Bonmatí honrou um legado e escreveu uma nova história ao DNA campeão da Espanha
Melhor jogadora da Copa, Bonmatí se inspirou numa tradição desde a base do Barcelona e agora serve de inspiração na seleção campeã do mundo
A camisa 6 da Espanha tem ares míticos desde 2010. Foi com ela que Andrés Iniesta cravou, no Soccer City, o gol que fez a Roja campeã mundial pela primeira vez. Aitana Bonmatí era uma menina de 12 anos na época, fanática pelo Barcelona, que idolatrava Don Andrés e também Xavi. Treze anos depois, é a meio-campista blaugrana que transforma o 6 num número ainda mais lendário para a Espanha, em outra conquista de Copa do Mundo. Bonmatí recebeu a Bola de Ouro como a melhor jogadora do Mundial de 2023, merecidamente. Gastou a bola ao longo do torneio e especialmente na final, flutuando em campo na vitória por 1 a 0 sobre a Inglaterra. É a maestrina que Pep Guardiola disse “amar ver jogar”. É a craque que carrega um DNA de futebol tão conhecido em seu país, honrando o legado do passado e também abrindo caminhos ao futuro.
Aitana Bonmatí representa a luta feminina desde o seu batismo. O nome da meio-campista quebra o padrão comum da Espanha. Se normalmente no país o sobrenome paterno vem antes do materno, os pais da garota resolveram inverter a ordem: Bonmatí é o sobrenome de sua mãe. Durante seus dois primeiros anos de vida, aliás, ambos os sobrenomes da menina eram maternos. Foi apenas em 2000 que a lei espanhola permitiu tal inversão. Então, a família de Aitana resolveu atualizar seus registros para que, além do Bonmatí, ela levasse o Conca de seu pai.
Nascida na Catalunha, Bonmatí tinha uma forte influência do futebol numa região em que o principal clube é símbolo também de identidade. E esse orgulho local foi assunto da garota na própria casa, com seus pais sendo professores de língua e literatura catalã. No esporte, contudo, ela se interessou inicialmente pelo basquete. Foi aos sete anos, numa época em que Ronaldinho fazia mágica não tão distante de sua casa, que ela se decidiu por chutar uma bola. Era uma questão também de orgulho: quando ia brincar com os meninos no pátio de sua escola, a futura meio-campista sofria bullying. Era muito pequena e inclusive tomava pancadas propositais nas disputas. Ficou com ganas de se impor.
“Eu não me escondia. Se me insultavam e me batiam, eu fazia mais. Não aceitavam que uma menina pequena pudesse jogar como eles, dava raiva. Mas aquilo foi bom, porque sem caráter ou ambição você não chega a nada”, recontou Bonmatí, anos depois, em entrevista ao El País. Naquela época, a menina corajosa passou a atuar em equipes locais de futebol infantil. Jogava em times mistos, com garotas e garotos. Isso auxiliou a moldar seu talento e também sua intensidade dentro de campo. Até que, aos 13 anos, recebesse o convite para treinar nas categorias de base do Barcelona.
A chegada de Bonmatí a La Masía acontecia exatamente num momento sublime para o Barcelona. Pep Guardiola estava à frente da equipe que revolucionou o esporte. “Os anos em que Guardiola estava no Barça foram alguns dos mais feliz da minha vida, porque uma terça ou quarta de Champions fazia os dias diferentes. Eu fazia as coisas até com mais vontade, porque à noite eles jogavam”, recontou. “Minhas referências são Xavi e Iniesta como jogadores, além de Guardiola como técnico. E Cruyff, que tinha essa filosofia que os demais assumiram, entendendo o jogo da mesma maneira”. Mal sabia ela que, tempos depois, as lendas culés seriam seus fãs.
