O que é o token dos torcedores que está ganhando espaço no mundo do futebol – e quais os seus problemas
Produto da Socios.com promove um engajamento cosmético e um mercado de compra e vendas que pode ser perigoso

Você talvez já tenha cruzado com a Socios.com. O aplicativo, afinal, fez parceria com 48 clubes, incluindo brasileiros como Corinthians e Atlético Mineiro, e aparece como patrocinador principal das camisas de Internazionale e Valencia. A sua presença no mundo do futebol é cada vez maior, mas o que exatamente ele oferece? Uma maneira de aumentar a influência dos torcedores em seus clubes ou uma maneira de fingir que está fazendo isso e aproveitar para gerar uma nova fonte de renda?
O produto oferecido pela Socios.com é um token de torcedor. Uma espécie de ficha ou ação virtual que concede acesso a programas de vantagens e descontos, não muito diferente de sócios-torcedores, mas também poder de voto ao seu portador em decisões que serão tomadas por clubes como Paris Saint-Germain, Juventus, Barcelona, Milan, Roma, Atlético de Madrid, Manchester City, Independiente, Arsenal, seleção argentina, seleção portuguesa, Corinthians, Atlético Mineiro, entre outros.
Naturalmente, quem possuir mais tokens tem mais influência nos resultados das enquetes. Quando o Atlético Mineiro lançou o seu, digamos, IPO, fixou o preço de cada token em cerca de R$ 10 para a data do lançamento. Em seguida, alertou, o valor flutuaria de acordo com “oferta e demanda”, porque também se criou um mercado de compra e vendas de tokens sobre o qual falaremos um pouco mais daqui a pouco. O voto do torcedor que possui 10 tokens vale por 10 e assim por diante.
Em um cenário pós-Superliga Europeia, quando houve manifestações em massa por mais participação dos torcedores nos processos de tomadas de decisão, incluindo medidas (algumas contestáveis) de alguns clubes da Premier League nesse sentido, pode ser um caminho, certo? Certo, exceto que, mesmo se fosse, seria um caminho mediante poder econômico, e na verdade não é caminho nenhum porque as decisões que são submetidas aos portadores dos tokens não são exatamente de vida ou morte, nem necessariamente vinculantes – quando o clube precisa obedecer o resultado das enquetes.
O site oficial do aplicativo anuncia o seu principal produto desta maneira: “Poder aos torcedores. Tokens de torcedores lhe concedem o status de um verdadeiro influenciador. Ajude o seu time a tomar as decisões certas ao votar em todas as suas enquetes oficiais no Socios.com”. Mas logo abaixo, ficam claras quais são essas decisões: escolher a mensagem que constará na faixa de capitão do PSG; uma nova música para comemorações de gol no estádio da Juventus; qual jogador do Atlético de Madrid assumirá a conta oficial de Instagram do clube por dias dias; um novo lema para o vestiário do Milan; e o design do ônibus do Trabzonspor.
Os clubes brasileiros que já aderiram ao Socio.com deixaram bem claro qual era o propósito. O Corinthians o Atlético Mineiro disse que “entre as decisões estão escolher o layout do ônibus do galo, a música que toca no estádio durante o aquecimento e o melhor jogador da temporada”. Outros anúncios foram mais confusos.
“O Socios.com descreveu seu serviço como um no qual você compra ‘influência e uma voz nas decisões tomadas pelo Arsenal’. Isso não é correto, na nossa visão e com base nos tipos de enquetes que o Arsenal discutiu conosco”, afirmou o Arsenal Supporters Trust, em um comunicado oficial. “As pesquisas de engajamento serão em assuntos menores, como qual jogador pode administrar a conta de Instagram naquela semana, ou qual foto estará no ônibus do time. A primeira pesquisa é sobre qual música pode ser tocada no fim da partida quando vencermos”.
Uma fonte do Barcelona deixou bem claro, um trabalho de gestão magnifico e não precisa de ajuda mesmo.
