2024: o ano em que o futebol sentiu de vez as mudanças climáticas
Enchentes que destruíram estádios e cidades inteiras. Termômetros marcando mais de 30ºC em jogos à noite. Partidas paralisadas e suspensas por causa de ondas de calor e fumaça de queimadas. Tudo isso foi vivido em intensidade pelo futebol brasileiro em 2024.
Não é de hoje que o esporte sente os efeitos das mudanças climáticas — e isso não se restringe ao futebol.
▶ Em 2019, a Copa do Mundo de Rugby, em Tóquio, foi interrompida por ciclones tropicais avassaladores no Oceano Pacífico;
▶ No ano seguinte, o torneio de tênis Australia Open foi interrompido pela fumaça provocada pelos incêndios florestais do país;
▶ Nos penúltimos Jogos Olímpicos, em 2021, as modalidades que envolviam corridas de longa distância, como a maratona, precisaram ser transferidas para o norte do Japão, em vez de serem realizadas em Tóquio, por causa do calor extremo.
Mas, em 2024, os efeitos do aquecimento global e a emissão excessiva de carbono ficaram mais evidentes na estrutura do futebol brasileiro e no próprio desempenho dos atletas.
Como as mudanças climáticas afetam o futebol na prática
Uma matéria do jornal “Valor Econômico” aponta que o Internacional contabilizou quase R$ 90 milhões em perdas de patrimônio, redução do número de sócios, diminuição do desempenho esportivo em competições e aumento dos gastos com logísticas por causa das enchentes ocorridas entre abril e maio de 2024.
O rival Grêmio, por sua vez, registrou um prejuízo de R$ 12 milhões, enquanto o do Juventude chegou na casa de R$ 1 milhão, além de R$ 5 milhões a mais em custos de logística para seguir com o campeonato. Sem falar nos clubes das divisões menores, que tiveram prejuízos ainda maiores, conforme este especial da Trivela publicado em junho:
O calor e o tempo seco também deixam suas marcas no esporte. Além de paradas técnicas para hidratação se tornarem cada vez mais recorrentes e o desempenho de jogadores ser colocado em risco (falaremos mais sobre isso adiante), os gramados dos estádios são afetados.
▶ Problemas com gramados
No caso dos gramados naturais, ainda que alguns tipos utilizados no Brasil sejam mais resistentes às altas temperaturas, com o aquecimento global, eles precisam de mais irrigação. O resultado é o aumento tanto dos custos de manutenção como do consumo de água. Isso, por sua vez, contribui para escassez hídrica, problema crescente no Brasil.
O estudo “Impacto da Mudança Climática nos Recursos Hídricos do Brasil”, publicado pela Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA) em agosto deste ano, indica que as reservas de água no Brasil podem cair em mais de 40% até 2040.
A grama sintética, por outro lado, pode acabar causando queimaduras nos atletas quando exposta a temperaturas altas. Em relação às chuvas, ela geralmente tem menor permeabilidade, o que pode contribuir para alagamento do campo em caso de temporais extremos, como mostra a reportagem da Trivela abaixo.
Quem alerta para o aumento de ocorrência de chuvas extremas é Lincoln Alves, um dos dois brasileiros participantes do “World Weather Attribution (WWA)“, uma análise sobre a ocorrência de tempestades deste tipo, elaborada por 13 cientistas de diferentes nacionalidades.
— A probabilidade desses eventos aumentou em um fator de 2 (dobrou), com um aumento de intensidade de 6% a 9% — relatou o pesquisador que faz parte do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).
▶ Mais gastos, menos arrecadação
Junto a esses exemplos de impactos mais diretos, há as suas repercussões indiretas. Eventos climáticos extremos geram prejuízos à infraestrutura dos clubes, gastos para ajustes logísticos e perda de receita relacionada ao menor comparecimento de torcedores aos estádios e redução de aderência de sócios-torcedores.
Por que o aquecimento global leva a tempestades e chuvas extremas?
