Inglaterra

Creditados pelo fim da Superliga, torcedores ingleses estão tentando descobrir o que mais podem fazer

Com o poder que lhes foi atribuído após o fiasco da Superliga, torcedores tentam manter a onda em busca de mudanças concretas

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É difícil ter certeza dos motivos que realmente levaram alguns dos donos dos clubes da Superliga a recuarem. Pode ter sido por pressão de políticos ou medo de represálias de entidades, como Fifa, Uefa e federações. A rejeição entre jogadores e técnicos foi quase unânime. Da imprensa também, embora bilionários costumem ser menos sensíveis à opinião de jornalistas. Também ficou claro quantos buracos havia no empreendimento assim que ele se tornou concreto. Analisando a conjuntura, e com informações de bastidores, temos algumas pistas. Há também as declarações públicas, os comunicados oficiais, os envergonhados vídeos pedindo desculpas. E neles, houve uma constante: a maioria disse que ouviu a voz da torcida. E agora, parte dessa torcida está tentando descobrir se eles estavam falando sério. Os ingleses, especialmente, estão testando até onde vai esse novo poder que sempre sentiram que deviam ter e que de repente lhes foi atribuído pelo fiasco da Superliga.

Não é tão difícil assim, por outro lado, entender por que os dirigentes decidiram, pelo menos no discurso, empoderar seus torcedores. É mais bonitinho parecer um déspota esclarecido que ouviu a voz do povo do que um empresário teoricamente competente admitir que embarcou em um projeto mambembe sem considerar todos os ângulos. E o risco é bem calculado. Os torcedores são a essência do futebol e o seu elo mais ignorado pelo mesmo motivo: não importa o que aconteça, poucos abandonam o seu clube. Apoiá-lo nos momentos mais difíceis é uma questão de orgulho e de caráter. A paixão pelo futebol está enraizada na identidade e ninguém troca de identidade como troca marca de sabão. É a base de clientes que todo empresário quer ter porque ela permanecerá fiel mesmo se for traída, mesmo se o produto não for bom.

E também é possível combater o concreto com o abstrato, por mais contraditório que isso soe em um primeiro momento. Por exemplo, alguns milhares de torcedores protestaram pela saída dos Kroenkes do Arsenal. Temos a sensação de que é um sentimento bem disseminado entre Gooners, mas, de concreto, temos milhares de pessoas nas ruas e nas redes sociais. De abstrato, o entendimento de que a torcida do Arsenal tem que ser contada em milhões. Logo, se Stan Kroenke disser que apenas uma minoria está insatisfeita, como dizer que é mentira com 100% de certeza sem fazer uma ampla pesquisa de opinião? A matemática acaba dando o benefício da dúvida aos dirigentes que também sabem que, assim que o clima se acalmar, podem voltar a ignorar os torcedores, como sempre fizeram.

O estádio é uma exceção. As arquibancadas tornaram-se uma entidade em si, fortalecidas pela continuidade histórica, com poder para influenciar os rumos de um clube. Abrigam um extrato mais ou menos constante, apesar das mudanças de perfil sócio-econômico de seus frequentadores ao longo dos tempos, de torcedores considerados os mais apaixonados pelos sacrifícios materiais e físicos de acompanhar o time in loco todas as semanas. Esse conceito fica difuso à medida em que o jogo se transforma cada vez mais em um produto caro de televisão, mas o estádio ainda é respeitado como um termômetro fiel da temperatura da torcida. Acontece que faz mais de um ano que esse estádio não existe.

É incerto o quanto os donos realmente ouviram os torcedores. Mais incerto ainda é o quanto o farão daqui para a frente, mas, enquanto essas respostas não chegam, eles estão se sentindo poderosos. Os primeiros a fazerem barulho na Inglaterra foram os do Leeds antes do confronto contra o Liverpool na segunda-feira. No dia seguinte, as ruas nos arredores de Stamford Bridge ficaram bloqueadas por uma multidão vestida de azul e, poucas horas depois, saíram as primeiras notícias de que o Chelsea estava se retirando da Superliga – a primeira ação do efeito dominó que, por enquanto, a enterrou. “Fizemos a diferença, 100%”, afirmou Alex Burke, 25, torcedor do Chelsea que ajuda a tocar a fanzine “We Are The Shed”, um dos grupos que convocou o público a protestar antes daquele jogo contra o Brighton, ao Washington Post. “Torcedores do Chelsea podem ter a fama de serem de plástico ou modinha, mas os protestos mostraram que temos um apoio forte em linha com nossas raízes”.

Em menor ou maior medida, torcedores de todos os clubes ingleses envolvidos com a Superliga protestaram. Pediram demissões de diretores ou que os donos vendessem suas ações. Nada, porém, como o último domingo em Old Trafford. Alguns torcedores do Manchester United, empolgados por este novo poder adquirido, simplesmente tentaram descobrir se podiam fazer com que o maior clássico da Inglaterra não acontecesse – e, de quebra, dar mais algumas cutucadas na família Glazer, com quem nunca se entenderam. E não é que conseguiram?

Seis policiais foram feridos, dois com seriedade, segundo a polícia da Grande Manchester, o que obviamente não deveria acontecer. Houve exageros. Quem os cometeu tem que ser identificado e punido. Em um texto para o Guardian, Jamie, torcedor da fanzine United We Stand e um dos invasores do gramado de Old Trafford no último domingo, contou que tudo foi relativamente pacífico mesmo dentro do estádio, onde um fogo de artifício foi atirado em direção à cabine da Sky Sports, mas não a alcançou.

