Futebol feminino

Dia Internacional da Mulher: Como a Primeira Guerra impulsionou o futebol feminino

Estado de exceção beneficiou as mulheres, mas liberdade para jogar durou pouco

O futebol feminino se afirmou nos últimos 25 anos. A prática do esporte entre as mulheres ganhou a sua Copa do Mundo e o seu torneio Olímpico, assim como uma estrutura razoável para os clubes nos principais países praticantes.

Ainda falta, no entanto, muitíssimo para chegar próximo do futebol masculino. As diferenças são abismais, sobretudo as econômicas. Um presente que torna praticamente surreais os primórdios do futebol feminino, quando os públicos eram enormes e o prestígio, tão grande quanto o dos homens.

De que forma a Primeira Guerra Mundial ajudou o futebol feminino?

O estado de exceção beneficiou as mulheres. O início da Primeira Guerra Mundial permitiu que elas ocupassem os campos de futebol no Reino Unido. As diferenças de gênero eram ignoradas pelo espetáculo que as equipes femininas também proporcionavam, levando milhares de pessoas aos estádios e desfrutando de ótima reputação em todo o país.

Um auge vivido por poucos anos, até os homens “buscarem de volta os seus direitos”. Mas que, ainda assim, deixou um passado riquíssimo a ser relembrado.

O desenvolvimento do futebol no Reino Unido era incomparável na década de 1910. Por mais que o esporte já se espalhasse pelo mundo naquela época, ensinado principalmente por trabalhadores britânicos e estudantes que passavam pelas universidades do país, ele se restringia aos centros urbanos dos outros países.

Já na ilha, ele passou a ser incentivado pelo próprio governo. Nos primórdios, era uma maneira de exercitar os valores da nobreza. E, com sua popularização, passou a ser usado para dar lazer e evitar os riscos de greves junto aos operários.

A adoção do regime profissional, em 1885, acabou sendo o último passo para que o futebol quebrasse as barreiras sociais.

Ainda assim, por mais que o ambiente nas arquibancadas fosse diverso, apenas os homens costumavam entrar em campo. O caráter violento do esporte era uma das justificativas para afastar as mulheres, embora as desigualdades nas liberdades individuais em toda a sociedade fossem evidentes há 100 anos.

O estouro da Primeira Guerra Mundial, no entanto, fez com que muitas diferenças de gênero fossem deixadas de lado para que todos defendessem os interesses da coroa britânica.

Após 25 anos de sua criação, o Campeonato Inglês teve que ser interrompido com o início do conflito, em 1914. Muitos jogadores, mesmo os profissionais, passaram a ser convocados para integrar o exército. Já alguns estádios chegaram a ser desativados para servirem em meio à batalha – como o White Hart Lane, que se tornou depósito de munições.

Essa mobilização só não significava que o futebol deixava de ser praticado em caráter amador, pelo contrário. Ele era incentivado pelas autoridades para desenvolver o físico, promover o trabalho em equipe, manter a disciplina e elevar o moral.

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Não só no futebol: mulheres ocuparam diversos papéis que eram dos homens na Primeira Guerra

Enquanto os soldados seguiam para a Europa Continental e jogavam futebol mesmo nas trincheiras (como no célebre episódio da trégua de Natal), as mulheres passavam a ocupar de forma massiva os lugares dos homens nas indústrias.

A produção de itens bélicos essenciais se intensificou a partir de 1914, graças às mulheres que emprestaram seus braços na pesada produção de munição, equipamentos de guerra, navios, roupas especiais e mantimentos.

Da mesma forma como elas foram absorvidas por trabalhos praticamente exclusivos aos homens, também puderam experimentar o gosto de calçar chuteiras. O esporte tinha suas lições conceituais às trabalhadoras. Também servia para estimular a disciplina e o trabalho em equipe, além de servir de válvula de escape para a dura realidade vivenciada, em que milhares de seus parentes eram dizimados na guerra.

E os jogos entre as equipes femininas passaram a ocupar alguns dos principais estádios da Inglaterra. As partidas, contra outros times fabris e de soldados lesionados, serviam para arrecadar fundos. Sedentas pelo esporte popular, milhares de pessoas enchiam as arquibancadas. Viam um jogo bastante técnico e habilidoso, que evoluiu rapidamente.

Fim da Guerra e futebol feminino é proibido pela Federação Inglesa

Por mais que o Dick Kerr Ladies fizesse sucesso na virada da década, o final da Primeira Guerra Mundial voltou a sufocar o futebol feminino.

A partir de 1918, as mulheres começaram a deixar as fábricas e reocupar “os seus lugares de direito na sociedade” – ou, como era entendido na época, dentro de casa com os afazeres domésticos. Mesmo especialistas em saúde passaram a dizer que o futebol não era a prática esportiva ideal para o físico das mulheres e passou a ser condenado.

O ápice da intransigência aconteceu em dezembro de 1921. Diante da concorrência pelo público do Campeonato Inglês, que havia recomeçado, a Football Association decidiu então proibir o futebol feminino. Ele pediu que seus clubes recusassem emprestar os seus estádios para as partidas entre mulheres.

“O jogo de futebol é totalmente inadequado para o sexo feminino e não deveria ser encorajado”, escreveram à época. O futebol feminino era jogado longe dos holofotes, embora não tenha deixado de ser praticado por causa disso.

Somente cinco décadas depois é que a FA revogou a proibição, em 1971, mesmo ano em que a Uefa recomendou as suas federações também organizarem o futebol feminino. Um pouco tarde para buscar o tempo perdido e as mulheres recuperarem aquele mesmo nível de popularidade.

A evolução do esporte, especialmente a partir dos anos 1990, se tornou notável. Ainda assim, a seleção inglesa só conseguiu levar mais de 53 mil pessoas a um estádio em 2022 – o recorde de público no país foi batido, em Wembley, na final da Eurocopa do mesmo ano, com 87.192 pessoas presentes*. Números que servem para dimensionar o feito e o exemplo daquelas excepcionais mulheres pioneiras.

Seleção inglesa comemora título da Eurocopa Feminina 2022, em Wembley
Seleção inglesa comemora título da Eurocopa Feminina 2022, em Wembley (Foto: Imago)

*Esse texto foi publicado originalmente em 8 de março de 2016 e atualizado com os dados mais recentes

Foto de Leandro Stein

Leandro Stein

É completamente viciado em futebol, e não só no que acontece no limite das quatro linhas. Sua paixão é justamente sobre como um mero jogo tem tanta capacidade de transformar a sociedade. Formado pela USP, também foi editor do Olheiros e redator da revista Invicto, além de colaborar com diversas revistas. Escreveu na Trivela de abril de 2010 a novembro de 2023.
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