso, também é preciso entender quais partes do jogo também acabam levando a este comportamento. No FIFA, por exemplo, os xingamentos são recorrentes durante a Weekend League. O formato com 30 partidas a serem disputadas no final de semana, o servidor muitas vezes sobrecarregado e os bugs de jogo recorrentes do simulador, geram um ambiente suscetível à irritação. Isso justifica crimes e injúrias? Com certeza não! Mas a recorrência deve resultar, para a versão do FIFA 22, na diminuição nos jogos durante o final de semana, por exemplo.

O futebol é um fenômeno sociocultural e, seja em ambiente real ou virtual, carrega pedaços de nós enquanto coletivo. É essencial entender as partes envolvidas e responsabilizá-las conforme a atuação. Enquanto jogadores, devemos reportar os casos, não reproduzir comportamentos agressivos e possibilitar um ambiente amistoso. Às produtoras, cabe responsabilizar e punir exemplarmente aqueles que violam os códigos de conduta pré-estabelecidos e manter uma comunicação próxima das empresas detentores do hardware, para que as medidas sejam feitas em ambiente do game e do console.

É claro que a provocação e a malandragem pertencem ao futebol, mas passou da hora de tentarmos sair da celebração à esperteza e buscarmos a essência esportiva do jogo. Se retirar algumas comemorações passar por isso, acredito ser um preço muito pequeno a se pagar frente aos recorrentes ataques. Não resolve o problema, mas pode ajudar a diminuir a violência no ambiente virtual.


Foto de João Belline

João Belline

Jornalista de formação, louco dos esportes por opção. Depois de muito escalar Cartola, jogar Winning Eleven, escrever escalação dos sonhos no caderno e topar o dedão na rua, falar sobre futebol virou uma necessidade. É mais um leitor que buscou espaço no time da Trivela e entende que futebol está acima do clube.
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