Rapinoe conquistou status de lenda em campo, mas seu impacto fora dele foi gigantesco
Campeã do mundo, eleita melhor do mundo por sua capacidade de decisão e gols fundamentais, Megan Rapinoe teve um grande impacto no esporte também fora de campo
Duas vezes campeã do mundo. Bola de Ouro em 2019. Mais de 200 jogos pela seleção americana. Megan Rapinoe disputou neste domingo o seu último jogo com a camisa da seleção americana, em uma despedida emocionante. O amistoso contra a África do Sul no Soldier Field, em Chicago, foi o último jogo da atacante de 38 anos pelos Estados Unidos. Foi uma despedida com o status que ela conquistou ao longo da carreira: o de lenda.
Vencedora em campo, decisiva nos grandes palcos e com títulos para corroborar uma carreira gigantesca, Rapinoe conseguiu muito mais do que troféus e reconhecimento pelo seu futebol. Ela teve papel importante em tornar o futebol feminino ainda maior, deixa um legado que inclui a igualdade no pagamento de premiações para as seleções feminina e masculina dos Estados Unidos.
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— U.S. Women's National Soccer Team (@USWNT) September 25, 2023
Uma atleta de múltiplas modalidades na escola
Nascida em 5 de julho de 1985 em Redding, na Califórnia, Rapinoe sempre atuou no futebol ainda na escola. Foi treinada pelo seu pai no Ensino Fundamental e só passou a jogar com outro técnico no equivalente ao Ensino Médio americano, o High School. Mas ela decidiu não jogar pelo time da escola. Não futebol, ao menos. Ela foi jogar pelo Elk Groove Pride, um time que joga na terceira liga em importância no futebol feminino dos Estados Unidos, em 2002, aos 17 anos.
Não quer dizer que Rapinoe não disputava torneios pela escola. Ela disputava provas de atletismo e jogou também basquete em todos os anos do High School. Era, desde então, uma atleta, com capacidade enorme, e que usava isso. Jogou pelo Elk Groove Pride até 2005, onde foi companheira de clube da sua irmã e também de Stephanie Cox, que seria sua companheira mais adiante na seleção americana. Rapinoe precisava viajar duas horas e meia para jogar com o time. Valeu a pena.
Em 2005, Rapinoe decidiu jogar pela Universidade de Portland, com uma bolsa de estudos para ser atleta pela equipe. Jogou pelo Portland Pilots, time da Universidade de Portland. Foram 30 gols em 60 jogos disputados. Era só o começo.
Em 2009, ela foi escolhida pelo Chicago Red Stars no draft. Foi o seu primeiro contrato efetivamente profissional e jogou pela franquia em 2009 e 2010. Jogaria também pelo Philadelphia Independence, pelo MagicJack e pelo Sydney FC, da Austrália, em 2011. Em 2012, jogou rapidamente pelo Seattle Sounders. Em 2013, defendeu o Lyon, principal clube europeu na época. Voltou aos Estados Unidos em 2013 para jogar pelo OL Reign, franquia ligada ao próprio Lyon.
Jogadora da seleção desde os 16 anos
Como é muito comum no futebol feminino, especialmente para a geração de Rapinoe, ela foi muito precoce. Ainda em 2002, jogou pelo time sub-16 da seleção americana. Jogou também pelo time sub-20 dos Estados Unidos. Disputou o Mundial sub-19 pelos Estados Unidos em 2004 e o time foi terceiro colocado, vencendo, na disputa pelo terceiro lugar, o Brasil de Marta e Cristiane.
Foi em 2006 que Rapinoe treinou pela primeira vez com a seleção principal dos Estados Unidos. Seria naquele ano que ela estrearia pelo time, em 23 de julho de 2006, em amistoso contra a Irlanda. No dia 1º de outubro de 2006, marcou seus primeiros dois gols com a camisa americana em amistoso contra Taiwan.
O início da história teve um percalço. Ela estava cotada para estar na Copa do Mundo de 2007, mas uma grave lesão de ligamento a tirou do torneio. Outra lesão, também no ligamento, a tirou dos Jogos Olímpicos em 2008. Ela só voltaria a jogar pela seleção em 2009. E a história seria muito diferente dali em diante.
Brilho na Copa do Mundo
Em 2011, Rapinoe conseguiu brilhar. Marcou vindo do banco contra a Colômbia, no segundo jogo da fase de grupos, e depois teria um papel crucial contra o Brasil, nas quartas de final. Ela entrou durante o jogo e foi dela o cruzamento preciso, na cabeça de Abby Wambach, no minuto 122, na prorrogação, que garantiu o empate. Nos pênaltis, as americanas venceram. No fim, o time perderia a final para o Japão, nos pênaltis.
Em 2012, o título viria. Desta vez, na Olimpíada de Londres. Ela liderou o time americano à conquista do ouro, em uma revanche contra o campeão mundial, Japão, no Estádio de Wembley. Aquele ano de 2012 foi o melhor de Rapinoe com a camisa da seleção americana, com oito gols e 12 assistências ao longo de todo ano.
