Expresso Belgrado-Vladivostock

O que é o que é? São bi-vice em Mundiais e não são a badalada Holanda? Encantaram o mundo do futebol nos anos 50 e não tinham Pelé? Revolucionaram a tática e não vestiam laranja? Estiveram entre os quatro primeiros colocados em nove Mundiais e não são latino-americanos? Não são africanos, mas aprontam de verdade em quase todas as Copas?
Quem não é saudosista mas sabe a resposta observará, em meio à crise de ansiedade pré-Copa, que o Leste Europeu levará grande parte das vagas européias para o Mundial da Alemanha. Ora, Sérvia-Montenegro, Ucrânia e Croácia lideram suas chaves, Eslovênia, Polônia e República Tcheca são segundas e Romênia e Rússia, terceiras em seus grupos. Finalmente, os céticos e pragmáticos que não se apegam ao passado e não confiam em previsões para o futuro encerrarão a questão lembrando que Pavel Nedved levou a Bola de Ouro em 2003 e que sua República Tcheca apresentou o melhor futebol na Euro-2004, ano em que o ucraniano Andriy Shevchenko manteve o renomado troféu da France Football no leste europeu.
É curioso que tanto se louve a Holanda e seu carrossel revolucionário, que tanto se escreva sobre a força da América Latina e que tantas previsões sejam feitas sobre as seleções africanas e seus circenses atletas, enquanto poucas linhas sejam escritas sobre a história, a força e a capacidade de renovação mostradas pela escola do leste europeu. Seria um ranço de ‘comunismofobia’? Seria a distância geográfica? Ou o isolamento histórico? Para provar que jogador eslavo não come criancinha e que atualmente as distâncias não estão com nada, vamos jogar um pouco de luz e justiça no futebol da Europa oriental e sua inegável relevância na história do mais apaixonante dos esportes.
Quando se fala em futebol do leste europeu, normalmente se pensa nas finadas União Soviética, Iugoslávia, Tchecoslováquia e Alemanha Oriental; nas ‘novatas’ Croácia e Eslovênia; nas tradicionais Hungria e Polônia, além de Romênia, Bulgária e, ao que tudo indica, Ucrânia. Destes, deixaram marcas indeléveis tchecos, húngaros, iugoslavos, poloneses e soviéticos. Vamos passear um pouco na história e ver quando e como os talentos da Europa oriental encantaram o planeta bola.
Pode-se dizer que o futebol é mais antigo que a concepção atual de leste europeu. Bem antes da revolução russa tentava-se praticar o futebol em solo europeu. Tentava-se. Os czares não puderam apreciar o esporte nos jogos olímpicos de 1896 por um motivo singelo: não houve países interessados em disputar a modalidade recém-criada.
Os anos 20 mostraram, além da belle epoque e da criação da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, uma Celeste se tornando olímpica num esporte que já agradava a capitalistas e socialistas. No entanto, o futebol ainda não era utilizado como ferramenta de propaganda por este ou aquele regime – situação esta que se alteraria radicalmente na tensa década seguinte.
O leste europeu foi representado no Mundial de 30 por Romênia e Iugoslávia, que venceu o Brasil e terminou em quarto lugar. Pouco, se comparado ao vice-campeonato da Tchecoslováquia no Mundial de 34, em que também participaram Hungria e Romênia. Os tchecos venceram romenos, suíços e alemães antes de sucumbirem na final, de arbitragem duvidosa, diante dos ‘camicia nera’ de Mussolini, para quem futebol era assunto de estado e manifestação de superioridade racial.
A Copa de 38 na França veria novamente um país do leste europeu no segundo degrau do pódio. Uma tal de Hungria se apresentava para o mundo ao disputar e perder a final diante dos fascistas de Benito. Os eslavos cruzariam duas vezes o caminho do Brasil nesse Mundial. O lendário jogo em que Leônidas atuou alguns minutos descalço e anotou quatro tentos foi contra a Polônia: 6 a 5 para os sul-americanos. Já nas quartas-de-final, a Seleção teve uma parada indigesta ante os então vice-campeões tchecos: 2 a 1 na prorrogação, com direito a três expulsos e cinco contundidos, que deixaram o campo numa época em que não se falava em substituições.