A escola do Barcelona moldou Bonmatí. Basta olhar para o número 14, que usa no clube, uma referência a Cruyff. A adolescente precisou se empenhar dentro das estruturas. Muitas vezes teve que ir sozinha aos treinos, por causa de uma doença crônica que impedia a mãe de acompanhá-la. O esforço valeu a pena, pela maneira como ela se tornou uma jogadora completa, com o DNA barcelonista. Pode atuar em diferentes posições no meio-campo, sempre com a mesma maestria para distribuir o jogo e mudar a direção na condução. É uma aprendiz do melhor que o Barça já ofereceu.
Bonmatí estreou na equipe principal do Barcelona em 2015/16, quando o elenco feminino já era totalmente profissional. E, diferentemente de outras canteranas, mesmo badaladas como Alexia Putellas, ela nunca passou emprestada a outro clube em sua carreira. Carrega uma tocha do que significa o barcelonismo, que inclusive a fez recusar propostas de outras ligas. Potências como o Lyon e o Chelsea tentaram levá-la. Bonmatí não quis porque se sentia feliz no Barça. Recusou por ser “muito culé”, segundo suas próprias palavras.
Esse apego ao Barcelona levou Bonmatí sempre muito longe. A meio-campista está entre os pilares das grandes conquistas do clube nos últimos anos. Faturou as quatro últimas edições do Campeonato Espanhol. Seria também figura central nas façanhas na Champions League. Em 2020/21, quando o Barça levou o título continental inédito entre as mulheres, Bonmatí arrebentou na final. Terminou eleita a melhor em campo nos 4 a 0 sobre o Chelsea. E o reconhecimento se tornou maior na nova taça em 2022/23: a camisa 14 foi escolhida como a melhor do campeonato. Conseguiu ser vice-artilheira e ainda líder em assistências.
Já a trajetória na seleção da Espanha começou nas categorias de base. Bonmatí logo apresentou sua sede de vitórias, com os títulos no Campeonato Europeu Sub-17 de 2015 e no Europeu Sub-19 de 2017. Também disputou finais nos Mundiais Sub-17 e Sub-20, vice em ambos os torneios. Sua estreia pela seleção adulta aconteceu em 2017. Esteve na Copa do Mundo de 2019. Aos 21 anos, era uma mera coadjuvante na equipe eliminada nas oitavas de final. Nem saiu do banco na derrota para os Estados Unidos. Seu protagonismo cresceu depois, já como peça central na Euro 2022. Contudo, não evitou a eliminação diante da Inglaterra nas quartas de final.
Bonmatí confiava no potencial da Roja antes da Copa do Mundo de 2023. Via como sua seleção evoluía em vários aspectos: tinha grandes doses de habilidade, enquanto diminuía as distâncias em relação às outras quanto ao físico e à verticalidade. Ela mesma sempre se mostrou empenhada em oferecer a melhor versão de si. A meio-campista costuma preparar a cada temporada uma série de treinamentos para melhorias específicas. Chegou a focar em posicionamento ofensivo, depois nas transições, também nos chutes com o pé esquerdo. Não à toa, sua canhota rendeu frequentes gols neste Mundial.
E a personalidade de Bonmatí é muito marcante. Ela sempre ressalta em entrevistas como sua ambição guia seus passos. É muito intensa, a ponto de querer viver o futebol durante o dia inteiro. Tal vício inclusive a levou a um quadro de ansiedade, que passou a tratar com ajuda profissional de uma psicóloga, dosando melhor o seu tempo. O que ela preservou foi a dedicação máxima nos treinos, de quem costuma ser a primeira a chegar e a última a sair. Já nas partidas, é inquieta e fala bastante, do tipo que contagia as companheiras pelo gênio forte. É uma verdadeira liderança.
