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Saída de Cuca do Corinthians após sete dias era previsível por subestimar a reação que causaria em parte da torcida

Cuca e a diretoria do Corinthians descobriram que o mundo não é mais o mesmo de 1987 e que não há mais a anuência nem da sociedade e nem da imprensa, que foi conivente por décadas

Cuca deixou o cargo de técnico do Corinthians na madrugada desta quinta-feira, depois de muitos protestos feitos pela torcida e de uma pressão que aumentou com a cobertura na imprensa do caso do estupro de uma menina de 13 anos em Berna. A classificação diante do Remo na Copa do Brasil ficou em segundo plano. Foram sete dias do anúncio de Cuca, no dia 20 de abril, até a sua saída, nesta quinta, dia 27. A saída era previsível desde que ele foi anunciado, porque combinou muitos elementos diferentes que fizeram que o caldo entornasse rapidamente.

A combinação do momento que vivemos, uma torcida atuante de um clube que tem histórico de posicionamentos sociais e um jornalismo que apurou mais fundo o caso tornou a situação do Cuca difícil. Mas o que tornou de fato insustentável foram as seguidas oportunidades desperdiçadas pelo treinador de assumir as rédeas da história. Já que ele não se defendeu no julgamento que aconteceu em 1989, deveria fazer agora e provar que é inocente, já que a condenação diz o contrário. Ele diz que contratou advogados agora para tentar fazer isso, mas não trouxe nenhuma evidência do que alega – ao contrário do julgamento, que o condenou baseado nas provas apresentadas na época. Ele foi condenado a uma pena que ele jamais cumpriu.

Cuca seguiu dizendo que não tinha que pedir desculpas, dizendo que não fez nada de errado e dando uma versão de que não tocou na vítima, que acabou sendo desmentida dias depois em uma excelente matéria de Adriano Wilkson, em que o advogado da vítima de estupro em Berna diz que ela reconheceu sim Cuca como um dos abusadores, diferente da versão do treinador. Ainda confirmou algo que já havia na matéria do jornal que foi encontrado sêmen do treinador no corpo da vítima, que ainda tentou suicídio após o caso. Informações que já tinham sido divulgadas pelo jornal Der Bund, de Berna, em 1989, como informou o site Meu Timão.

Isso tornou as coisas bem mais complicadas para Cuca. Não que as coisas estivessem tranquilas de alguma forma antes. A contratação já soou como um desrespeito a parte da torcida. A contratação geraria uma óbvia reação negativa e um barulho que não seria fácil de lidar. O caso de estupro de uma adolescente de 13 anos em Berna em 1987 vem sendo falado há alguns anos com muito mais intensidade.

Em 2004, o técnico falou sobre o caso muito brevemente em entrevista à revista Placar. “O barulho maior foi na mídia, mas minha consciência tranquila prevaleceu. Já era casado com a Rejane (com quem está até hoje) e ela sabia da minha inocência”, disse o treinador à época. Depois disso, só voltou a citar o caso em depoimento à jornalista Marília Ruiz, ao UOL, em 2021. Na época, o técnico gravou um vídeo enviado à jornalista, que gravou ao lado da esposa e das filhas, repetindo que era inocente. O técnico disse que era a primeira e a última vez que ele falaria do caso. Ledo engano.

A imprensa, e isso inclui nós mesmos, sempre foi muito leniente com o caso, mas passou a fazer um trabalho melhor a partir do caso Robinho, a ponto do caso de Berna ter virado pauta em diversos programas. Se Robinho era cobrado pelo caso de estupro, por que Cuca não era? De 2020 para cá, porém, a pressão só aumentou. E a sua contratação no Corinthians, um clube que se consagrou nos últimos anos com campanhas de apoio às mulheres, não só ao futebol feminino, fez com que tudo crescesse ainda mais. Se das outras vezes foi possível ignorar a oposição ao técnico e fechar os olhos a esse caso enorme fora de campo, desta vez não foi.

Como disse André Rizek no Seleção Sportv, a condenação de Robinho na Itália por um caso de estupro fez com que o caso de Cuca fosse revisitado com mais intensidade e a cobrança por esclarecimentos do treinador aumentaram. Ele sempre se recusou a falar sobre o caso. A sua contratação pelo Santos, em 2020, já tinha gerado alguma insatisfação. Quando ele foi anunciado pelo Atlético Mineiro em 2021, os protestos aumentaram e foram mais fortes. Mas o técnico foi mantido e, nos dois casos, conseguiu fazer bons trabalhos em campo. A impressão é que os dirigentes apostaram no sucesso do técnico para minimizar os protestos. Os dirigentes do Corinthians parecem ter apostado no mesmo.

Cuca ainda voltou ao próprio Atlético Mineiro em 2022, mas a passagem foi de julho a novembro, sem conseguir o mesmo sucesso desta vez. A sua contratação pelo Corinthians, porém, marca um momento que Cuca teve que lidar com o caso de estupro em Berna como nunca tinha lidado antes: já na apresentação. Desde o momento das especulações, passando pelo anúncio, os protestos aconteceram. O barulho, desta vez, era grande demais. O jornalismo foi conivente por muitos anos e mudou a sua postura nos últimos anos, ao menos a partir de 2020, mas foi nesse episódio da contratação de Cuca pelo Corinthians que a imprensa parece ter feito o seu trabalho de forma mais profunda em termos de apuração.