Esta é uma dúvida comum, uma vez que muitos relacionam o aumento da temperatura média do planeta somente ao calor e às secas e utilizam das chuvas, inclusive, para negar as mudanças climáticas.
Diversas pesquisas, como a da Universidade de Toronto, no Canadá, apontam quanto maior a temperatura, mais extremos os eventos. Ou seja, as tempestades ficam ainda mais fortes e as chuvas menores, ainda mais fracas. Isso porque, com o aquecimento global, há mais evaporação da água e o ciclo hidrológico se intensifica.
- Mais evaporação: Regiões já secas ficam ainda mais suscetíveis à perda de umidade do solo e da vegetação, agravando a seca.
- Mais precipitação: Em regiões onde o vapor de água condensa, a chuva ocorre de forma mais intensa, resultando em eventos extremos como tempestades e inundações.
Mudanças no clima global também afetam os padrões de circulação atmosférica, como os ventos, correntes de ar e sistemas climáticos que transportam umidade. Isso pode resultar em:
- Bloqueios atmosféricos: Algumas regiões ficam sob sistemas de alta pressão por longos períodos, impedindo a chegada de chuvas e causando secas prolongadas.
- Tempestades mais intensas: Outras áreas podem receber mais umidade transportada por correntes atmosféricas, aumentando a probabilidade de chuvas torrenciais.
É possível contabilizar o quão arriscada é a situação para o esporte?
Foi o que fez o movimento Terra FC, lançado durante a 19ª Cúpula do G20, realizada em novembro no Rio de Janeiro. Inspirado no movimento inglês “Green Football Weekend”, o grupo brasileiro busca trazer a pauta da sustentabilidade para o universo do futebol, realizando diferentes ações com entidades governamentais, clubes de futebol, ONGs, escolas e redes sociais.
— O que a gente está falando é, na verdade, sobre proteger o que a gente ama, né? Proteger, inclusive, o futebol, a experiência futebolística, de existir. O futebol tem que ter também as condições necessárias para existir em termos de sustentabilidade — relata Marcos Botelho, co-diretor do Terra FC, em entrevista à Trivela.
Em parceria com a ERM, a maior empresa de consultoria do mundo com foco exclusivo em sustentabilidade, o Terra FC produziu um estudo inédito que indica qual é o nível de risco que os 20 clubes da Série A correm em relação a inundações, queimadas, ondas de calor e seca.
Os principais achados do estudo são, no mínimo, alarmantes:
- 85% dos clubes possuem um alto risco de enfrentar impactos climáticos severos;
- 45% dos clubes possuem um alto risco de enfrentar impactos severos de inundações;
- 55% dos clubes possuem um alto risco de enfrentar impactos severos de queimadas;
- Todos os 20 clubes sediam suas partidas como mandante em cidades com ao menos um tipo de risco em nível médio, especialmente inundações e queimadas.
Risco aos atletas
O relatório mais recente do Copernicus, o Observatório Europeu do Clima, aponta que 2024 terá sido o ano mais quente da história.
O boletim divulgado no início de dezembro indica que, entre janeiro e novembro de 2024, a temperatura média global ficou em 0,72°C acima da média registrada entre 1991 e 2020. Esse número representa a maior marca já registrada para este período, além de ter sido 0,14°C mais quente que o mesmo período em 2023.
Segundo a entidade, é seguro afirmar, mesmo antes do fim de 2024, que a temperatura global excederá 1,5°C em relação a registrada no período pré-industrial pela primeira vez na história.
▶ Mais calor, mais desidratação, mais lesões
O calor excessivo é justamente o principal impacto no dia a dia dos jogadores. A desidratação, além de provocar os mesmos efeitos comuns da população geral — insuficiência renal, vômito, tontura, entre outros — aumenta o risco de lesões.