As coisas ficaram “um pouco mais quentes” quando a polícia tentou liberar a entrada do estádio. “Do que eu consegui ver, houve problemas nos dois lados: garrafas atiradas contra a polícia, cassetetes empunhados por eles, e foi isso. Eu vi fotos de um policial com um corte na cabeça. Ninguém aprova isso. Mas dado que havia quase 10.000 pessoas lá, você com certeza terá alguns idiotas”, escreveu. A polícia da Grande Manchester afirmou que seus agentes estavam tentando “facilitar um protesto pacífico”, mas alguns manifestantes tornaram-se “agressivos e hostis”, forçaram a entrada ao estádio, e os policiais julgaram necessário agir para “manter a segurança”.

Além das duas versões do evento, a questão mais importante é se alguns exageros anulam a ação coletiva como um protesto válido – o que é diferente de concordar ou não com seu objetivo ou método. Se a resposta for sim, será difícil reconhecer qualquer tipo de grande manifestação como legítima porque é cientificamente comprovado que quanto mais pessoas se reúnem maior é a probabilidade de, entre elas, haver idiotas, cujas ações individuais muitas vezes são gatilhos para distúrbios mais amplos. O comportamento de multidões é imprevisível e, portanto, perigoso.

De qualquer maneira, este texto não se propõe a julgar o protesto do ponto de vista moral ou legal, mas a refletir sobre o que ele significa e o que pode representar para o futuro do futebol inglês e europeu.

Jamie disse duas coisas muito importantes em seu texto. A primeira é que o plano realmente sempre foi “adiar ou cancelar” o jogo. “Certamente foi a intenção de muitos de nós”, afirmou. A outra é tudo aquilo que você leu aqui até agora. “Não nos importamos se perdemos pontos: esta é nossa oportunidade porque o governo supostamente está nos ouvindo. Mas como eu acho que isso não continuará no longo prazo, temos que aproveitar o momento e avançar. A indignação generalizada contra a Superliga colocou o momento a nosso favor: é agora ou nunca”, explicou.

O primeiro-ministro Boris Johnson tem surfado tanto a onda de defensor das torcidas de futebol que até evitou se colocar completamente ao lado da lei e da ordem nesse caso. “Eu não acho que é uma boa ideia ter um comportamento disruptivo, manifestações desse tipo, mas, por outro lado, eu entendo a força dos sentimentos das pessoas”, disse o político do Partido Conservador. Entre os chefes de Estado que se posicionaram contra a Superliga, Johnson foi um dos mais enfáticos. Mesmo antes de todo o fuzuê causado por Florentino Pérez e companhia, ele havia prometido que a pandemia levaria a uma revisão do sistema do futebol inglês que teria “os torcedores no centro”.

Como pontuou o torcedor do Manchester United, e como todo mundo com um pouco de noção da vida também deveria saber, os torcedores não podem confiar que terão o apoio incondicional do Governo para sempre e precisam manter a onda para transformá-lo em mudanças concretas e que durarão muito mais do que o encorajamento provavelmente momentâneo e oportunista de Boris Johnson e outros políticos. No caso do futebol inglês, isso tomaria a forma de mais regulamentação econômica, mais mecanismos para combater a desigualdade e, principalmente, mais participação dos torcedores nos processos de tomadas de decisão. O modelo 50+1 da Alemanha, que pode vir em um modelo diferente, mas que buscaria evitar que bilionários assumissem controle majoritário dos clubes.

A Manchester United Supporter's Trust escreveu uma carta aberta à família Glazer dizendo que não quer que as cenas em Old Trafford se tornem “recorrentes”, mas cobrou que haja uma resposta pública dos donos até sexta-feira a um plano de quatro pontos que foi apresentado: apoiar a análise que o Governo britânico fará com o objetivo de dar mais poder aos torcedores; nomear diretores independentes com a missão de proteger o clube mais do que os acionistas; disponibilizar ações a preços razoáveis para os torcedores e, se for caso, não se opor que a família Glazer se torne minoritária ou até venda todos os seus papéis; e se comprometer a uma consulta completa com donos de carnês de temporada sobre qualquer mudança sobre o futuro do clube, “como as competições que disputamos”.

“Alguns dias de pura raiva mataram esta versão da Superliga, mas não vamos tirar o pé do acelerador. O retorno ao status quo não é aceitável”, afirmou o executivo-chefe da Asssociação dos Torcedores de Futebol, Kevin Miles, ao Guardian. ”Se isso for permitido, donos sem escrúpulos recuperarão a confiança, se reagruparão e ressurgirão com outros planos medonhos. A Superliga pode estar morta no momento, mas o monstro pode voltar. Vamos continuar bravos e conseguir essas mudanças. Esta pode ser uma oportunidade única de consertar o futebol”.

Genuína ou não, a mensagem que os donos e os políticos jogaram ao público é que os torcedores influenciam sim as suas decisões e, se em 48 horas eles conseguiram cancelar o plano que salvaria o futebol da falência, eles agora querem saber o que mais podem conseguir.

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Foto de Bruno Bonsanti

Bruno Bonsanti

Como todo aluno da Cásper Líbero que se preze, passou por Rádio Gazeta, Gazeta Esportiva e Portal Terra antes de aterrissar no site que sempre gostou de ler (acredite, ele está falando da Trivela). Acredita que o futebol tem uma capacidade única de causar alegria e tristeza nas mesmas proporções, o que sempre sentiu na pele com os times para os quais torce.
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