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A antologia de um esquadrão: O Milan que venceu a Champions 1988/89 e transformou o futebol

A conquista da Serie A em 1987/88 representa um marco na história do Milan. Foi o momento em que o clube teve a certeza que trilhava o sucesso. Os rossoneri investiram alto em contratações, trouxeram craques em ascensão, apostaram em um técnico ousado. E, por fim, faturaram o Scudetto, após uma corrida alucinante contra o esquadrão do Napoli. Porém, os milanistas queriam mais. Os milanistas tinham a certeza de que podiam muito mais. Se o título nacional satisfazia a torcida, a revolução promovida por Arrigo Sacchi necessitava de mais para se sacramentar na história. Pois esse mais foi alcançado há 30 anos, em 24 de maio de 1989. A irrepreensível goleada sobre o Steaua Bucareste garantiu o título na Champions. Era a prova cabal da imortalidade daquele Milan, confirmada com o bicampeonato continental em 1990.

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Conquistar a Serie A naqueles tempos já tinha um significado imenso. Era a liga nacional mais forte do mundo, que reunia um punhado de timaços e boa parte dos melhores jogadores do mundo. O Scudetto de 1987/88 coroa a formação de um grande Milan, que mesclava várias virtudes. Primeiro, na confiança dada a Arrigo Sacchi, um treinador de trabalhos menores, mas ideias completamente modernas e que não teve receio ao aplicá-las em Milanello. Depois, pelo bom trabalho de formação que os rossoneri faziam, permitindo o surgimento de craques do calibre de Franco Baresi, Paolo Maldini e Alessandro Costacurta. E também pela capacidade do clube no mercado, em especial após a chegada de Silvio Berlusconi. Apostar em Ruud Gullit e Marco van Basten foi uma tacada de mestre, por todo o potencial dos holandeses, bem como pela maneira como se complementavam. O empresário do entretenimento tinha o seu espetáculo boleiro para comercializar.

Aquele Milan, ainda assim, poderia ficar mais forte. E ficou a partir da temporada 1988/89, quando a federação italiana permitiu a contratação de um terceiro jogador estrangeiro a cada agremiação da primeira divisão. Os rossoneri um dia agradeceram muito ao futebol sueco, por oferecer o trio Gre-No-Li à potência dos anos 1950. Quase quatro décadas depois, seria a vez de confiar ainda mais no Futebol Total da Holanda. O terceiro elemento laranja atuaria atrás, mas com o mesmo dinamismo de Gullit e Van Basten. Franklin Edmundo Rijkaard era seu nome.

Rijkaard surgiu como um talento no Ajax, ajudando o clube a recobrar sua grandeza continental com a conquista da Recopa Europeia. Todavia, o defensor entrou em conflito com Johan Cruyff, então treinador dos Godenzonen, e viveria uma tumultuada temporada em 1987/88, longe de Amsterdã. Assinou com o Sporting, mas ficou parado por um imbróglio no pagamento da transação e não pôde ser inscrito nas competições portuguesas. Para recuperar a forma, teria uma breve passagem emprestado ao Zaragoza.

Por sorte, os problemas não custaram seu prestígio com Rinus Michels e Rijkaard se tornou instrumental na conquista da Euro 1988, pela seleção holandesa. Foi a amostra que o Milan precisava, já acertado com o holandês desde antes do torneio continental. Adaptação em Milão não foi um problema, com Gullit e Van Basten por perto, ambos em alta após as façanhas nos meses anteriores. Da mesma maneira, a qualidade do defensor falou mais alto em campo. Não demorou para que ele se encaixasse entre os titulares, atuando como um volante, mas pronto para impulsionar o time com seus avanços e seus passes.

Rijkaard foi a única adição ao time que o torcedor do Milan sabia declamar de cor. Giovanni Galli protegia o gol. Tassotti, Costacurta, Baresi e Maldini formavam a mítica linha defensiva. Rijkaard era o novo cabeça de área, complementando Colombo e Ancelotti. Mais à frente, Donadoni contribuía na ligação, embora a dupla de ases fosse mesmo composta por Gullit e Van Basten. E, no banco, havia opções como Virdis, Evani e Filippo Galli. Uma equipe magnífica de ponta a ponta, que ainda era orquestrada pelas ideias de Arrigo Sacchi. O treinador revolucionário organizou um time extremamente compacto, que se defendia e atacava em blocos sólidos. Adorava deixar os adversários em posição de impedimento, enquanto jogava por música encadeando passes em progressão e fulminava em seus ataques, criando muitas ocasiões de gol. Era como se o esquadrão tivesse vindo do futuro e os adversários não estivessem prontos a encará-lo.

