Os tempos de frustração passaram, a redenção finalmente aconteceu: O Fortaleza se liberta da Série C
Foram oito anos. Oito anos esmurrando a parede. Oito anos acordando em um pesadelo e voltando a ele quando se pegava no sono. Oito anos de calvário. Destes oito anos, quatro foram de Sísifo. Quatro anos carregando a pedra para o topo da montanha, e vendo ela rolar de volta à base, em meio à impotência. Quatro anos se vestindo com trajes de gala, para estragar a festa no salão ornado de seu palácio. Quatro anos ficando a um dedo de tocar o céu, antes de despencar novamente ao abismo. Depois de oito anos na Série C, quatro deles ficando a uma vitória do acesso, o Fortaleza finalmente retorna à segunda divisão do Campeonato Brasileiro. Mais uma vez, os tricolores enfrentaram doses cavalares de sofrimento. Estiveram a um gol de ver o filme de terror se repetir. Mas a derrota por 1 a 0 para o Tupi, em Juiz de Fora, já se fez suficiente para a libertação do Leão do Pici.
Ao contrário de outros anos, esta não parecia a vez do Fortaleza. O time atravessava meses conturbados. Caiu nas semifinais do Campeonato Cearense. Viu a alta cúpula de sua diretoria renunciar. Fez uma campanha errante na primeira fase da Série C. Demitiu o técnico Paulo Bonamigo no meio da trajetória. Ainda assim, conseguiu se classificar aos mata-matas. Não como nos últimos três anos, com a liderança do Grupo A, que garantia o direito de decidir o confronto pelo acesso em casa. Já sob as ordens de Antônio Carlos Zago, a confirmação da vaga nas quartas de final aconteceu apenas na última rodada, com uma vitória magra sobre o Moto Club no Castelão, graças ao veterano Ronny (ex-Hertha Berlim e irmão de Raffael, do Borussia Mönchengladbach), que saiu do banco de reservas e anotou o gol decisivo aos 29 do segundo tempo. Na terceira colocação, os tricolores enfrentariam o Tupi.
Desta vez, o cenário seria diferente ao Fortaleza. O time não jogaria a segunda partida no Castelão. O que em teoria era uma desvantagem, para muitos representava o alívio. Ao contrário das quatro tentativas anteriores nas quartas de final, o Leão do Pici não corria o risco de naufragar em casa. De ver o caos tomar o seu estádio. Agora, poderia contar com a força de sua torcida logo na primeira partida, esperando abrir uma vantagem que tranquilizasse a equipe para o reencontro, aí sim valendo o acesso. E assim aconteceu no último final de semana. Alguns sustos persistiram. De qualquer forma, a vitória por 2 a 0, diante de 40 mil no Castelão, reforçava as expectativas dos tricolores. Leandro Lima e Bruno Melo marcaram os gols no segundo tempo grandioso dos anfitriões, finalmente fazendo os seus fiéis seguidores esboçarem um sorriso.
Esboçarem. Porque, diante das penúrias carregadas ao longo de oito anos, qualquer cuidado era necessário ao pensar na Série B. Mesmo assim, centenas de torcedores do Fortaleza não deixaram de acreditar. Atravessaram o mapa do Brasil até o sul de Minas Gerais. Não economizaram dinheiro, nem tempo, muito menos energia e principalmente fé, comparecendo em massa às arquibancadas do Estádio Mário Helênio. No entanto, ainda que os tricolores protagonizassem a sua epopeia, havia outra história a ser contada. A história do Tupi, acostumado a fazer boas campanhas nas divisões inferiores durante os últimos anos. Que já vinha da Série B, rebaixado em 2016, e teve um bom desempenho no Grupo B durante a primeira fase da terceirona.
De um lado, a persistência do Fortaleza. Do outro, a confiança do Tupi em poder se tornar o pesadelo da vez. Em ser o que já tinham conseguido Oeste, Macaé, Brasil de Pelotas e Juventude. E o jogo no Mário Helênio, obviamente, começou bastante tenso. As duas equipes entravam forte, diante de tudo o que a noite valia. Precisando de dois gols, o Galo Carijó não demorou a partir para cima. Perdeu uma chance clara e chegou a acertar o travessão, com Ítalo, além de reclamar bastante de um pênalti não marcado pelo árbitro Marcelo de Lima Henrique. Fechado na defesa, o Leão do Pici saiu um pouco mais ao ataque apenas nos 15 minutos antes do intervalo, ameaçando, mas sem marcar.