Melhor jogadora da Champions, era fácil apostar que Bonmatí faria uma grande Copa do Mundo, no auge da forma aos 25 anos. Foi o que se viu na Austrália e na Nova Zelândia. A meio-campista é uma jogadora muito intensa e muito técnica ao mesmo tempo. Preenche a intermediária. E essa pegada se notou crescente ao longo do Mundial. Bonmatí se saiu bem nas duas primeiras partidas da Espanha, sobretudo na estreia contra a Costa Rica. Não rendeu apenas no confronto direto contra o Japão, com a goleada contundente das nipônicas. Aquele revés, todavia, mexeu com seus brios e possibilitou a evolução das espanholas.
O divisor de águas para a Espanha na Copa do Mundo foi a partida contra a Suíça, nas oitavas de final. Foi quando surgiu a melhor versão de Bonmatí. O atropelamento da Roja estava sob a batuta da meio-campista, cerebral e onipresente na pressão sufocante de sua equipe. Foram dois gols e duas assistências. As espanholas se revigoravam para a sequência do torneio. Bonmatí também se destacou nas vitórias contra Holanda e Suécia, não com um papel decisivo nos desfechos agônicos, mas pela influência na imposição da Espanha em boa parte do tempo. Até que a decisão em Sydney possibilitasse o maior dos feitos e também uma revanche.
Bonmatí poderia se provar de novo contra a Inglaterra. Desta vez, com um final feliz. A meio-campista teve uma atuação dominante ao longo dos 90 minutos da decisão. Se a Espanha controlou a partida com uma facilidade até inesperada, muito dependeu da camisa 6. Mandou prender e soltar, com a cabeça erguida. Não apareceu tanto no desfecho das jogadas, mas primou pelos passes e também pelo combate quando preciso. Já no final, em que a Roja precisava botar as Lionesses no bolso, era o controle de bola da craque que fazia a diferença.
A vitória de Aitana Bonmatí é de uma jogadora que não abandonou suas convicções, mas colocou a seleção da Espanha acima de tudo. A meio-campista estava entre as jogadoras que iniciaram a revolta contra os métodos da comissão técnica e pediam a demissão de Jorge Vilda, apontado como autoritário e controlador. A federação não ouviu as atletas, mas a camisa 6 preferiu priorizar a Copa do Mundo ainda assim. Voltou para ser a condutora de uma equipe de tantas estrelas, com tantas companheiras do próprio Barcelona. Se uma das queixas é sobre os treinos oferecidos na seleção, certamente o entrosamento do Barça impacta positivamente. E a meio-campista faz a equipe orbitar ao seu redor. Impulsiona jogadoras fantásticas como Jennifer Hermoso, Salma Paralluelo e Olga Carmona – outras três gigantes nesta Copa.
Bonmatí também costuma ter uma postura ativa em outras questões, para melhorar a realidade do futebol feminino como um todo. Participa de causas sociais, como embaixadora da ONU para refugiados. E cuida do próprio futuro, cursando paralelamente educação física. É uma atleta que não indica que deixará o futebol tão cedo e que parece disposta a aproveitá-lo para conquistas maiores além das chuteiras. Pela boa cabeça, quem sabe, até para representar mais um passo na revolução que o futebol feminino delineia.
“Sempre me preocupei com os mais vulneráveis. E, sendo mais famosa, tendo uma voz, me envolvi mais. Faço isso porque sinto. Está no DNA da minha família, porque meus pais sempre lutaram muito contra as desigualdades sociais e de gênero. Creio que vivemos numa sociedade sexista, ainda que as coisas vão mudando. Mas há muito por fazer. A mulher fica em segundo plano em muitos cenários e também na forma como é tratada. Também ocorre no esporte e no futebol”, refletiu, ao jornal El País.
Agora, Bonmatí está no topo do mundo para falar mais alto. E deve permanecer no centro dos holofotes por mais tempo. Talvez não haja ganhadora da Bola de Ouro da France Football e do Prêmio The Best mais óbvia, pela Copa do Mundo que fez, unida à temporada fantástica com o Barcelona. A camisa 6 será um espelho para mais mulheres por seu talento. E também por uma trajetória que merece ser conhecida. Que pode levá-la além.