O grupo de torcedores do Arsenal alerta, inclusive, que seria “inaceitável” se o clube usasse o Socio.com para “monetizar engajamento formal com os torcedores ou tomar decisões substanciais sobre a administração do clube”. Um dos temores é que quem aderisse ao aplicativo suplantaria torcedores que possuem carnês de temporada, vão a todos os jogos e são ativos dentro das comunidades, em nome de uma geração extra de renda. Em resposta a isso, muitos clubes acertaram com a empresa que doarão um token grátis a todos os portadores de carnês de temporada – uma medida praticamente inócua porque, em média, um usuário possui 66 tokens do Arsenal, segundo a reportagem da The Athletic. O Galo também concedeu um token grátis para quem se cadastrasse usando o mesmo e-mail do sócio-torcedor.
Alexandre Dreyfus, CEO e fundador da empresa, não esconde que a sua intenção é realmente monetizar o engajamento dos torcedores e afirma que o público-alvo não é o torcedor que vai ao estádio, mas os “99,9% que não estão sequer na cidade do time para o qual torcem”, como afirmou em entrevista ao site Sports Pro Media.
“Nosso negócio é ajudar os clubes a gerar uma receita adicional. E essa receita vem da ideia que começamos três anos e meio atrás, que é uma crença de que a indústria do esporte sairá de um torcedor passivo para uma indústria em que o torcedor é ativo, em que os torcedores têm mais influência. Claro que uma influência limitada, mas ainda uma influência, e que essa influência pode ser monetizada”, disse.
“Então temos essa visão de que duas coisas importam ao torcedor: uma delas é ser reconhecido como um torcedor, e, estando na Coreia, no Japão, no Brasil ou na França, eu possa ser reconhecido como um torcedor porque o esporte é isso hoje em dia: é global, não é local. E, de repente, como um torcedor reconhecido, posso ter uma voz”, completou.
Ele próprio descreve que, em vez de você ter uma ação de uma empresa – quando, nota do editor, você potencialmente pode decidir sobre coisas importantes – você tem uma “ação de influência”.
“Semana passada, por exemplo, o PSG perguntou aos torcedores qual capa do FIFA 22 eles queriam para a edição do PSG. É pequeno, mas nunca havia sido perguntado antes. Qual música a Juventus tocará todas as vezes que sair um gol no estádio. Talvez seja pequeno, mas ainda assim, nunca havia sido perguntado. Para nós, a fundação é a influência, a participação, o reconhecimento de ser um torcedor e fazer parte desta comunidade, desta comunidade digital que me dá novas maneiras de interagir com o meu time”, afirmou.
Outras torcidas da Inglaterra reclamaram também. O Supporters Trust do Aston Villa disse que era uma maneira de “monetizar o entusiasmo e a lealdade dos torcedores”, e o West Ham teve que abandonar o acordo que havia fechado em 2019 por causa da repercussão. “Esperamos que outro esquema de exploração da opinião do torcedor nunca mais entre no West Ham e que nosso clube comece a se engajar de maneira significativa com os torcedores daqui para frente”, afirmou a Associação de Torcedores Independentes do West Ham, um dos grupos que participou da campanha “Não Pague Para Ter Uma Voz” contra a parceria.
Dreyfus acha que os grupos de torcedores não entenderam o espírito da coisa. “Nosso objetivo não é monetizar o torcedor tradicional e hardcore. Nosso objetivo são os 99,9% dos torcedores que não estão no estádio. Em segundo lugar, eles estão argumentando que ‘não deveriam pagar por isso’. Agora, como eu disse, é de graça (aquele token de presente aos donos de carnês de temporada ou sócios pagos dos clubes). Mas ironicamente, o fato de que eles digam isso mostra que eles na verdade acham que o que fazemos tem valor. Eles querem o que fazemos, mas de graça, o que nós na verdade demos a eles. Mas se for de graça para todos, não funcionará”.
“Há um erro de concepção e é por isso que falo que o importante é educarmos. Há um pouco de má fé das associações de torcedores que não querem tentar entender o que fazemos. Mas tudo bem. No fim do dia, não é para todo mundo e ninguém é forçado a fazer parte disso”, completou.