Na volta para o segundo tempo, o Tupi foi ainda mais incisivo. O passar dos minutos empurrava as suas necessidades. E a insatisfação com o árbitro aumentou logo de cara, quando Andrey teve um gol anulado por impedimento. Apesar do incômodo, o Galo Carijó seguiu com sua pressão incessante. Via se agigantar do outro lado aquele que se transformaria no salvador do Fortaleza: o goleiro Marcelo Boeck, fundamental em todo o campeonato. Se Milton Raphael, Eduardo Martini e Elias foram os carrascos com ofício em comum nos últimos três anos, soava como destino que o goleiro tricolor se encarregasse de ascender como protagonista. Com os visitantes acuados, era ele o responsável por carregar as esperanças de sua torcida nas luvas.
Aos 36 minutos, o Tupi incendiou o estádio. Fernando abriu o placar para os alvinegros, aproveitando justamente um rebote de Boeck. Faltava um gol para o Galo Carijó forçar a disputa por pênaltis. Esbarrava em uma atuação gigante do arqueiro, que fez uma defesa monumental logo depois, desviando um chute de longe com a ponta dos dedos. O Fortaleza tentava gastar o tempo, prender a bola, enrolar o jogo. Os minutos se arrastavam para os cearenses e sufocavam os mineiros. A blitz dos anfitriões era constante, embora também sofressem alguns riscos nos contra-ataques. E depois de quatro minutos conturbados nos acréscimos, o árbitro assinalou o final do jogo. No Tupi, ficava a frustração pela luta em vão e a irritação com Marcelo de Lima Henrique. Já no Fortaleza, transbordava um sentimento de leveza. Os grilhões da Série C se rompiam. Os tricolores poderiam comemorar sem medo. Estarão na segundona, como mal podiam acreditar.
O épico do Fortaleza possui vários personagens peculiares. O próprio Boeck, membro da Chapecoense no ano passado, que não fez parte do elenco que viajou à Colômbia e pouco depois foi seguir a sua carreira no Leão do Pici, em mudança que gerou controvérsia. Antônio Carlos, que deu novo gás ao time, tinha sido justamente o responsável por comandar o Juventude que calou o Castelão em 2016. Ronny e Leandro Lima, medalhões de larga carreira que foram responsáveis por tentos decisivos na reta final da campanha, assim como Bruno Melo, presente nas três decepções anteriores. E podem ser destacados ainda outros. Mas é difícil encontrar um simbolismo igual ao de Dona Toinha, funcionária do clube desde a década de 1960.
Enquanto os jogadores festejavam o acesso, a idosa de 74 anos atravessava o campo de joelhos, ao lado de Juba, mascote tricolor. Naturalmente, Toinha não continha as lágrimas daquilo que podia reviver. Da mesma forma, outros membros do Fortaleza choravam copiosamente com a conquista – especialmente nas arquibancadas, onde o êxtase no setor visitante era impossível de segurar no peito. Todos no Leão do Pici estão em seu máximo direito de extravasar. E se as cenas em Juiz de Fora já foram de júbilo, mais ainda deve acontecer na volta para casa, com as ruas já tomadas pelos primeiros foliões que não se cansarão do carnaval fora de época.
O resultado também representa a classificação do Fortaleza às semifinais da Série C, nas quais enfrentarão o Sampaio Corrêa. Os tricolores não devem deixar a chance passar. Mais do que uma conquista, a taça seria a representação material do fim dos tempos cativos. Mas este pensamento, por ora, não ocupa a cabeça dos torcedores. Em momentos de uma redenção lisérgica, basta extravasar a emoção e libertar a mente dos fantasmas que os aterrorizavam ano após ano. É hora de deixar o fanático pelo Fortaleza, enfim, encher-se do orgulho próprio e inflar o peito, porque 2018 é ano de centenário do clube. É ano de sonhar alto, novamente na Série B.