Os anos 40 fizeram o mundo chorar e também conhecer o nascente conceito de Guerra Fria. A maneira como o futebol foi usado como propaganda ideológica fez Mussolini e Hitler parecerem amadores nessa arte. Sem Mundiais, vale o registro da medalha de prata dos iugoslavos nas Olimpíadas de 48. Aliás, falando em Guerra Fria e Olimpíadas, a partir de 1948 notou-se um grande carinho dos camaradas de Moscou para com os Jogos Olímpicos, conforme veremos adiante.
Duas décadas cheias de títulos
Vieram os anos dourados, com seus ‘baby boomers’, uma tal de Copa dos Campeões e um famigerado ‘tanque húngaro’. No Mundial de 50, a Iugoslávia perdeu do favorito Brasil por 2 a 0. Dois anos depois, Helsinki conheceria Grosics, Czibor, Kocsis e um canhoto gorducho, Ferenc Puskas: Hungria campeã olímpica, Iugoslávia medalha de prata. Os Jogos eram supostamente para atletas amadores, mas até hoje se comenta que os países do eixo socialista usavam atletas que na verdade eram profissionais, cujos empregos em outras instituições eram só de fachada. Bom, isso deve explicar por que eles monopolizaram a competição, faturando oito medalhas de ouro seguidas.
Por falar na Hungria, a seleção do país decidiu ficar invicta por 31 jogos, sendo 27 vitórias, incluindo duas goleadas humilhantes sobre os ingleses, e minguados quatro empates, desempenho que deixaria Parreira arrepiado. A Copa de 54 viu pela segunda vez seguida o favorito disparado sucumbir de maneira surpreendente. Para chegar à final contra os germânicos, Puskas e sua trupe bateram os campeões uruguaios, os vice brasileiros, os pretensiosos ingleses e os próprios alemães pelo singelo placar de 8 a 3. Saíram vencendo a final por 2 a 0, perderam por 3 a 2 e 4/7/54 marcou o ‘Maracanazo’ magiar. Ainda hoje se fala da suspeita exuberância atlética mostrada pelos campeões ocidentais. Também jogaram na Suíça Tchecoslováquia e Iugoslávia.
Em 1956, a revolução húngara começava a mostrar ao mundo que o comunismo ia além do futebol, e que não era tão perfeito assim. No mesmo ano, cansado de apenas ganhar a medalha de ouro no futebol, o leste europeu resolveu levar prata e bronze também. Ocuparam o pódio em Melbourne, em ordem decrescente, União Soviética, Iugoslávia e Bulgária. Os mesmo soviéticos poriam medo nos ‘vira-latas’ brasileiros no Mundial de 1958. Só medo, pois o Brasil venceria com louvor e traria no menino Pelé um rival à altura para Ferenc Puskas. Jogaram ainda em solo sueco iugoslavos, tchecos e húngaros. Puskas encerraria a movimentada década faturando seu primeiro título da Copa dos Campeões pelo Real Madrid.
Os anos 60 nos brindaram com o advento da ‘Copa do Mundo sem sul-americanos’. A Eurocopa, criada e jogada na França, voltou a coroar os soviéticos, que bateram os iugoslavos na final. Para monopolizar o pódio, os tchecos ficaram em terceiro. No mesmo ano, a Iugoslávia faturaria a medalha de ouro em Roma. Enquanto isso, Puskas papava mais uma Copa dos Campeões e um Mundial Interclubes pelo Real Madrid. Nada parecia segurar os europeus orientais e seu futebol forte e de toque refinado. Quase nada. A Tchecoslováquia empatou com o Brasil, venceu Hungria e Iugoslávia mas parou em Garrincha e companhia na final do violento mundial do Chile. Participaram ainda Bulgária e a União Soviética de Lev Yashin, o Aranha Negra.
