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Para proteger e servir

Dois de outubro de 2005. Um dia belo e quente na beira do rio Guaíba. Um jogo de futebol com 45 mil pessoas, Inter X Fluminense, disputa da liderança do campeonato nacional. Um incidente ocorre na arquibancada inferior, onde se situa a Torcida Organizada Camisa 12, uma das mais antigas do país. Um membro da torcida exibe uma bandeira da Super Raça, torcida do rival Grêmio, como troféu de guerra. Atitude semelhante foi observada na partida do Inter contra o Rosário Central, da Argentina: os torcedores platinos exibiram uma bandeira grande rubronegra, nas cores do rival Newell´s, para mostrar que a tinham roubado.

O que é comum na Argentina, porém, causa indignação em Porto Alegre: um torcedor não-membro da Camisa 12 se revolta com a exibição de uma bandeira gremista e vai discutir com o seu dono. As versões neste ponto divergem. Alguns torcedores afirmam ter visto o não-integrante dar três socos na cara de um diretor da torcida; outros afirmam que nada passou da agressão verbal; outros dizem que na verdade foi tudo por culpa da maconha; outros ainda dizem que viram os dois brigando e que a torcida foi tirar as dores do diretor da mesma. O fato consensual é que, nesse momento, chegou a Brigada Militar.

O procedimento habitual de captura de um criminoso ou arruaceiro é isolá-lo, imobilizá-lo e detê-lo. Incontáveis os eventos onde isso foi feito. Entretanto, os soldados optam pela ofensiva direta. Armados com cassetetes, dispersam a torcida Camisa 12. Com algumas agressões e principalmente com a soberba típica de ´homens da lei´: queixo erguido, peito estufado, passos decididos contra qualquer mortal que se atrever a pisar sua frente. A polícia começou a exigir a retirada de mastros das bandeiras e instrumentos. A torcida negou-se a retirar.

O clima ficou tenso. Os cerca de vinte brigadianos recuaram sob apupos e protestos da torcida. Ouvindo alguns xingamentos, alguns voltaram e ameaçaram mesmo inocentes. Isso somado às agressões tornou-se um estopim: em pouco tempo, os torcedores se mobilizaram para reagir. Voaram pedras, copos, pilhas, rádios, mastros de bandeira, instrumentos musicais, papéis, e tudo o que os torcedores tinham nas mãos contra os brigadianos.

O Batalhão de Operações Especiais certamente não esperava aquele comportamento. Recuaram em massa para dentro do túnel que fica ao lado da arquibancada. O recuo despertou o ódio de alguns torcedores, que correram atrás dos policiais forçando o portão onde eles se fecharam, continuando a atirar objetos. Acossados, os policiais não viram outra saída. Refugiaram-se no túnel de acesso ao campo e passaram a atirar bombas de efeito moral para dentro do estádio. Estas bombas geralmente são utilizadas para dispersar e acalmar multidões em campos abertos. O estádio Beira-Rio, no setor onde foram jogadas as bombas, tinha apenas duas saídas laterais: a de emergência estava fechada.

Foram cinco bombas na arquibancada inferior e uma na superior. Muita gente ainda não havia saído do estádio, para não pegar o aperto e as enormes filas que se formam logo ao final do jogo. Entre as pessoas que não saíram, além daqueles que reagiram à truculência da brigada jogando objetos, haviam mulheres, crianças, idosos, homens inocentes.

– Cara, o que houve? – pergunto eu para um homem que sai chorando do estádio.
– É o gás, é o gás. Não sei porque eles tocaram na gente…

Precedentes históricos

Confrontos da polícia com torcedores sempre aconteceram, ainda que sejam menos frequentes no Brasil, especialmente no Rio Grande do Sul. O último caso grave recente não ocorreu em um estádio de futebol. Foi na Avenida Paulista, na final da Libertadores entre São Paulo e Atlético Paranaense. Na última hora, os telões que transmitiriam o jogo foram impedidos de fazê-lo, provocando uma revolta de grandes proporções. A turba depredou lojas, arrancou telefones públicos, saqueou e destruiu quase tudo o que estava no entorno da avenida. Nessa ocasião, a polícia militar paulistana utilizou bombas de efeito moral para conter a multidão enfurecida.