Em 2015, Rapinoe foi novamente uma jogadora importante na Copa do Mundo que os Estados Unidos conquistaram, desta vez no Canadá. Titular, ela teve um papel importante no time comandado por Jill Ellis. Rapinoe disputou a Olimpíada de 2016, no Rio, mas os Estados Unidos decepcionaram. Perderam as quartas de final para a Suécia.
A Copa do Mundo de 2019 foi provavelmente a mais marcante na carreira de Rapinoe. Naquele ano, os Estados Unidos chegaram como favoritos, como é habitual, mas o time conseguiu entregar tudo que se imaginava. As americanas venceram os sete jogos no torneio, conquistando o título de forma impecável.
Rapinoe foi decisiva quando se esperava isso dela: nas oitavas contra a Espanha, nas quartas contra a França. Ficou fora do jogo contra a Inglaterra, na semifinal, mas voltaria para a final, marcando de pênalti um dos gols do jogo que as americanas perderam por 2 a 0 a Holanda. Simbolicamente, ela ganhou ainda mais força batendo de frente em questões como a igualdade de premiação para os times masculino e feminino — isso mesmo com a seleção feminina dos Estados Unidos gerando mais dinheiro para a federação que a masculina.
Rapinoe ainda jogaria a Olimpíada de Tóquio, em 2020 (adiada para 2021 por causa da pandemia). As americanas não conseguiram o título e ficaram com a medalha de bronze. Ela jogaria a sua última Copa do Mundo de 2023. Ela anunciou antes do torneio que aquele seria seu último Mundial. Ela vai jogar a temporada da NWSL até o fim do ano pelo OL Reign antes de pendurar as chuteiras definitivamente como profissional.
Na sua última partida, ela participou de um dos gols da vitória sobre a África do Sul por 2 a 0. foi substituída aos 54 minutos, ovacionada pelo público. Deixa, para sempre, a seleção feminina como jogadora. Agora, ela é apenas uma lenda.
A influência fora de campo
A despedida da seleção americana, porém, é um momento muito marcante. Ela entrou em campo contra a África do Sul como capitã do time, uma homenagem a tudo que ela significa não só para a seleção americana, mas pelo que ela fez em termos simbólicos. Ainda em 2016, em um jogo do OL Reign, ela se ajoelhou no hino como protesto, em solidariedade a Colin Kaepernick, então quarterback do San Francisco 49ers — que perderia não só o emprego, mas a chance de jogar novamente na NFL por seu protesto.
O gesto da Rapinoe se somou a um debate acalorado, que fez com que alguns políticos quisessem que as instituições esportivas estabelecessem punições aos atletas que fizessem esse tipo de protesto. Rapinoe nunca se dobrou às críticas e nem às ameaças.
Antes da simbólica e espetacular conquista da Copa do Mundo de 2019, Rapinoe foi uma das vozes mais fortes no processo que as jogadoras moveram contra a US Soccer, a Federação Americana. Sua voz foi muito forte e suas atuações em campo ajudavam a dar ainda mais visibilidade para o que ela dizia.
“Não sei se houve um ponto de inflexão, mas a sensação era de que este era o próximo melhor passo para nos colocarmos na melhor posição possível para continuarmos a lutar pelo que acreditamos ser certo e pelo que a lei reconhece. E tentar alcançar a igualdade perante a lei, condições de trabalho iguais, salários de trabalho iguais”, afirmou Rapinoe sobre o processo.
O acordo só foi alcançado em 2022, quando a US Soccer anunciou um acordo que se tornou histórico. A disputa das americanas ajudou a impulsionar outras disputas que já aconteciam em outras partes do mundo. Jogadores de seleção recebem diárias e também premiação por resultados e a disputa era justamente para que a seleção feminina tivesse as mesmas bases do masculino.
A disputa judicial manchou a imagem da US Soccer, que teve inclusive uma troca na sua presidência. Depois de admitir que pagava ao time feminino só 40% do que o time masculino recebia, o acordo concordou em pagar às jogadoras retroativamente, em um total de US$ 24 milhões. A batalha acabou se pagando e as americanas, lideradas e simbolizadas por Megan Rapinoe, serão lembradas para sempre não só como vencedoras e campeãs, mas como pioneiras no futebol feminino mundial.
Com o tamanho de lenda que tem, Rapinoe certamente continuará sendo uma influência grande no futebol feminino com a sua voz. Sua turnê de despedida como jogadora na NWSL vai encerrar a sua carreira de atleta profissional, mas ela continuará sendo alguém que terá voz para falar sobre esporte, sobre igualdade e sobre questões de gênero que são relevantes de serem debatidas na sociedade e, por anos, foram jogadas para baixo do tapete.
O tamanho de Rapinoe é gigantesco pela jogadora e pela atleta, mas ainda maior pela personalidade que ela mostrou para usar a sua voz, de uma grande atleta profissional, para causar mudanças que vão para muito além dela mesma. Isso é algo que poucos conseguem, seja em qual área esteja.
Pinoe out.
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Good night. pic.twitter.com/qDHu1fDdSg