Em 1964 a Espanha de Franco enfrentaria e venceria a União Soviética de Khruschev e Yahsin na final da Eurocopa em que a Hungria seria terceira. Mais um gol capitalista na Guerra Fria. Para dar o troco, Hungria, Tchecoslováquia e Alemanha Oriental mantiveram o domínio socialista no futebol olímpico. O Mundial de 66 manteve a violência mostrada no Chile e Yashin, jogador da Europa em 1963, conduziu seus camaradas ao quarto lugar. No mesmo ano, o insaciável Puskas seguia sua rotina na Copa dos Campeões ao bater justamente o Partizan Belgrado na final. A Primavera de Praga em 1968 daria outro indício ao mundo de que o império dos futebolistas mágicos não era afinal tão sólido e amado como se poderia supor. Eurocopa na Itália, donos da casa campeões sobre a Iugoslávia, com os soviéticos em quarto novamente. Na esfera olímpica, nada mudava: Hungria tricampeã, Bulgária vice.
Volta ao papel de coadjuvantes
A década seguinte mostraria o início da decadência do império vermelho. O Mundial do México pode ter sido a ‘Renascença’ do futebol bonito (nenhum atleta foi expulso), mas nem tchecos nem soviéticos nem búlgaros se destacariam na Copa. Claro, a rotina olímpica se mantinha: Polônia, Hungria e URSS na cabeça em Munique. No mesmo ano, outra vez a Guerra Fria foi refletida na final da Eurocopa. Novo triunfo ocidental: Alemanha 3×0 URSS, com a Hungria beliscando o quarto lugar e praticamente se despedindo do primeiro escalão do futebol mundial.
A Copa de 74 talvez tenha mostrado uma das mais perfeitas manifestações de um mundo dividido. Jogando em casa, a Alemanha Ocidental enfrentaria e cairia diante de sua irmã comunista – derrota essa que muitos dizem ter sido premeditada no caminho para o título dos ocidentais. Além da Alemanha Oriental, jogaram o Mundial Iugoslávia, Bulgária e Polônia, que salvou a honra vermelha e terminou em terceiro, tendo em Lato o artilheiro com sete gols.
1976 marcaria o último título Europeu ganho pelos socialistas. Após passar por URSS e Inglaterra, coube à Tchecoslováquia bater os campeões europeus e mundias alemães na finalíssima. Em Montreal, as medalhas do futebol foram para Alemanha Oriental, Polônia e URSS. O cenário político continuava influenciando o mundo do futebol: Cruyff se recusou a jogar o Mundial da Argentina em represália à ditadura de direita de Videla. Coincidência ou não os holandeses novamente cairam na final, agora diante dos portenhos liderados por Kempes. O leste europeu foi representado por Hungria e Polônia.
Se a década anterior marcara um declínio gradual do futebol do leste europeu, os anos 80 representaram um choque de realidade com sabor de Perestroika e Glasnost. Pela primeira vez, uma final de Eurocopa não teria nenhuma seleção da região. O torneio foi vencido pelos alemães, e os tchecos terminaram em terceiro. A seqüência de oito títulos olímpicos também teve seu último capítulo, com as medalhas tchecas, alemãs orientais e soviéticas em Moscou. O destaque ficou para a Polônia, primeira colocada em sua chave e terceira no Mundial da Espanha, que contou também com Hungria, Tchecoslováquia, Iugoslávia e URSS.
As vacas magras dariam as caras de vez na Euro-84: ninguém do leste europeu entre os quatro semifinalistasm, algo inimaginável 10 anos antes. Copa de 86, e búlgaros, húngaros e poloneses entraram como meros figurantes. Os soviéticos foram para a competição com mais moral, mas acabaram sucumbindo nas quartas-de-final frente à surpreendente Bélgica. Salvaram a glória do leste o Steua Bucareste, vencedor da Copa dos Campeões de 1986, e a URSS, campeã olímpica sobre o Brasil em Seul. Na terceira Euro da década, Dasaev foi fantástico, mas não pôde parar Van Basten e companhia na final em que os laranjas bateram os soviéticos. Em 1989, o Steua Bucareste chegou novamente à final da Copa dos Campeões, mas perdeu do fabuloso Milan de Gullit e Van Basten.
