Como a final de 2006 consagrou o Barça de Ronaldinho e moldou o destino do Arsenal

Belletti começou a jogada. Abriu na direita com Larsson, recebeu de volta, já dentro da área, e ficou cara a cara com o goleiro. Belletti x Almunia, valendo a Champions League de 2006, quase dez anos atrás. O Barcelona era favorito, pela quantidade de craques: Ronaldinho, Eto'o, Deco, entre outros. Mas aquela decisão de Paris foi muito mais difícil do que se esperava. Mesmo depois da expulsão de Lehmann, aos 18 minutos do primeiro tempo, os espanhóis saíram atrás e demoraram para reagir. A entrada de Larsson, principalmente, foi o que mudou a partida. Deu um toquinho para Eto'o entrar como um foguete pela esquerda e empatar. Depois, tabelou com Belletti naquele lance crucial.
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Porque o brasileiro venceu o duelo com Almunia. Ao colocar a bola entre as pernas do goleiro espanhol, que havia entrado no lugar de Lehmann, Belletti consagrou uma equipe histórica do Barcelona, liderada pelo compatriota Ronaldinho Gaúcho, que vivia o seu ocaso antes da chegada de Guardiola, e moldou o futuro do Arsenal, cujo ciclo dos invictos chegaria ao fim sem o tão desejado título europeu.
Em um mesmo segundo, um clube consolidou uma cultura vencedora e o outro deu início a uma reformulação sem o lastro da glória continental.
O tempo venceu os invencíveis

Lehmann; Lauren, Sol Campbell, Kolo Touré e Ashley Cole; Gilberto Silva, Patrick Vieira, Robert Pirès e Ljunberg; Henry e Bergkamp. O torcedor do Arsenal tem essa escalação, o time base que conquistou a Premier League de maneira invicta, tatuado na mente. Foi um dos maiores esquadrões da Inglaterra, o auge do trabalho de Wenger no norte de Londres. Mas a glória nacional não veio acompanhada do tão desejado título da Champions League.
Naquela temporada 2003/04, quando os Invencíveis eram, de fato, praticamente invencíveis, o principal torneio europeu teve uma final inesperada, entre Porto e Monaco, vencida pelos portugueses. Era uma chance boa para o Arsenal, que acabou ficando pelo meio do caminho nas quartas de final. Derrotado pelo Chelsea de Claudio Ranieri quando Roman Abramovich ainda não tinha assinado tantos cheques quanto viria a fazer nas temporadas seguintes.
A grande chance acabou chegando mesmo em 2006, quando os Invencíveis suspiraram pela última vez. A equipe que entrou em campo no Stade de France mantinha a base do último time do Arsenal a vencer o Campeonato Inglês. Vieira fora vendido à Juventus no começo daquela temporada e substituído por Fàbregas. Eboué superou Lauren na corrida pela lateral direita, e Alexander Hleb foi titular no lugar de Dennis Bergkamp, que era relacionado pela última vez na carreira para uma partida oficial de futebol.
O título não veio, e a equipe histórica foi pouco a pouco se desmontando. Entre a final de Paris e o começo da temporada seguinte, Bergkamp encerrou a carreira, Pirès foi para o Villarreal, Sol Campbell e Lauren rumaram ao Portsmouth, e Ashley Cole, depois de negociações frustradas para renovar seu contrato, foi vendido ao Chelsea. William Galas foi contratado e, aos poucos, ocupou os espaços de Kolo Touré na defesa e de Gilberto Silva como líder do elenco, já que foi rapidamente alçado à condição de capitão à frente do brasileiro. Em 2007/08, Henry foi vendido ao Barcelona, e Ljunberg saiu quase de graça para o West Ham. Lehmman completou o bonde um ano depois.
Ao mesmo tempo em que Arsène Wenger assistia ao natural e esperado fim do melhor time que havia montado no Arsenal, chegaram dois novos jogadores ao tabuleiro em que ele disputava partidas de xadrez quase exclusivamente com Alex Ferguson desde que chegara à Inglaterra. O Chelsea de Abramovich e, posteriormente, o Manchester City mudaram o panorama da Premier League, inflacionaram o mercado e contrataram jogadores maturados por Wenger quando estavam a ponto de explodirem.
Em outros países, Barcelona e Real Madrid consolidaram suas posições como potências globais, aumentaram as receitas e, com cada vez mais dinheiro das negociações individuais de direitos de TV, também se transformaram em bichos papões do mercado. Mais do que isso, o preço dos jogadores aumentou, e, tanto em competições domésticas quanto internacionais no mais alto nível, a formação de times foi acelerada pela injeção de dinheiro. Não havia mais tanto tempo para esperar os jovens se desenvolverem.
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Torcida, jogadores e donos de clubes ficaram mais ansiosos. Essa urgência atrapalhou, assim como o aliciamento de times mais ricos. À medida que os anos foram passando e incrementando o jejum de títulos do Arsenal, que continuou investindo pouco, em uma mistura de menos recursos e teimosia de Wenger, fiel ao seu plano apesar da mudança de conjuntura, o francês ficou sem argumentos para manter seus principais jogadores ou vencer a concorrência pelos grandes craques e maiores revelações.
Vencer o Barcelona naquela noite teria mudado esse panorama? Talvez não completamente, mas mostraria aos jogadores, pelo menos por um tempo, que ninguém precisaria deixar o Arsenal para ser campeão europeu. Seria mais fácil repor tantas saídas. Reforçaria o projeto de Wenger, que teria um escudo mais impenetrável e longevo contra as críticas. Evidentemente, 11 anos sem títulos ingleses cobrariam um preço de qualquer maneira, mas ele ainda seria o primeiro técnico a levar o mais cobiçado caneco da Champions League para Londres.
A cultura da vitória

