‘Incoerência’: Sandra Santos desabafa sobre demissão do Governo às vésperas da votação para sede da Copa Feminina de 2027
Exonerada do cargo na Secretaria Nacional do Futebol, Sandra Santos conversa com o Podcast Papo de Mina em episódio especial do Dia Internacional a Mulher
Ainda absorvendo os acontecimentos da última semana e sem “plano B”, Sandra Santos tem se mantido firme, apesar da tristeza. Exonerada do cargo na Diretoria de Políticas de Futebol e de Promoção do Futebol Feminino, no dia 29 de fevereiro, a ex-treinadora das categorias de base do Santos feminino falou de forma aberta sobre o período em que comandou a pasta. O tom de desabafo não deixa qualquer dúvida: mulheres em posições de poder no Governo incomodam — e não é pouco.
— Um dia cheguei no trabalho e me falaram: “Pediram o seu cargo”. Simplesmente assim. Eu tive um baque, e perguntei: “Qual o critério? O que está acontecendo?”. Eu fiz algumas perguntas, eles anotaram, para ver se alguém poderia me dar um retorno. Me avisaram na quinta-feira, e na madrugada da sexta eu já estava exonerada. E aí as coisas que já estavam todas pautadas e planejadas, com agenda e com recursos (públicos), não vão acontecer — contou a gestora, em entrevista ao episódio especial do Podcast Papo de Mina no Dia Internacional da Mulher.
“Não tem coerência. Esse é o recado. Ponto. Não vejo nada diferente disso, porque não tem lógica. Eles tiraram a diretora que está há um ano trabalhando profundamente em todas as regiões e envolvida na Copa.”
Legado de Copa do Mundo não é estádio
Às vésperas da votação do Conselho da Fifa para a escolha da sede da Copa do Mundo Feminina de 2027, que será realizada em 17 de maio, o Ministério do Esporte passa por uma “reestruturação” que culminou na demissão das únicas duas mulheres que integravam a Secretaria Nacional de Futebol. Christhiane Souza da Silva, coordenadora-geral de Futebol Feminino, foi readmitida, mas o mesmo não aconteceu com Sandra.
— Eu fui para a Austrália junto (com a Ana Moser) para entender o impacto da Copa do Mundo Feminina lá. Então, você prepara um profissional, que já é especialista, para estar no desafio, e aí, quando está prestes a conseguir, porque é 17 de maio, você dispensa esse profissional? – questionou.
— Você preparou o melhor jogador do seu time nessa posição, e o melhor jogador do seu time nessa posição é descartado. Porque foi esse o movimento que aconteceu. Não tem coerência. Só que aí, além de ele ser descartado, ninguém foi colocado no lugar. O que eles alegaram é uma reestruturação. Então não tem ninguém. Um coordenador, que é servidor de carreira, assumiu a pasta como substituto. Então, hoje nós não temos ninguém no cargo de Diretoria de Políticas de Futebol e de Promoção do Futebol Feminino porque eles descartaram.
A delegação da Fifa, liderada por Sarai Bareman, diretora-chefe de futebol feminino da entidade, visitou as instalações do Brasil na semana do dia 21 de fevereiro. O tour de caráter técnico passou por Brasília, onde o presidente Lula (PT), membros do Governo e do Ministério do Esporte se reuniram para debater estratégias e o legado que a competição poderia deixar ao país.
Tudo caminhava bem na área, mas os últimos acontecimentos colocaram em xeque o comprometimento do Governo com o legado da competição. A situação é quase um “dèjá vu” da Copa de 2014, em que muitas obras e projetos não foram concluídos ou não tiveram sequência após a disputa do Mundial no Brasil.
— A Copa só tem sentido se tiver legado antes. E legado não é estádio. Legado é transformação social, impacto social… É criar meios para a mulher poder trabalhar no que ela quiser, inclusive no futebol.
Promoção do futebol feminino em meio ao machismo
De todos os temas sensíveis por Sandra, o mais delicado de abordar para ela foi a cultura machista intrínseca nos corredores do Governo. A treinadora ressalta que a misoginia não tem partido político e nem cargos. Isso porque a maioria dos homens com quem ela trabalhou no último ano demonstraram não dar muito crédito ao seu conhecimento técnico.
Por mais de duas décadas, Sandra Santos trabalhou com o desenvolvimento de projetos sociais que combinavam futebol feminino e educação e também integrou comissões técnicas de grandes clubes do Brasil, além de ter atuado como coach comportamental na seleção brasileira.
— Para mim é nítida a cultura machista. Essa traz uma certa preguiça diariamente de tratar do assunto. Isso só vem do machismo – ponderou Sandra.
— Eu tinha muitas reuniões com o Ferrarezi (ex-Secretário Nacional do Futebol e Defesa dos Direitos do Torcedor), em que muitas vezes eu era a única mulher da mesa, e os homens entravam, sentavam e se direcionavam para o Ferrarezi. Começava uma pauta e, de repente, ele falava: “Bom, agora vocês vão dar continuidade ao tema com a Sandra, que é a especialista da pasta”. Aí as cadeiras viravam para mim, porque ele saía da sala – relembrou.
Efeito dominó no Ministério do Esporte
Ana Moser foi exonerada da chefia do Ministério do Esporte, em setembro de 2023, em uma reforma ministerial do presidente Lula (PT). A ex-atleta do vôlei foi a primeira e única mulher a ocupar a cadeira, que foi muito visada pela oposição desde o primeiro dia de mandato. A estratégia política de derrubar uma figura que disseminava o lema “esporte para todos” não foi por acaso. Há um efeito dominó motivado por interesses de partidos políticos.
— A saída dela (Ana Moser) foi a primeira grande perda nas questões de impacto social. Porque você falar de impacto social só entre parlamentares, num discurso padronizado, já não convence mais as pessoas. Ela não só falava isso, mas vivia isso. Ela tinha o conhecimento técnico e, assim como eu, ela acreditava que dava para fazer mais pela sociedade através do esporte. Muitas vezes, ela foi fritada porque cobravam um papel político dela, mas o que as pessoas não entendem é que o papel político está na execução e nas entregas – analisou a ex-diretora.
Por fim, Sandra continua com a ideia de que “dá pra fazer mais” estando dentro do Governo. Por isso, agora exonerada do cargo, fará o papel de cidadã, cobrando que os projetos e iniciativas pró-futebol feminino saiam do campo das ideias e se tornem realidade, enquanto busca por novas oportunidades.
— Vamos esperar para ver quem vai ser nomeado. Eu não acredito que possa ser ter uma surpresa, de que seja uma mulher, e que tenha o mínimo de experiência. Não tenho boas expectativas de que venha uma mulher – disse.
— Estou agora começando a pensar no meu plano B, porque eu realmente vim para cumprir essa missão. Então, ainda estou no momento de me ressignificar, mas eu não esperava toda essa repercussão de forma alguma. Isso também me traz muita reflexão, porque até então eu me sentia solitária. Ainda não estou decidida sobre para onde vou ou o que fazer, mas estou de olho se eles (do Governo) continuam ou não (os projetos) – concluiu.