O Violette completou seu milagre e eliminou o Austin na Concachampions, mesmo com meio time barrado nos EUA por falta de vistos
O Violette só teve três jogadores no banco e mudou cinco titulares por dificuldades de vistos a haitianos nos EUA, mas conseguiu segurar a pressão sufocante do Austin e conquistou a classificação apesar da derrota por 2 a 0

O Violette, do Haiti, havia protagonizado uma façanha na última semana, pelas oitavas de final da Concachampions. Campeã do Caribe, a equipe ficou 290 dias sem disputar uma partida oficial por conta da violência em seu país e sequer pôde mandar seu jogo contra o Austin FC em casa. Mesmo assim, os haitianos emplacaram uma fantástica vitória por 3 a 0 na República Dominicana e se aproximaram da classificação. A confirmação da vaga, todavia, ainda dependeria de mais de 90 minutos de futebol no Texas. O Violette sequer conseguiu vistos para todos os seus atletas entrarem nos Estados Unidos e quase metade do time titular mudou, com somente três jogadores no banco e alguns reforços inscritos de última hora, de times amadores americanos. Nada que abalasse a confiança dos azarões nesta terça-feira, 11 contra 11. O Austin teve 76% de posse de bola na noite e um total de 35 finalizações. Contudo, venceu por apenas 2 a 0 e, assim, os haitianos completaram seu milagre rumo às quartas de final.
O Violette é um clube histórico do Haiti. Possui sete troféus da liga nacional e disputou a Concachampions com frequência no passado, com direito ao título continental em 1984. Porém, nos últimos anos, os alviazuis encararam períodos de seca. Ficaram 22 anos sem conquistar o Campeonato Haitiano, até retomarem a taça em 2021. O torneio foi importante para que a equipe pudesse disputar o Campeonato de Clubes do Caribe, após um hiato de 13 anos longe da competição. O título regional erguido em 2022 valeu, então, uma vaga na Concachampions de 2023. Os haitianos reapareciam no certame principal da Concacaf depois de 29 anos.
As desconfianças sobre o Violette eram naturais, não só pela ausência dos grandes palcos. O futebol haitiano é profissional, mas obviamente com parcas condições num país que convive com a miséria. Os jogadores do elenco têm dois empregos – como o próprio capitão Steeven Saba, da seleção local, que trabalha na loja de ferragens da sua família. Além disso, a escalada da violência no país, especialmente após o assassinato do presidente Jovenel Moïse em julho de 2021, dificultou bem mais a situação.
O Campeonato Haitiano não foi realizado na última temporada e também não foi retomado na atual. E não é só que, por isso, os alviazuis ficaram 290 dias sem atuar em partidas oficiais (da final no Campeonato de Clubes do Caribe à estreia na Concachampions) ou que não podem mandar seus jogos internacionais em seu próprio estádio. A violência passou a interromper os treinamentos, com os tiroteios próximos, e tornou até mesmo um risco o deslocamento de atletas rumo ao estádio para as práticas em Porto Príncipe – especialmente àqueles que moram fora da capital.
Mesmo com tantas barreiras, o Violette venceu a ida contra o Austin FC por 3 a 0, num resultado pra lá de surpreendente – contra um adversário com salários anuais estimados em US$15 milhões, que ficou na quarta colocação da última MLS. Pois os entraves se tornariam maiores para os alviazuis antes do reencontro no Texas. Na temporada passada, o Cavaly (o representante do Haiti) desistiu da Concachampions porque sequer conseguiu vistos suficientes para a viagem aos Estados Unidos. Os órgãos de imigração americanos mantêm grandes restrições sobre os viajantes haitianos, sob temor de que eles peçam asilo político. Desta vez, o Violette também seria afetado pela questão, embora tenha obtido um número mínimo de vistos. A preocupação da Concacaf era a de pelo menos garantir o básico dentro de seus regulamentos para o jogo rolar, mas sem demonstrar a preocupação necessária com o elenco desfalcado.
“Alguns dos jogadores que não conseguiram o visto são realmente importantes para nós. Mas, mesmo se tivermos que atuar com apenas 12 jogadores à disposição, ainda assim vamos colocar nosso coração nesse jogo”, declarou o meia Shad San Millan, de apenas 18 anos, ao site The Athletic. “É verdade, há muitos problemas no Haiti e isso não nos dá qualquer vantagem. Mas nós sempre dissemos que podemos competir com os melhores do mundo. […] Todas as vezes que os haitianos ouvem boas notícias sobre o futebol do país, isso os faz felizes. É um privilégio para nós fazê-los felizes”.
Apenas 12 jogadores do Violette conseguiram vistos para o segundo duelo com o Austin e o clube precisou recorrer a contratações de última hora, de atletas em atividade nas ligas amadoras dos EUA, que puderam ser inscritos junto à Concacaf. Somente seis titulares na partida de ida se repetiram na volta – entre eles o capitão Steeven Saba e o artilheiro Miche-Naider Chéry, bem como os quatro homens da defesa. De resto, apenas novatos, incluindo o goleiro Paul Decius, de 29 anos, e só três substitutos no banco de reservas. Já o Austin FC, pelo contrário, se reforçou em relação ao primeiro confronto. Os texanos haviam poupado vários de seus principais jogadores fora de casa e, precisando do resultado, entraram com força máxima. Os destaques ficavam para o atacante Gyasi Zardes, o ponta Emiliano Rigoni e o meia Sebastián Driussi. Todos prontos para pressionar os azarões haitianos.