O Barcelona sempre foi gigante dentro da Espanha, mas sua estatura como um clube global e sempre nas fases finais da Champions League foi construída recentemente. Fora de campo, a diretoria que assumiu em 2003 trabalhava para estruturar o setor financeiro – a história do livro de Ferran Soriano, A Bola Não Entra Por Acaso –, e a conquista de títulos era essencial para fazer a roda girar: investimento no time, glórias, prestígio mundial, mais associados, mais torcedores, mais marketing, mais dinheiro de TV, mais investimento, mais jogadores, mais títulos, ainda mais prestígio.
O título europeu de 2006, apenas o segundo da história do Barcelona, foi uma peça importante desse plano que levou o clube da 13ª posição no ranking de faturamento para o quarto lugar em apenas dez anos. Foi o incontestável prestígio que manteve a engrenagem funcionando e garantiu a consagração de um modelo administrativo. A consagração, também, de craques como Ronaldinho Gaúcho, Samuel Eto’o e Deco.
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Esses eram os donos da equipe, antes de Xavi, Iniesta e Messi ou do trio MSN. Chegaram mais ou menos juntos, Eto’o e Deco um ano depois de Ronaldinho Gaúcho, e rapidamente encantaram o mundo sob o comando de Frank Rijkaard. Recuperaram o título do Campeonato Espanhol, que o Barça não vencia desde 1999, e ainda repetiram a dose na temporada seguinte. Um grande feito, mas, para serem alçados ao patamar dos grandes times da história dos catalães, faltava o título europeu.
O Barcelona pegou o forte Chelsea, já com José Mourinho no comando, nas oitavas de final daquela temporada 2004/05, a primeira em que os três craques atuaram juntos. Foi uma dura batalha, e, apesar de atuações brilhantes de Ronaldinho Gaúcho, autor de dois gols no jogo de volta, um deles simplesmente espetacular, os ingleses passaram de fase e impuseram uma queda prematura aos espanhóis.
A vingança veio na temporada seguinte. Na mesma fase oitavas de final, o Barcelona reencontrou o Chelsea e desta vez foi implacável. Venceu fora e empatou em casa. Superou também o Benfica e o Milan para chegar à decisão contra o Arsenal, com boas atuações de Ronaldinho e gols decisivos de Eto’o. Ao mesmo tempo, o cabeludo Lionel Messi ganhava suas primeiras oportunidades contra o primeiro escalão europeu e só não foi mais usado nas fases finais por causa de uma lesão.
A essa altura do texto, já estamos carecas de saber quem venceu aquela final, que colocou o time de Rijkaard na lista de grandes esquadrões do Barcelona. Foi, também, o último grande ato de Ronaldinho e companhia, que começariam seus declínios nas temporadas seguintes. Uma reformulação, menos radical que a do Arsenal, também começou alguns anos depois. Mas havia no Camp Nou o prestígio para atrair grandes jogadores, principalmente a partir de 2007, e dinheiro, já que o faturamento do clube só crescia. A cultura da vitória havia sido criada.
As soluções também estavam em casa. Xavi, um mero coadjuvante do Barcelona em 2006, e Iniesta, reserva naquela época, cresceram para se tornar os dois maiores meio-campistas do mundo, e Messi, o melhor jogador do planeta. O maestro saiu das categorias de base, e Guardiola tomou a corajosa decisão de se desfazer de Deco e Ronaldinho Gaúcho quando assumiu o time principal. Tinha outro time em mente.
Deu tudo certo. Depois da equipe de Rijkaard, veio a de Guardiola, bicampeã europeia e ainda mais encantadora. Na sequência, a de Luis Enrique, avassaladora com o seu trio de ataque. A roda continuou girando.