— Isso está relacionado com queda de desempenho. Se o atleta está treinando ou mesmo jogando sem estar com a hidratação correta, sem ter feito a reposição dos líquidos que ele está perdendo, todo o funcionamento do corpo dele começa a reagir de forma negativa. Você perde potência muscular, coordenação motora, uma série de capacidades físicas. Além do rendimento mais baixo, você fica mais suscetível à lesão. Isso é comprovado há muitos anos — explica o fisiologista Diego Leite de Barros, diretor da DLB Assessoria Esportiva, em São Paulo.
▶ Impacto nos treinos
Outro grande problema das mudanças climáticas no futebol de alto rendimento é a imprevisibilidade, alerta Diego. Isso porque, quando os treinos são preparados, há uma expectativa de condição climática para cada época do ano.
— Mas, quando você tem situações adversas, que não são planejadas, isso interfere bastante. Então, se você tem uma época do ano em que a temperatura é a mesma, você não tem picos de calor e se prepara para isso, com uma carga de treinos específica, atrapalha muito quando você encontra uma realidade oposta — afirma o especialista.
Diante dessa realidade, já estão sendo feitos ajustes nas sessões de treinamento dos clubes para que o impacto seja o menor possível para os atletas. É o que explica Fábio Mahseredjian, ex-preparador físico de Flamengo, Corinthians e seleção brasileira.
— A primeira coisa é a mudança de horário, né? Quando o treino é pela manhã, o mais cedo possível, 8h30, por exemplo, até 8 horas da manhã por vezes. O Rio de Janeiro é uma cidade muito quente e nós tivemos que lançar essa mudança de horário radical. Quando for pela tarde, por volta das 5, 6 horas também — conta Mahseredjian.
— Agora, São Paulo é uma cidade que tem pancadas de chuva no final da tarde. Então, normalmente os treinos são pela manhã e o mais cedo possível. Isso é fundamental para preservar a saúde dos jogadores — completa o profissional.
Barros acrescenta que há muita atenção nos clubes em relação ao protocolo de hidratação, algo que é feito de forma individual para suprir as necessidades de cada atleta, além de cargas de treino ajustadas para as condições climáticas do dia e alimentação adequada.
▶ O clima demite treinador?
Outro exemplo de como o clima extremo influencia o futebol em diversos aspectos é o caso de Fernando Seabra na última edição do Brasileirão. O treinador ainda estava à frente do Cruzeiro quando o time mineiro enfrentou o Cuiabá fora de casa, na Arena Pantanal.
A partida começou às 18h30 mas, mesmo à noite, foi disputada sob calor acima dos 35º C e umidade em torno dos 20% na maior parte do tempo. A região da capital mato-grossense, à época, sofria com seca e queimadas.
O desempenho das equipes, é claro, deixou a desejar. Cruzeiro e Cuiabá ficaram em um esquecível 0 a 0.
Fernando Seabra escalou o time da Raposa com alguns reservas e utilizou duas justificativas principais. Primeiro, o calendário: o Cruzeiro havia jogado pela Sul-Americana, em Assunção, no Paraguai, três dias antes. Depois, o clima que enfrentaria em Cuiabá.
— Você enfrentar um calor de 39 graus, extremamente seco, 18% de umidade, você vê que a tomada de decisão em alguns momentos fica prejudicada, porque o jogador está se sentindo mal. Com um calor dessa magnitude, a pressão cai um pouco também. São vários aspectos que para quem não está aclimatado. Jogar nesse cenário é muito difícil.
Após o empate, Seabra acabou demitido do Cruzeiro. Especulava-se que Alexandre Mattos, mandatário do clube, já planejava ter Fernando Diniz à frente da Raposa. Fato é que o resultado diante do calor escaldante acelerou a demissão do treinador, que depois assumiria e livraria o Red Bull Bragantino do rebaixamento.
Mais um episódio em que os fatores climáticos influenciaram diretamente nos resultados dentro de campo e nos destinos de um campeonato.