Os casos mais recentes de confronto são o último GreNal do Campeonato Brasileiro de 2004, onde a vitória colorada por 3×1 praticamente decretou o rebaixamento do time rival. O conflito começou ainda na entrada dos times em campo, quando a torcida desorganizada Geral do Grêmio se recusou a tirar suas faixas da mureta, espaço comprado pelos patrocinadores do jogo. Com a insistência da Brigada Militar, os torcedores protagonizaram a já famosa ´avalanche´, que consiste em uma correria em direção à mureta para comemorar os gols. A ´avalanche´ nesse dia foi violenta: dezenas de pessoas correram em direção aos policiais, com voadoras, socos e atirando objetos. Um brigadiano saiu visivelmente machucado. Os incidentes, porém, persistiram: a derrota gremista e o virtual rebaixamento do clube à segunda divisão protagonizaram uma grande revolta, com a torcida depredando o patrimônio do clube e inclusive atirando carrinhos de pipoca para dentro do campo.

Em 2002, o Internacional também foi virtualmente rebaixado após uma derrota para o Cruzeiro dentro do Beira-Rio. A torcida também resolveu depredar o patrimônio do clube em protesto na saída de campo, enfrentando a Brigada Militar. Uma das manifestações mais comoventes: quando o time saiu do estádio, foi recepcionado com o hino colorado cantado de joelhos por centenas de torcedores que já haviam enfrentado a polícia.

Em outros países

No Brasil, entretanto, a violência policial é mais rara do que em outras praças. A Argentina é um país que tem um histórico bem vasto de violência entre suas torcidas e destas com a polícia, mesmo no Brasil já demonstraram isto. A torcida do River Plate entrou em confronto violento com a polícia militar paulistana na Libertadores deste ano, um confronto inciado, assim como na torcida gremista, pela divergência sobre o lugar onde colocar as faixas de apoio ao clube. A Polícia agiu com truculência e recebeu uma resposta deveras agressiva: pedaços de madeira dos bancos do Morumbi foram utilizados como armas no confronto, dez pessoas saíram feridas. Na partida Inter x Rosario Central, disputada dia 30/9 no Beira-Rio, a torcida do Central entrou em confronto com a Brigada Militar depois que um argentino roubou uma camiseta colorada e se refugiou na torcida. A troca de rojões entre as torcidas colorada e argentina também protagonizou cenas de violência entre os vermelhos: vários torcedores levaram pancadas de cassetete quando a Brigada Militar resolveu evacuar o espaço da arquibancada popular, localizada na frente do Gigantinho.

Na Argentina a normalidade de eventos como o acontecido no dia 2/10 no Beira-Rio é impressionante. O relato do site barra-bravas.com.ar é didático:

´Nuevamente en la Bombonera (el 31 de Agosto del 2003), a los 20 minutos del segundo tiempo y al ver que los hinchas visitantes arrojaban proyectiles hacia la bandeja inferior (ocupada por hinchas de Boca), la Doce va por detrás de la platea hasta la bandeja superior, e intercambia todo tipo de proyectiles (palos, mampostería y butacas) con la barra de Chaca, hasta que la policía interviene y reprime arrojando gases. Hubo más de 60 heridos y ningún detenido.´

Este fato aconteceu em um amistoso, entre Chacarita e Boca Juniors, no estádio do Boca. Uma troca de objetos arremessados entre as duas torcidas terminou também com bombas de gás, provocando mais de 60 feridos. Não foi um fato inédito, como podemos ver na sequência:

´En Brasil, La 12 intercambia proyectiles con hinchas de Santo que estaban es la tribuna superior. En los festejos y al termino del encuentro, La 12 intercambia golpes con la policia y hay corridas a la salida del estadio. La barra de Boca rompe las puertas de los baños y accesos y la policia tira gases lacrimogenos.´

´Tambien hubo enfrentamientos en Mar del Plata, en un amistoso de verano. Primero en la platea, cuando los de River saltaron a robarle un trapo a la gente comun. La hinchada de Boca fue a buscarlos y hubo enfrentamiento en la platea. La pelea siguio en el playón donde hubo corridas y gases.´

´En el 2002 en el Monument, La 12 arranca butacas y las arroja a la gente de River. Ademas se queman papeles e intervienen los bomberos. Luego, la policia dispersa a la barra de Boca con gases lacrimogenos y agua.

O sociólogo Pablo Alabarces crê que essa radicalização da violência ocorrida na Argentina deve-se à ´tribalização´ da cultura do futebol. Em entrevista na Unicamp, afirmou o seguinte: ´Os torcedores argentinos firmam uma identidade essencialmente tribal, em que o bairro é o território primordial, enquanto a noção de país fica mais distante. Os times são locais. A exceção é o Boca, que possui torcedores em outras regiões, mas que ainda assim adota como território específico o bairro de Buenos Aires que lhe deu o nome´ .