Segundo a entrevista da Sports Pro Media, a Socios.com alega que os tokens geraram quase US$ 200 milhões apenas em 2021 e metade desse valor ficou com seus parceiros, dependendo de quantos produtos cada um vendeu. São os próprios clubes que decidem quantos tokens são emitidos e podem estabelecer um teto para cada torcedor, para evitar que uma única pessoa possua todo o poder de decisão. Ah, e esses tokens podem ser vendidos e comprados dentro do aplicativo, como um mercado mesmo, e aí chegamos ao segundo problema.
Mercado de tokens
Em março, contamos a história da Football Index, que era uma espécie de mercado de ações do futebol, em que você comprava “papéis” de jogadores e ganhava dinheiro quando eles se valorizavam, de acordo com as atuações durante as rodadas, e recebia dividendos com base em gols, assistências, etc, etc. A empresa entrou em intervenção judicial e foi acusada de ser um esquema de pirâmide. O Socios.com é diferente, porque há realmente algum valor, mesmo que relativo, em portar um token de um clube importante e os próprios times estão envolvidos no processo.
“Nós não apenas não fazemos apostas, mas o mais importante é que você realmente compra algo que tem valor. Quando você tem um token de um time, pode votar, pode ter de cinco a dez porcento de desconto nas lojas dos clubes, tem experiência VIP nos camarotes, ingressos, etc, etc”, explica Dreyfus à Sports Pro Media. “Quando você compra um token de torcedor, o preço pode flutuar, mas o valor do serviço ainda está ali. Então o preço é apenas uma fusão do que os torcedores e usuários acham que ele é. Isso não muda o fato de que há um valor. Há um serviço, um benefício. Então é obviamente diferente. E é feito em parceria com os times. Há um compromisso para fornecer valor, não valor financeiro, mas valor utilitário”.
Partindo do princípio que o produto que a Socios.com está oferecendo é de fato interessante, e como há um número limitado de tokens no mercado, há uma procura pelos tokens dos clubes mais importantes, que flutua de acordo com o noticiário esportivo. Dando um exemplo meramente hipotético, se um clube francês anunciasse um dos maiores jogadores de todos os tempos, a procura pelo seu token cresceria, e o seu preço também, certo?
Bom, isso aconteceu, e a prática não foi exatamente assim porque, ao inserir uma operação de mercado em uma plataforma que busca aproximar torcedores dos seus clubes, a Socio.com mistura torcedores comuns que simplesmente gostam de futebol com investidores experientes e profissionais. O que aconteceu com os tokens do Paris Saint-Germain foi um crescimento de valor antes de Messi ser anunciado e uma queda brusca depois que a contratação foi oficializada.
Isso é chamado de “Comprar o rumor e vender a notícia”, segundo a reportagem da The Athletic, uma prática de mercado financeiro em que os investidores usam informações do que acham que vai acontecer para comprar ativos que serão valorizados caso estejam certos e os vendem assim que o fato é concretizado. Ao fazer isso, há um excesso de oferta, e os preços despencam. Quem simplesmente achou uma boa ideia comprar tokens do PSG porque Messi havia acabado de ser contratado achando que eles se valorizariam acabou perdendo dinheiro. O site identificou o mesmo processo com o título do Atlético de Madrid: os seus tokens chegaram a superar 50 dólares na semana antes da conquista e caíram depois que o troféu foi de fato levantado.
E há um agravante: os tokens não podem ser comprados com qualquer moeda. O próprio site da empresa informa que você até pode usar o seu cartão de crédito, mas para comprar a criptomoeda Chiliz e então usar a Chiliz para comprar tokens. Por quê? Bom… a empresa que emite Chiliz é a mesma empresa que desenvolveu a Socios.com. Na prática, quem compra tokens de torcedores está colocando dinheiro em criptomoedas. Há, portanto, um risco duplo: a flutuação de preços de acordo com o noticiário esportivo e o de um mercado extremamente volátil e ainda pouco regulado como o das criptomoedas.
O que não seria um problema se todo mundo estivesse ciente do que está fazendo, mas, para começar, a Socios.com e suas afiliadas estão registradas em Malta, Suíça e Estônia, embora operem em dezenas de países, e são sujeitas a nenhuma regulação que proteja o consumidor ou que interfira na maneira como ela se anuncia, de acordo com a reportagem da The Athletic. Além disso, a natureza do negócio tende a atrair jovens, crianças ou apenas torcedores que querem brincar de escolher slogans, o que é basicamente jogar um monte de galinhas em uma sala cheia de raposas.