“A urgência das mudanças climáticas é um tema para ontem”
Em 2015, representantes de 196 países — incluindo o Brasil — assinaram o Acordo de Paris se comprometendo a manter o aumento médio das temperaturas globais abaixo de 2°C acima dos níveis pré-industriais, além de buscar limitar qualquer aumento a 1,5° C. Isso pode parecer pouco pensando no nosso dia a dia, mas está longe de ser.
Para entender a importância de cumprir essas metas, o relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas, o IPCC, de 2021 aponta que um aumento de 2°C na temperatura global fará com que as chuvas intensas como as que vimos esse ano na região Sul do Brasil se tornem 1,7 vezes mais frequentes, por exemplo.
Nesse cenário, essas tempestades podem ser até 14% mais intensas. Esses são apenas alguns dados que mostram a urgência com a qual o tema das mudanças climáticas merece ser tratado no meio do futebol.
— Creio que é uma temática para ontem, né? Não só do futebol, mas da sociedade como um todo. A gente tem que parar, refletir e ver como que a gente pode estar trabalhando em prol dessa causa que envolve a todos nós, né? A gente pode tocar isso muito bem, não só para o futebol, o esporte, mas para toda a sociedade. Eu acho que 2025 nem é o ano em si (que deve-se tratar as mudanças climáticas com urgência), mas já deveríamos ter começado um pouco atrás — comenta Ricardo Calçado, co-diretor do Terra FC.
Ainda assim, são necessárias mais pesquisas antes de implementar mudanças nas estruturas dos campeonatos, por exemplo. Os representantes do Terra FC frisam que os dados ainda são escassos.
Para fins de comparação, durante a produção do relatório, a ERM encontrou 57 estudos e/ou publicações divulgadas anteriormente que avaliavam os riscos climáticos nos esportes. Dentre eles, apenas três eram sul-americanos — todos brasileiros –, mas nenhum deles avaliou efetivamente os efeitos no futebol nacional.
— Esse foi um dos pontos alarmantes que encontramos. Existe muita pouca pesquisa sobre o tema. Então é importante disseminarmos mais nesse conhecimento e fazermos mais estudos sempre com base na ciência para ver os impactos das mudanças do clima no futebol — analisa Frederico Seifert, sócio da ERM.
O Terra FC está trabalhando para mudar esse cenário. O projeto já está preparando uma nova pesquisa, que abrange clubes de mais divisões no Brasil e avalia o impacto financeiro dessas mudanças nos clubes com o objetivo de mostrar que os benefícios de se engajar na luta pelo meio ambiente também são econômicos. O novo estudo está previsto para ser finalizado em abril de 2025.
Mas, na visão do diretor da DLB, há algo que já pode ser colocado em prática: o fim dos jogos às 11 horas da manhã. Barros entende que dificilmente o calendário brasileiro absorveria a mudança nos jogos das 16 horas, mas os que são marcados em horários próximos às 12 horas precisam ser repensados.
— Os jogos às 11 horas da manhã, jogos que estão próximos ali do meio-dia, eu acho que, sim, em determinadas regiões, não deveria acontecer. Deveria se estabelecer um critério em relação à localização e temperatura onde a partida vai acontecer. O que deveria determinar o horário do jogo deveria ser a condição climática da região onde a partida vai acontecer, e não uma necessidade de calendário em função de outras coisas. Acho que o ponto de partida deveria ser esse.
Falta posicionamento dos jogadores?
O fisiologista também enxerga a urgência do tema e acredita que o posicionamento dos atletas é fundamental para que as mudanças na estrutura dos campeonatos comecem a acontecer.
— Esse é um problema global, não é uma questão regional ou do futebol. Eu tenho certeza que o momento é, sim, de se discutir isso, criar estratégias. Agora, o grande problema é a barreira que a gente encontra em relação aos interesses. É o que a gente encontra de dificuldade, geralmente, são interesses que são mais fortes do que a orientação científica. E quem paga isso é a saúde do atleta.