A partida seria toda disputada no campo de ataque do Austin. Durante o primeiro tempo, os texanos tiveram 71% de posse de bola, com 18 finalizações. Foi um verdadeiro bombardeio, mas com pouquíssima pontaria. Só cinco tiros acertaram o alvo. E não encontraram o rumo das redes porque o goleiro Paul Decius estava com o corpo fechado. Logo no primeiro minuto, ele realizou uma ótima defesa dupla, inclusive parando Driussi. Continuou sempre muito atento e bem colocado, mesmo sem tantos cacoetes da posição, embora o que impressionasse de verdade era a falta de capricho do Austin. Quando a bola entrou, o tento seria anulado por um toque de mão da jogada.
O Violette teve um pouco mais de escape no primeiro tempo. Foram quatro finalizações e algumas boas jogadas, mas também sem precisão nos arremates. Nenhum deles foi no alvo. Desta vez, o jogo aéreo visando Chéry não funcionou como na ida. E o segundo tempo seria totalmente concentrado na defesa para os alviazuis. A equipe conseguiu dois míseros arremates, e ambos vieram em chutões do meio do campo para aliviar um pouco a pressão nos minutos finais. O Austin conseguiu ser mais sufocante, com 81% de posse e 17 finalizações. Os texanos mexeriam finalmente no placar, mas não o suficiente.
O primeiro gol do Austin saiu cedo, aos seis minutos do segundo tempo. Rigoni cruzou e Driussi pegou bonito de primeira. Até parecia que a porteira se abriria. Com um pouco mais de insistência, os texanos ampliaram aos 18. Foi mais um tento de Driussi, agora num frangaço de Paul Decius, que tinha a bola em suas mãos e a deixou escapar por entre os dedos. O Violette parecia se fundir. No entanto, um dos grandes méritos do time foi se refazer desse baque. As muitas finalizações bloqueadas reconstituíam o moral. E uma longa revisão de pênalti esfriou os oponentes. O Austin teve um penal inicialmente marcado a seu favor aos 26, que poderia forçar a prorrogação, mas que acabou corretamente anulado.
O Austin chegou a ficar 17 minutos sem finalizar depois de seu segundo tento. Assim, a blitz final só se intensificou depois dos 35 do segundo tempo. Foram nada menos que 12 finalizações depois disso. Os defensores do Violette eram heroicos para travar muitas tentativas, enquanto também contavam com a sorte em tiros que passavam perto. Mais importante, Paul Decius não se abalou com o erro crasso e voltou a operar seus milagres. Os haitianos tentavam queimar tempo com cera e, dos três substitutos, dois entraram por lesões nos titulares. Por conta disso e também da revisão do penal, a arbitragem deu dez minutos de acréscimos, que bateram quase 12. Os alviazuis, entretanto, resistiram. E o lance mais emblemático aconteceu no último ataque do Austin. Paul Decius fez uma defesa à queima-roupa contra Driussi e selou a classificação.
LOOK AT WHAT IT MEANS TO @VACHAITI ? pic.twitter.com/5lOYfIUhCU
— FOX Soccer (@FOXSoccer) March 15, 2023
Depois do apito final, a festa dos haitianos era enorme. Enquanto isso, os texanos perderam a compostura. Driussi chegou a peitar os adversários na saída de campo, até que a confusão fosse apaziguada. Era uma sensação de que os anfitriões foram maus perdedores. O Violette, afinal, não enfrentou apenas o Austin nesta terça-feira. Os alviazuis encararam uma série de limitações e receios. Mas conseguiram dar um motivo de orgulho para o Haiti, num feito memorável ao futebol de clubes do país.
Depois da vitória na ida, o técnico Rony Attimy falou uma frase que ecoou nos vestiários do Violette: “Vocês estão provando aquilo em que acreditam”. E os jogadores mostraram não só que acreditavam na classificação. Eles deram um orgulho para seus familiares, deram um alento aos compatriotas em meio à violência e deram um destaque internacional ao país por ótimos motivos. “Há mais no Haiti do que as manchetes dizem. Falo isso há muito tempo. Existem muitos talentos no Haiti. Mas, por causa da forma como o país é, não somos reconhecidos. Para nós, esse jogo é maior que o futebol, lutamos por nosso país inteiro”, afirmara Steeven Saba, antes da partida no Texas, ao site The Athletic. Uma luta que teve seu prêmio.
O Violette não passava de fase na Concachampions exatamente desde a conquista do título em 1984. Pensar na taça ainda parece um passo maior que as pernas, a essa altura. Mas nenhum dos jogadores alviazuis está disposto a encerrar a jornada agora. O oponente nas quartas de final será o León, do México, ou o Tauro, do Panamá. Ninguém que pareça suficiente para intimidar quem lida com situações bem mais graves no cotidiano e conseguiu superá-las para avançar na competição.