Da defesa sólida aos personagens essenciais, cinco pilares da conquista da Ligue 1 pelo Lille
Depois de dez anos, os Dogues surpreenderam e voltaram a vencer o Campeonato Francês mais disputado dos últimos tempos
Graças ao seu apoio, as colunas das cinco grandes ligas da Europa estão de volta. Faça parte do nosso financiamento coletivo no Apoia.se.
O Lille venceu o Angers por 2 a 1 no último domingo (23) para confirmar a conquista da Ligue 1 pela primeira vez em dez anos. Para chegar à glória, os Dogues tiveram que mostrar ao longo da temporada consistência e força mental em meio à perseguição dos concorrentes PSG, Monaco e Lyon. Para isso, contou sobretudo com uma forte defesa, um comportamento à altura dos grandes encontros e com o trabalho de destaque de figuras do clube do norte da França.
Mais do que um acaso ou um golpe de sorte diante de uma temporada abaixo do esperado do Paris Saint-Germain, foi o trabalho longo e sustentado nos bastidores do LOSC que possibilitou à equipe a conquista de seu quarto Campeonato Francês na história. Uma jornada que começou em meio à agonia de uma luta pela sobrevivência na elite – e que hoje se desenlaça na glória inesperada do título nacional.
Abaixo, passamos por alguns dos principais pontos que ajudam a explicar o grande sucesso do Lille nesta temporada da Ligue 1 e a desenhar o trajeto que foi percorrido até este momento eternizado na história do clube e do futebol francês em si.
Defesa sólida
Diversos são os motivos por trás da conquista do Lille, e vamos mergulhar em alguns deles aqui. Entretanto, o ataque não foi um desses pontos. Com apenas 64 gols em 38 jogos, o LOSC foi o campeão francês de pior ataque nos últimos dez anos. Entre os setores, a diferença positiva mais notável pode ser encontrada na defesa.
O Lille terminou o campeonato como a melhor defesa da competição, com apenas 23 gols sofridos em 38 jogos. No setor, o destaque vai principalmente para três nomes. A dupla de zaga combinou experiência e juventude com muita qualidade, com o veterano José Fonte e o promissor Sven Botman transmitindo segurança à toda a equipe. Por fim, no gol, Mike Maignan, por muitos considerado o melhor da posição na Ligue 1, brilhou, passando 21 jogos sem ser vazado, número inigualado nas cinco grandes ligas. Este desempenho destacável muito provavelmente deverá levá-lo ao Milan na próxima temporada, substituindo Gianluigi Donnarumma, de saída do clube italiano.
Supremacia nos confrontos diretos
Em um campeonato tão acirrado quanto a Ligue 1 desta temporada, em que quatro equipes chegaram à reta final da competição com chances de título, os confrontos diretos são muito importantes, e o Lille foi exemplar nesses embates. De seus duelos contra PSG, Monaco e Lyon, saiu invicto, ganhando força sobretudo nos confrontos mais próximos do fim do torneio.
Contra cada um dos concorrentes ao título, o Lille conseguiu uma vitória e um empate. O principal destaque vai para os triunfos contra PSG e Monaco, nas 31ª e 34ª rodadas, respectivamente. Contra os parisienses, o LOSC vinha de uma derrota dolorida para o rebaixado Nîmes e conseguiu se impor com um 1 a 0, classificado por Christophe Galtier como um momento de virada na temporada: “A conversa que tive com o grupo (para o jogo com o PSG), pela primeira vez na minha carreira, aconteceu muito cedo no dia. Naquele momento, eu senti que os jogadores, em seu olhar, seu comportamento, sua linguagem corporal, estavam presentes e prontos para o jogo. Esta vitória me deu muita esperança e deixou uma excelente impressão”.
Já diante do Lyon, veio o triunfo para confirmar a impressão de que estávamos diante de um time campeão. Perdendo por 2 a 0 até o fim da primeira etapa, os Dogues começaram sua reação nos acréscimos do primeiro tempo com Burak Yilmaz, que liderou a empreitada também na segunda etapa. Ao fim, o triunfo por 3 a 2 garantido aos 40 do segundo tempo, com outro gol do turco, evitou que o Lyon igualasse a pontuação do líder e que PSG e Monaco o ultrapassassem na tabela.
