Parece que está entrando areia no projeto estatal de futebol na Arábia Saudita
Saídas e possíveis saídas do futebol da Arábia Saudita deixam a questão: será o inverno antecipado da primavera saudita no futebol?
A expectativa era de um novo Eldorado do futebol bancado pela força dos petrodólares. Mas a realidade da Liga Saudita de Futebol Profissional flerta com um fracasso retumbante.
No papel, a ideia soava brilhante: contratar alguns dos maiores nomes do futebol mundial e criar um torneio atrativo aos olhos dos torcedores do mundo, que fizesse com que uma “nova” e “moderna” Arábia Saudita fosse apresentada ao mundo e com que o mundo tivesse interesse em conhecer essa nova pátria futebolística.
A execução da ideia está sendo feita pelo Fundo Soberano da Arábia Saudita, cujo projeto é investir até R$ 5 bilhões em contratações para o campeonato local. Foram contratadas estrelas da luminosidade de Cristiano Ronaldo, Karim Benzema, Sadio Mané, Neymar. Mas o projeto enrosca numa premissa: o investimento está concentrado nos quatro principais clubes de futebol do país: Al-Ahli, Al-Ittihad, Al-Hilal e Al-Nassr. Os clubes foram comprados pelo Fundo Soberano, criando uma bolha de investimentos numa primeira etapa.
Os reflexos foram imediatos: nível técnico baixo e desinteresse do público, com média abaixo de 10 mil pessoas nos estádios. Três dos quatro clubes do governo puxam a fila da classificação na data deste texto (23/01/2024): pela ordem, Al-Hilal, Al-Nassr e Al-Ahli. O Al-Ittihad é o sétimo colocado.
Depois da bonança, a ressaca: começa a debandada de jogadores da Arábia Saudita
Agora acontece uma segunda onda: a debandada de jogadores. O inglês Jordan Henderson deixou o Al-Ettiffaq e voltou para a Europa, para jogar no Ajax da Holanda. Karim Benzema, uma das grandes estrelas da liga, está dando uma canseira no Al-Ittihad com toda a pinta de forçar uma rescisão de contrato. O brasileiro Rpberto Firmino não disfarça o desejo de interromper a passagem pelo Al-Ahli.
Há coisas que nem o dinheiro dos príncipes sauditas consegue comprar. Nível técnico é uma delas. Para atletas acostumados a jogar no alto rendimento da Europa, o sonolento futebol saudita é um choque. Jogadores que ainda têm pretensão de jogar uma Copa do Mundo sabem que a ida para a Península Arábica é uma espécie de dispensa antecipada de suas seleções. Cristiano Ronaldo talvez seja quem menos se incomode com a situação. Ele segue colecionando marcas pessoais e nada incomodado em ter vendido sua imagem ao projeto político dos príncipes sauditas.
Ainda há esperança de salvar o futebol na Arábia Saudita: vai funcionar?
A esperança de salvação do chamado Sauditão está numa segunda etapa de investimentos que, teoricamente, abasteceria os outros 12 times da primeira divisão local com atletas de qualidade para elevar o nível técnico e, consequentemente, a atratividade.
Projetos político-esportivos não são novidade no futebol, o mais popular dos esportes globais. O Brasil teve seu capítulo nos anos 1970, o auge da ditadura militar, quando a então Confederação Brasileira de Desportos, coalhada de dirigentes militares, adotou o tema “onde a Arena vai mal, um time no Nacional”. Arena era o partido do governo militar. O método inflacionou de tal foram o Campeonato Nacional (que teve diversos nomes e fórmulas no período) que em alguns anos quase 100 equipes participaram. A ditadura naufragou na década seguinte, e o futebol seguiu em frente.
No caso da Arábia Saudita, uma ditadura de costumes religiosos, o dinheiro parece não ser o suficiente para comprar o sucesso. O projeto de vender uma nova imagem do país para o mundo é, na verdade, uma cópia atrasada do que os Emirados Árabes Unidos e o Catar estão fazendo há mais tempo. Modernizar cidades, “comprar” grandes eventos esportivos, construir museus, resorts e tentar atrair uma parcela do turismo internacional para que no futuro, quando o petróleo acabar, a economia esteja diversificada.
Antes da chegada do verão, a primavera do futebol saudita recebe um aviso de suas grandes estrelas: o inverno está chegando.