“Estamos preocupados que o produto da Socios.com, e as enquetes de engajamento que estão sendo feitas, sejam atrativas e possam ser acessadas por crianças. O Arsenal nos disse que ele não anunciará ou promoverá os produtos para menores de idade”, afirmou o Supporters Trust do Arsenal. “Criptomoedas são uma atividade de alto risco e desconhecida e há potencial para que essa parceria tenha um efeito adverso à reputação do Arsenal e ao bem-estar financeiro de sua torcida. Aconselhamos qualquer torcedor a não comprar tokens até que ele tenha analisado a fundo este produto”.
Um porta-voz da Socios.com disse a The Athletic que “é importante distinguir que os tokens de torcedores não são uma criptomoeda” e que foram classificados como tokens de utilidade para fins regulatórios no Reino Unido porque eles fornecem um “direito de acesso a uso ou serviços digitais”. Acrescentou que quando um torcedor compra um token pela primeira vez, “eles são lembrados que os tokens devem ser usados para entretenimento ou experiência de torcida, e que tanto o Chiliz quanto os tokens não representam instrumentos financeiros ou qualquer forma de produto de investimento”. “Não promovemos os tokens como uma maneira de fazer dinheiro, mas um instrumento para engajar com uma organização esportiva de maneiras que eram inimagináveis até alguns anos atrás”, disse esse porta-voz.
Os clubes – pelo menos Arsenal, Aston Villa, Corinthians e Atlético Mineiro – de fato não apresentaram os tokens como uma maneira de fazer dinheiro e focaram nas “experiências do torcedor” e na possibilidade de participar de enquetes exclusivas, mas também não alertaram aos riscos do comércio daquele produto. A Juventus chegou a dar um bônus de 770 dos seus tokens quando Cristiano Ronaldo superou a marca de gols oficiais de Pelé em março. Meramente simbólico, porque naquela época dava mais ou menos US$ 11 mil, e foi comemorado pela Socios.com como a primeira vez que “um jogador foi recompensado com itens colecionáveis digitais”.
Em dos slogans em seu site é “influencie, brinque, vença e negocie”. O comércio é também um dos exemplos listados do que pode ser feito com os tokens, junto a “ter uma ação de influência do seu time, influenciar as decisões e ganhar recompensas únicas”.
Messi também recebeu alguns tokens do PSG em seu pacote de “boas-vindas”, segundo a emissora norte-americana NBC, e Dreyfus foi ao Twitter comemorar que US$ 500 milhões foram movimentados em 24 horas no dia anterior ao argentino ser anunciado oficialmente. “Torcedores, usuários, traders e todo mundo interessado em tokens do PSG devido à potencial contratação de Messi. Pessoas compram ingressos, camisas e agora… tokens de torcedores. É uma nova maneira de traduzir o sentimento do torcedor”, escreveu.
Não parece ter nada de muito errado na ideia em si dos tokens de torcedores que são basicamente uma maneira diferente de oferecer benefícios e vantagens que costumam estar disponíveis em programas de sócios-torcedores, que têm um foco maior em prioridade e descontos em vendas de ingresso, o que acaba afastando torcedores de outras cidades ou países, e servem de instrumento de engajamento dentro do mundo digital no qual, querendo ou não, passamos a maior parte do nosso tempo, ainda mais na pandemia.
Por outro lado, ele cria um sistema paralelo de influência meramente cosmética que não pode influenciar ou prejudicar a discussão importante sobre a necessidade de mais participação de torcedores nas decisões que realmente fazem diferença que emanou da destruição da Superliga Europeia. Em outras palavras, não pode haver uma “mesa dos adultos” que decide de qual competição o clube participará e uma “mesa das crianças” que decide qual o slogan do ônibus.
A parte da criptomoeda e do comércio de tokens parece apenas perigosa mesmo e é melhor ficar longe dela, a menos que você saiba o que está fazendo.