O rei Burak
No momento de sua chegada no início da temporada, Burak Yilmaz passou despercebido. O veterano turco já tinha 35 anos e, apesar de ter brilhado na Turquia em diferentes momentos ao longo da última década, nunca havia deixado o país para atuar em uma grande liga europeia – seu ano no Beijing Guoan entre 2016 e 2017 sendo o único no exterior. Desembarcou no Lille visto mais como uma peça de profundidade de elenco do que qualquer outra coisa. O tempo, no entanto, mostrou que essa percepção não podia estar mais distante da realidade.
Yilmaz terminou o ano como o artilheiro do Lille na Ligue 1, marcando 16 gols em 28 partidas. Mais importante que os números foi a maneira como eles foram conquistados e a que altura. O turco elevou seu protagonismo na reta final da competição, aparecendo como um goleador dos instantes finais e dando importantes pontos aos Dogues.
Sua influência também esteve presente nos bastidores, em momentos aos quais o público não tem acesso. Experiente e vencedor, foi ao longo do ano uma referência para um grupo jovem, que internamente o apelidou de “irmão mais velho”. Esta influência foi também algo destacado pelo técnico Christophe Galtier, que afirmou recentemente que o turco “une a equipe com sua determinação e experiência”.
O Lille se acostumou nos últimos anos a contar com jovens talentosos e promissores que, além de suas contribuições em campo, ofereceram ao clube pequenas fortunas ao serem negociados: Nicolas Pépé e Victor Osimhen. Curiosamente, um perfil completamente diferente é que fez a diferença na surpreendente conquista da Ligue 1.
Olhar apurado de Luis Campos
Nos últimos nove anos, o PSG só não foi campeão em duas oportunidades: em 2017, quando o título ficou com o Monaco, e neste ano, com a conquista do Lille. O ponto em comum dessas duas histórias de conquistas inesperadas tem um nome: Luis Campos. Não é coincidência que o renomado diretor de futebol português tenha estado por trás da construção das duas equipes.
Depois de não decolar como técnico entre os anos 1990 e 2000, Campos, por meio de seu contato com José Mourinho, trabalhou por um ano como olheiro do Real Madrid, em 2012/13, antes de assumir pela primeira vez o cargo de diretor de futebol, já no Monaco. Ali, começava a sua rápida ascensão como um dos diretores de olhar mais apurado para jovens jogadores.
Entre 2013 e 2016, Campos atuou nos bastidores do Monaco, que se especializou em vender bem seus jovens atletas e contratar reposições também jovens, prestes a estourar e multiplicar seu valor. Depois de transferir James Rodríguez ao Real Madrid por € 75 milhões em 2014, Campos foi buscar Bernardo Silva no Benfica por apenas € 16 milhões. Kondogbia, vendido por € 36 milhões, foi substituído por Fabinho, que estava no Rio Ave e custou € 6 milhões. Yannick Ferreira-Carrasco foi para o Atlético de Madrid por quase € 25 milhões, e o substituto, Thomas Lemar, chegou por € 4 milhões do Caen. Apenas estas três contratações, que somaram € 26 milhões, seriam vendidas, alguns anos depois, por um combinado de € 165 milhões. Foi também graças à sua participação na negociação de contrato que Kylian Mbappé acabou renovando com os monegascos em 2016 para, mais tarde, ser vendido ao PSG por € 180 milhões.
Acabada sua aventura com o Monaco, o próximo destino do português foi o Lille. O clube estava prestes a ser vendido em 2016, e Campos se tornou conselheiro esportivo do empresário Gérard Lopez, um dos candidatos à aquisição, que por fim acabou arrematando o clube. Em 2017, Campos foi oficializado como o diretor esportivo dos Dogues e logo começou a por em prática sua rede de contatos e seu conhecimento.
Rafael Leão, da base do Sporting, chegou de graça em 2018 e, após temporada de sucesso, acabou vendido em 2019 ao Milan por € 23 milhões. Paralelamente, Nicolas Pépé, principal destaque do time em 2018/19, foi negociado por € 80 milhões com o Arsenal, tendo sido comprado dois anos antes por € 10 milhões. Leão foi substituído por Victor Osimhen, ex-Charleroi, da Bélgica, que chegou por € 22,4 milhões. Um ano depois, juntaria-se ao Napoli por € 70 milhões.
Luis Campos deixou o Lille em outubro do ano passado após tensões internas com outros membros da diretoria, em específico Julien Mordacq, diretor jurídico e administrativo do clube. Ainda assim, suas marcas estão em toda a parte no grupo campeão da Ligue 1. Foi ele, Campos, que se ocupou pessoalmente, do início ao fim das conversas, das contratações de Benjamin André, José Fonte, Jonathan Bamba, Jonathan Ikoné, Renato Sanches, Boubakary Soumaré, Tiago Djalo e Burak Yilmaz.