Um outro fator relevante para isso é a conivência da polícia. Leandro Hosen, torcedor do Independiente, disse certa vez que é preciso um cuidado extra ao entrar em estádios como o Gigante de Arroyito, do Rosario Central. ´São realizadas muitas emboscadas contra os torcedores visitantes e a polícia colabora´, afirma o estudante argentino. ´Não é bom levar nenhum instrumento, bandeira ou mesmo camiseta que possa identificar o torcedor do clube visitante. A polícia ajudará a localizar o visitante e tirar dele o que tem.´

Essa cultura tribalista vinda da Argentina e de outros países como a Itália, onde também ocorrem grandes enfrentamentos entre torcidas, tem o seu lado positivo. A festa que os torcedores fazem dentro do estádio é incomparável. Não é raro ver a torcida fazendo grandes festas com fogos, sinalizadores, papéis picados e rolos, bandeiras, ainda que tudo isso seja proibido pela polícia. Na Argentina, além da conivência prevalece também o bom senso em algumas ocasiões; como todos gostam de ver a torcida dar espetáculo e querem que a festa seja maior que a do rival – inclusive os policiais – há muita vista grossa para elementos que têm como único objetivo incentivar visualmente os jogadores.

No Brasil, esses elementos são quase sempre proibidos e considerados de alto risco. Mesmo faixas grandes não podem entrar, sem nenhuma explicação coerente. Segundo a Brigada Militar, papéis não entram porque podem ser queimados e ferir pessoas; fumaça e sinalizadores são elementos agressivos que também podem queimar outros torcedores. Bandeiras de mastro são consideradas armas, ainda que com hastes de plástico mínimas, como as bandeirinhas retiradas das crianças do projeto Criança Colorada no fatídico dia 2/10.

O dia seguinte

Após os incidentes ocorridos no Beira-Rio, a Brigada Militar teve uma atuação muito mais comedida.

O vice-governador do Estado Antônio Hohlfeldt e o coronel responsável pelo policiamento em Porto Alegre, Édson Alves, estiveram presentes no evento. Ouviram as ostensivas vaias à Brigada Militar dentro do campo quando alguns soldados carregavam uma faixa pela paz. ´Covardes, covardes´, gritavam os torcedores, ainda revoltados com a truculência do domingo anterior. Édson teve o seu dia de estrela: em pouco mais que vinte minutos, foi entrevistado por três emissoras diferentes, onde deu as mesmas declarações: ´Foi um episódio que servirá de lição para a Brigada´, ´O efetivo continuará o mesmo´, ´pedimos desculpas à população´, ´Isso não mais se repetirá´, etc.

No mesmo terreno pude observar duas coisas interessantes.

A primeira foi a diferença do efetivo de acordo com o setor do estádio. No portão um, destinado às cadeiras perpétuas e tribunas de honra, apenas dois policiais faziam a vigia: um homem e uma mulher, para revistar ambos os sexos. Nos portões onde entram os torcedores de menor poder aquisitivo, populares placar, gigantinho e gerais, o efetivo ficava em torno de doze policiais, a maioria homens. Ao lado da torcida organizada protagonista do confronto de domingo, até carros da BM estavam estacionados.

Defronte às cadeiras, aproximei-me de Guto Ferreira, coordenador das categorias de base do Internacional. Perguntei o que achava sobre o confronto entre a torcida e a polícia ocorrido no domingo. Esquivou-se.

– Olha, eu não sei, não estou no vestiário do profissional para saber o que eles pensaram sobre isso….
– Sim, mas mesmo entre os jogadores das categorias de base, qual foi a reação?
– Esse assunto não foi abordado…não falamos sobre isso…
– Mesmo sabendo que muitos deles podem ser parte interessada no conflito?
– Por que seriam parte interessada no conflito?

Passei a crer, depois dessa curta entrevista, que será extremamente difícil algum jogador colaborar com uma campanha de ´não à violência´, dado a doce alienação em que vivem os vestiários.

Foto de Equipe Trivela

Equipe Trivela

A equipe da redação da Trivela, site especializado em futebol que desde 1998 traz informação e análise. Fale com a equipe ou mande sua sugestão de pauta: [email protected]
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