O Império soviético ruía, o dinheiro minguava, o orgulho definhava, e o futebol refletia tudo isso. Esse foi o duro cenário do leste europeu no início dos anos 90. Mesmo assim, o Mundial de 90 mostrou ao mundo a talentosíssima geração iugoslava de Katanec, Boksic, Prosinecki, Savicevic e Suker (isso, esse mesmo que você está pensando). Numa Copa de nível técnico baixo, os craques azuis poderiam ter vencido o torneio se não vissem seus pênaltis serem defendidos pelo endiabrado Goycochea. A Tchecoslováquia perdeu para a campeã Alemanha. URSS e Romênia foram os demais representantes orientais na disputa. Mas os fantásticos iugoslavos não ficariam de mão abanando: em 1991 levaram a Copa dos Campeões para Belgrado após bater o Olympique nos pênaltis. No ano seguinte, mais uma vez o componente político escreveu um capítulo da história do futebol. Apesar da brilhante seleção, a favorita Iugoslávia, em guerra, não disputou a Euro-92 e cedeu a vaga a uma tal de Dinamarca, que resolveu então herdar a aura eslava e ganhar o torneio. Sinal dos tempos, mudança na sopa de letrinhas: a antiga URSS disputou o campeonato europeu como CEI, Comunidade dos Estados Independentes.
O Mundial de 94 mostraria ao mundo que mesmo com a União Soviética fora de cena o talento da escola do leste europeu sobrevivia. Romênia e Bulgária deram show em solo ianque. A primeira, regida por Hagi, eliminou a favorita Argentina em um jogo memorável. A segunda, que derrubara a França nas eliminatórias mas nunca tinha vencido nenhum dos 16 jogos disputados em Copas, aprontou pra cima da Alemanha e conquistou o quarto lugar. A Rússia foi Rússia pela primeira vez em Copas, e a Iugoslávia continuava fora por motivos extracampo.
A segunda metade da década, após um relativo jejum para os altos padrões do leste europeu, mostrava uma perspectiva positiva de renovação, dentro e fora do gramado. A República Tcheca nasceu da costela da Tchecoslováquia, mostrou ao mundo Poborsky, Kuka e Nedved e chegou à final da Euro-96 em solo inglês. No mesmo torneio, a Croácia, livre das garras iugoslavas, mostrava seu rosto ao mundo. E mostraria muito mais dois anos depois. Capitaneados por Suker, os croatas eliminariam os alemães (caindo pela segunda vez seguida diante de um time eslavo em Mundiais), quase despacharam os franceses na semifinal e ficaram com o terceiro lugar. Nada mal para uma estreante em Copas. Bulgária, Romênia e principalmente Iugoslávia também encantaram os olhos dos espectadores na França.
Perspectivas de recuperação?
Como nenhuma recuperação é fácil, registrou-se nova baixa após 1998. Na Euro-2000, Romênia e Iugoslávia não passaram das quartas. E em 2002 Eslovênia, Polônia, Croácia e Rússia morreram na primeira fase, junto com França, Argentina e Portugal, diga-se de passagem. Não obstante, a perspectiva agora é novamente positiva. A emocionante Euro-2004 teve na República Tcheca de Cech, Nedved, Poborsky, Koller e do artilheiro Baros o futebol mais plástico e consistente entre todos os participantes. Quem se esquecerá da partida antológica frente à Holanda? Mas, assim como Felipão, os tchecos se curvaram diante da maldição grega. Para completar, valores individuais como Schevchenko e Nedved figuram entre os melhores do mundo e novos talentos surgem no fértil solo da sofrida Europa Oriental.
Nossa maratona está chegando ao fim. A história do futebol é uma metonímia da história do século XX. As últimas páginas documentam um rico legado cuja importância grande parte do mundo do futebol prefere ignorar, subestimar ou menosprezar. A escola de futebol do leste europeu é uma das mais talentosas, vitoriosas, tradicionais e promissoras do planeta. Pouco se sabe sobre essas seleções, e muito há para se aprender com seu estilo que combina o vigor físico alemão com o toque de bola refinado argentino e a habilidade dos brasileiros. No que se refere à qualidade e potencial, os países da Europa oriental têm tudo para voltar a disputar títulos e encantar o planeta com suas jogadas fabulosas. O tempo fará questão de nos mostrar isso.