Outros diversos nomes do elenco, mais especificamente Luiz Araújo, Sven Botman, Domagoj Bradaric, Zeki Çelik, Jonathan David, Reinildo, Xeka, Yusuf Yazici e Timothy Weah, foram encontrados pelo departamento de olheiros do clube, mas tiveram seus contratos negociados pelo português. Foi, por fim, Campos que recomendou ao clube a contratação daquela que seria a “cola” de todo esse talento individual: o técnico Christophe Galtier.
Evolução do trabalho de Christophe Galtier
Apenas dois dias após a conquista da Ligue 1, Christophe Galtier anunciou que está de saída do Lille, apontando para o fim de seu ciclo pelo clube. A declaração veio com a tranquilidade que só alguém consciente do excelente trabalho que fez poderia ter – e não é para menos. O francês conduziu um trabalho consistente e por vezes silencioso para tirar o Lille de uma situação complicada há pouco mais de três anos e encerrou o projeto com chave de ouro.
Galtier chegou ao LOSC em dezembro de 2017 em meio a um péssimo momento do clube. Marcelo Bielsa havia assumido o comando da equipe no início da temporada, mas o casamento não deu certo e foi desfeito antes mesmo da virada do ano. O francês então herdou uma equipe que ocupava a 18ª colocação, com apenas cinco vitórias e dez derrotas. O elenco era jovem, havia um embargo de contratações por parte da DNCG, órgão francês de controle fiscal dos clubes, e o horizonte era assustador. O fim de temporada foi tenso, com mesmo uma invasão de campo por parte dos torcedores, indignados pelo nível da equipe, mas Galtier conseguiu reverter tudo e, graças especialmente a uma vitória sobre o Dijon na penúltima rodada, garantir a permanência com apenas um ponto a mais que o 18º colocado Toulouse, que foi para a disputa do playoff de acesso e rebaixamento.
Em sua segunda temporada, a primeira desde o início, Galtier liderou uma campanha surpreendente. Com reforços importantes sobretudo no ataque, com a chegada de Jonathan Ikoné e Bamba, e o crescimento de Nicolas Pépé, o Lille entrou no pódio a partir da quinta rodada e não saiu mais dele até o fim da temporada. Em um ano que teve como ponto alto a goleada por 5 a 1 sobre o campeão PSG, os Dogues terminaram o campeonato na segunda colocação, e Galtier se confirmou como o nome certo para o projeto em andamento.
Em 2019/20, mesmo diante de uma importante debandada, que incluiu as saídas de Thiago Mendes, Rafael Leão e Pépé, Galtier conseguiu manter um bom nível de atuações e garantir a competitividade do LOSC. Na Champions League, o clube caiu em um complicado grupo com Chelsea, Ajax e Valencia e foi eliminado como lanterna da chave, mas deixando ao comandante uma boa impressão pelo potencial que havia demonstrado. Na Ligue 1, a situação final poderia ter sido melhor se as circunstâncias fossem diferentes. Com o campeonato se encerrando antecipadamente, com apenas 28 rodadas, devido à pandemia do Coronavírus, o Lille terminou na quarta colocação, a apenas um ponto do terceiro colocado Rennes, que foi à Champions League.
Por fim, chegamos a 2020/21. A expectativa era apenas por uma colocação entre os três primeiros lugares, mas conforme a temporada avança a possibilidade de um antes impensável título começa a se concretizar, em meio a um ano irregular do PSG, que sofreu com a participação na final tardia da Champions League com o Bayern e de uma preparação encurtada entre duas temporadas.
Sem um estilo de jogo espalhafatoso, mas com muito equilíbrio entre os setores, de sua defesa sólida a um ataque efetivo, passando por um meio de campo bem encaixado, Galtier foi referendando a candidatura do Lille à conquista passo a passo. Sua capacidade de mobilizar seus comandados e a sua atenção a detalhes acabariam por se provar fatores determinantes para o título, como destacou o capitão José Fonte após o título.
O futebol francês é um grande celeiro de jogadores, mas tem sofrido para revelar grandes técnicos. Exceto pelo sucesso encontrado por Zinédine Zidane em um contexto muito específico no Real Madrid, Christophe Galtier aparece como o maior expoente da categoria na França, e isso fica claro pela dura batalha que vão travando Nice e Lyon pela sua contratação após o grande feito desta temporada.