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A contratação de Cuca soou como desrespeito a parte da torcida e é difícil imaginar que a insatisfação cessará no Corinthians

A contratação de Cuca gerou uma enorme revolta entre os torcedores do Corinthians, por conta do episódio de estupro em que o técnico foi condenado há três décadas e não cumpriu a pena

As manchetes se sucederam de maneira muito rápida nesta quinta-feira dentro do Corinthians. Primeiro, veio a confirmação da demissão de Fernando Lázaro. Não surpreendeu a queda do treinador, depois de apenas 17 partidas à frente dos alvinegros. Foi um trabalho inconsistente, marcado pelos tombos nas últimas semanas. A eliminação para o Ituano no Paulistão, a derrota para o Remo na Copa do Brasil e o novo revés para o Argentinos Juniors na Libertadores serviram de deixa à decisão da diretoria. Não foi necessário muito tempo para que os alvinegros anunciassem o substituto. Cuca acaba escolhido para dirigir o time. E a reação negativa foi imediata, pelos contrassensos que o técnico representa dentro do Parque São Jorge. A insatisfação de parte expressiva da torcida é sonora, sobretudo pelo episódio de estupro no qual Cuca foi condenado há três décadas na Suíça, mas sem nunca cumprir a pena de 15 meses.

O Corinthians é o único dos quatro grandes clubes de São Paulo no qual Cuca ainda não havia trabalhado. O técnico teve campanhas importantes com o Santos e participou também de um momento notável no São Paulo. De qualquer maneira, sua ligação mais forte é com o Palmeiras, onde passou como jogador e foi campeão como técnico. Contratar um comandante com passado nos rivais, porém, nunca foi necessariamente um problema aos corintianos – como a história reconta, especialmente pelos feitos depois registrados por Oswaldo Brandão ou Vanderlei Luxemburgo. Cuca pareceria um elemento estranho em Itaquera, mas não é isso que gera a repulsa. É mesmo o passado ligado a um crime, que muitos corintianos preferem não ignorar.

Um dos argumentos usados no repúdio à contratação de Cuca está na maneira como a presença do técnico contradiz o passado do Corinthians, em especial o relacionado à luta por direitos e justiça social. A presença do treinador, de fato, soa como uma contradição à imagem que os corintianos buscam transmitir e se orgulham. Em momentos anteriores, inclusive, a contratação de Cuca chegou a ser rechaçada internamente por causa da carga que traria de imediato.

Outro ponto importante levantado pelos torcedores é o próprio lema “Respeita as mina”, veiculado pelo clube em campanhas e usado como mote ao redor do time feminino. As mulheres do Corinthians possuem uma imensa representatividade, seja por seus feitos em campo no futebol feminino, seja também pela integração nas arquibancadas e pela história de personagens importantes nos corredores do clube. São elas as que mais levantam a voz contra o novo treinador neste momento e, com razão, merecem ser ouvidas. Vale lembrar que em janeiro, diante da acusação de estupro contra Daniel Alves, o técnico Arthur Elias se manifestou sobre o tema. O comandante do time feminino reforçou a importância de se discutir o assunto e combater, inclusive a partir da visibilidade do futebol. Seu clube faz algo muito distinto nesse momento.

A impressão é de que a direção do Corinthians preferiu ignorar uma reação que fatalmente aconteceria se Cuca fosse contratado. O presidente Duílio Monteiro Alves até consultou lideranças das organizadas e influenciadores digitais, mas ainda assim resolveu bancar a contratação. Acreditou que a necessidade de contratar um treinador vitorioso se sobreporia aos questionamentos e que talvez a reação negativa passasse com o tempo. Todavia, pela postura de muitos torcedores corintianos, é difícil imaginar que isso acontecerá. A pressão tende a ser contínua, mesmo que os resultados comecem a acontecer em campo. E a pressão, óbvio, não vai se concentrar apenas sobre o técnico. Ela também incide naquilo que a gestão do clube decide. Não é a primeira vez que fazem escolhas que desagradam, mas nenhuma com esse teor.