O mundo não é mais o mesmo de 1987. No momento que o estupro em Berna aconteceu, a versão dos então acusados foi abraçada sem muito questionamento. Em alguns casos, foram até tratados como perseguidos. Alguns até os celebravam. Aliás, questionamento foi algo que nós, da imprensa, fizemos muito pouco em relação a esse caso durante décadas. Só que estamos em 2023 e o mundo não é mais aquele que recebeu os acusados como heróis. Há muitas mudanças, na sociedade como um todo e na imprensa em específico.

Se pensarmos em ciclos de Copa do Mundo, em 2018 não havia narradoras mulheres, e pouquíssimas comentaristas mulheres. As mulheres tinham menos voz. Colocar a perspectiva da mulher na discussão não era algo nem cogitado. As questões em relação a abusos contra as mulheres são muito mais discutidas. Estupro sempre foi algo abominável, mas a forma como isso era discutido era muito diferente. A começar por ser apenas homens falando a respeito.

A condenação na justiça da Suíça, em 1989, diz que há provas que houve crime e por isso os acusados se tornaram condenados. Esse é um fato crucial para lidar com a questão. Cuca é um condenado por estupro. O técnico sempre negou isso, mas não o fez na justiça, para se defender. Continua se defendendo dizendo que é um injustiçado. Tentou jogar para baixo do tapete enquanto pôde, com a anuência da imprensa e da sociedade como um todo. O processo é sigiloso e, portanto, tudo que temos de fato é a condenação de Cuca e a indicação da Justiça suíça apontando para matérias do jornal da época que descreve o caso.

Cuca também não se prestou a esclarecer. Fugiu do tema sempre que pôde. A ponto de, quando o assunto voltou à tona, nos últimos anos, chegou a participar de coletivas de imprensa em que o assunto se tornou proibido. Quem conseguia perguntar a ele não recebia resposta. Ao contrário, sempre tratou qualquer pergunta sobre o caso como ofensa. De certa forma, continuou fazendo isso, mesmo falando sobre isso na sua apresentação e na sua primeira coletiva. A segunda já seria para anunciar a sua saída.

Por culpa nossa, como sociedade, e nossa, como imprensa, que aceitou as versões dos jogadores sem muito questionamento, o caso ficou adormecido por muitos e muitos anos, a ponto de não atrapalhar a carreira dos envolvidos no futebol. É preciso que todos nós façamos uma reflexão sobre esse caso. As informações estavam no caminho e foram abandonadas, abraçando as versões dos acusados – e posteriormente condenados. É preciso que isso mude, que as reflexões sejam constantes.

Diante da pressão, Cuca escolheu deixar o Corinthians a esclarecer o caso, trazendo evidências que não é culpado. Ele não está proibido de trabalhar. Mas talvez ele tenha achado que poderia só ignorar o caso, como fez até hoje, com sucesso. Este caso mostrou que não será mais possível fazer isso. Não há como mudar o que aconteceu em 1987. Há como mudar como pessoa, há como mudar o seu posicionamento em relação ao que aconteceu, há como rever os erros do passado e reconhecê-los. Seria um primeiro passo. Ou, se sustenta que é inocente, terá que provar isso, porque a justiça do país onde aconteceu o estupro o condenou baseado nas provas apresentadas.

Ele não foi condenado à revelia, que é quando o acusado não se defende. Os quatro acusados foram representados por advogados. Não foram à Suíça acompanhar o julgamento porque sabiam que, em caso de condenação, sairiam do tribunal presos. O Brasil não extradita seus cidadãos, porque é o que prevê a Constituição, algo que existe por uma boa razão.

Cuca não reconhece os erros, o que implica que ou não acredita nas provas da justiça suíça, que o condenou lá em 1989, ou que aquilo que ele fez não foi nada errado. Ele tem todo o direito, embora, neste caso, como já foi condenado, precisará provar isso. O que temos no caso de um processo sigiloso é que ele foi condenado, junto com outros três jogadores, pelo estupro de uma menor de 13 anos. De qualquer forma, isso o inviabiliza para ao menos a maioria dos clubes. Sem mudar a sua forma de lidar com o caso, Cuca terá dificuldades em trabalhar em qualquer outro clube no Brasil.

As reflexões, porém, parece que não aconteceram. Nem de Cuca, nem do Corinthians. Cuca se disse massacrado, sustenta que é inocente, apesar da condenação na justiça suíça em 1989. Disse que espera voltar ao clube em um outro momento. O presidente Duílio Monteiro Alves também descreveu o caso como um massacre e também abriu as portas para que Cuca volte um dia. Dão a impressão que esperarão a nuvem de protestos se dissiparem para retomarem o trabalho. Não parece ser o caso.

Antes, será preciso que tanto Cuca quanto Corinthians reflitam sobre o episódio. Como esperamos que todos da imprensa, nós incluídos, façamos o mesmo. A imprensa tem parte em não ter cobrado como deveria, ou por dar menos importância do que deveria, a um caso tão grave. Em 1987, foi possível passar por cima desse caso e seguir a vida. Em 2023, não será mais. E se negar a lidar com essa questão, que é tratada diferente do que era naquela época, continuará criando problemas.

No caso do Corinthians, e da sua diretoria, especificamente, é melhor olhar um pouco para a própria história e para a própria torcida antes de tomar uma decisão como essa. Se não, continuarão sendo engolidos por uma torcida que não irá simplesmente ficar quieta e aceitar sem reagir firmemente.

Foto de Felipe Lobo

Felipe Lobo

Formado em Comunicação e Multimeios na PUC-SP e Jornalismo pela USP, encontrou no jornalismo a melhor forma de unir duas paixões: futebol e escrever. Acha que é um grande técnico no Football Manager e se apaixonou por futebol italiano (Forza Inter!). Saiu da posição de leitor para trabalhar na Trivela em 2009, onde ficou até 2023.
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