Inegavelmente, pensando apenas no esporte, Cuca tem seus predicados como treinador. Sabe montar times competitivos e aproveitar bem as peças que tem em mãos. O trabalho no Atlético Mineiro que rendeu os títulos de 2021, sobretudo, consolidou seus predicados. Há até outros tipos de entrave, como seu prazo curto, de quem geralmente só trabalha de abril a dezembro para desfrutar da melhor parte do calendário brasileiro – com Libertadores, Brasileirão e Copa do Brasil. Apesar disso, geralmente entrega resultados. A questão é que o pacote não se limita às quatro linhas e muitos torcedores corintianos consideram isso mais importante. O futebol não é só o jogo e, para a história alvinegra, Cuca não é só um técnico.

O debate ao redor de Cuca se transformou com o passar dos anos. Anteriormente, mesmo com o episódio de estupro razoavelmente conhecido, não era discutido a cada vez que o técnico assinava com um novo clube. Os tempos, todavia, são outros e há uma noção maior sobre a representatividade do futebol. Muitos torcedores não querem associar seu clube com uma história de violência contra as mulheres e de impunidade. Mesmo no Atlético Mineiro ou no Santos houve uma resistência mais notável nos últimos trabalhos.

Legalmente no Brasil, Cuca não tem empecilhos para assumir novos trabalhos. O treinador se defende e diz que não participou do ato sexual na Suíça – que, segundo sua versão, teria sido consentido pela garota e gerou o caso de justiça mais por ela ser menor de idade. Apesar disso, a condenação de 15 meses aconteceu e nunca foi cumprida. O debate ao redor do tema é válido, especialmente pelas implicações que causa. Querer se dissociar dessa relação é um direito do torcedor do Corinthians. É compreensível que muita gente veja a chegada de Cuca como uma mancha na história do clube.

Cabe mencionar, no entanto, que outro jogador condenado no mesmo episódio fez carreira no Corinthians por cinco anos. O zagueiro Henrique também foi condenado a 15 meses de prisão na Suíça, sem cumprir, e chegou ao Parque São Jorge em 1992. Foi um nome importante naquele período, com a conquista da Copa do Brasil de 1995 e de duas edições do Campeonato Paulista. Entretanto, naqueles tempos, aquele caso de estupro não tinha o mesmo impacto e o mesmo impacto na opinião pública. Mas não pode se perder de vista que existem respingos no passado corintiano.

A bola de segurança do Corinthians era Tite, mas o treinador preferiu continuar afastado do futebol por um tempo, após os seis anos à frente da Seleção. Cuca, por sua vez, era basicamente o contrário e a certeza de botar o clube no olho do furacão. Não dá para acreditar que a situação se acalmará. As vitórias, se vierem, podem até embasar quem não vê problemas em contratar Cuca. Porém, é difícil de imaginar que aqueles revoltados neste momento irão mudar de ideia com o passar do tempo. O repúdio e a resistência vão continuar, e podem ter outros tantos impactos aos alvinegros.

A discussão se estenderá. Serão necessárias respostas. Cuca certamente precisará falar sobre o assunto, de uma maneira como não aconteceu em seus outros trabalhos, e dificilmente seu posicionamento colocará panos quentes. Duílio Monteiro Alves e outros membros do Corinthians, ainda mais, precisam se posicionar – também com uma baixíssima probabilidade de que vão convencer alguém. E os torcedores precisam ser ouvidos, como não foram no primeiro momento. Especialmente as torcedoras que sentem as consequências que a oportunidade pública a alguém com o passado de Cuca pode causar, ainda mais em seu próprio clube.

Foto de Leandro Stein

Leandro Stein

É completamente viciado em futebol, e não só no que acontece no limite das quatro linhas. Sua paixão é justamente sobre como um mero jogo tem tanta capacidade de transformar a sociedade. Formado pela USP, também foi editor do Olheiros e redator da revista Invicto, além de colaborar com diversas revistas. Escreveu na Trivela de abril de 2010 a novembro de 2023.
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