Não havia dúvidas de que o Milan seria candidato a todas as taças que disputasse em 1988/89. Mas até mesmo os grandes times vivem os seus períodos de provação. Em uma temporada na qual a Serie A começou só em outubro, por causa dos Jogos Olímpicos de Seul, os rossoneri caíram na Copa da Itália logo em setembro. Passaram pela primeira fase de grupos, mas sucumbiram no quadrangular seguinte. Em uma chave na qual apenas o líder sobrevivia, o Verona se deu melhor.

E as coisas não iam tão bem quanto o esperado na Serie A. Os tropeços foram um tanto quanto frequentes nas primeiras rodadas. Em seu sexto compromisso, o time perdeu em casa para a Atalanta. O pior viria na semana seguinte, na visita ao San Paolo, contra um Napoli ansioso pela revanche da temporada anterior. Os celestes golearam por 4 a 1, em show de Maradona e Careca. Já na nona rodada, os torcedores sabiam que uma reviravolta pelo bicampeonato seria muito difícil. No clássico contra a Internazionale, Walter Zenga fechou o gol e Aldo Serena garantiu a vitória nerazzurra por 1 a 0. Treinados por Giovanni Trapattoni, os rivais viviam um início de campanha irrepreensível. Tanto é que, naquele momento, os interistas já abriram sete pontos de vantagem sobre os milanistas – em tempos nos quais o triunfo valia dois tentos. Vagando no meio da tabela, o esquadrão precisava olhar para outra direção.

A questão não era somente um mau momento ao Milan. Eram os problemas que atravancavam o desempenho. Melhor do time no Scudetto de 1987/88, Gullit lesionou o joelho e mal entrou em campo durante o começo da nova campanha. Donadoni foi outro a se machucar e a representar um importante desfalque. Van Basten atravessava uma seca de gols que não era o seu costume. E mesmo o sistema defensivo não apresentava a segurança de sempre. De qualquer forma, era preciso seguir em frente. Logo os rossoneri passaram a concentrar suas forças na Champions.

O Milan iniciou sua caminhada continental ainda em setembro. E não teve problemas para eliminar o Vitosha Sofia (atual Levski) com duas vitórias. Os búlgaros tinham alguns nomes que brilharam na seleção nacional, como Borislav Mihaylov, Georgi Yordanov, Bozhidar Iskrenov, Petar Petrov e Nikolay Iliev. Nada que tenha atrapalhado o time de Arrigo Sacchi, mesmo sem contar com Ancelotti e Baresi para a estreia na competição.

Em Sofia, a vitória por 2 a 0 foi pouco ao Milan. Os rossoneri dominaram o Vitosha e criaram uma porção de oportunidades. Converteram com o talismã Pietro Paolo Virdis, herói no Scudetto de 1987/88, e também com Gullit, que saíra do banco. Já no San Siro, a torcida pôde se encantar ainda mais. Os milanistas ratificaram seu favoritismo com a imponente goleada por 5 a 2. Seria uma noite de Van Basten. Durante o primeiro tempo, o artilheiro balançou as redes três vezes, combinando oportunismo e uma qualidade excepcional nas finalizações. Virdis guardou o quarto, antes que o holandês fechasse a contagem, de peixinho, na etapa complementar. Por mais que os búlgaros tenham descontado duas vezes, passaram longe de incomodar.

O desafio do Milan aumentou substancialmente na fase seguinte, as oitavas de final. Os rossoneri encarariam o Estrela Vermelha. Os alvirrubros contavam com uma equipe repleta de jovens talentos e que, na edição anterior da Champions, já tinha dado um trabalho imenso ao poderoso Real Madrid nas quartas de final, sucumbindo apenas pelos gols fora de casa. Enquanto Dejan Savicevic se postulava como uma das maiores promessas do futebol europeu, os receios se concentravam sobre Dragan Stojkovic, tido por muitos como um dos mais habilidosos jogadores do período.

O primeiro jogo aconteceu no San Siro, no final de outubro, quando Gullit estava lesionado. Ficou apenas no banco, reserva de Virdis. Apesar da pressão durante o primeiro tempo, o Milan não conseguiu abriu o placar. Desperdiçou um caminhão de chances e lamentaria bastante na volta do intervalo. Logo aos dois minutos, Stojkovic pegou a bola na direita e entortou Baresi, antes de vencer Galli. O bom aos milanistas é que a reação seria imediata, um minuto depois. Van Basten deu um belíssimo passe por entre os zagueiros e Virdis definiu. O empate por 1 a 1 prevaleceu até o final e deixava os italianos em maus lençóis para a visita ao Marakana. O Estrela Vermelha demonstrou força para encará-los, especialmente pela maneira como o toque de bola refinado evitava a marcação intensa.

A visita a Belgrado poderia ter encerrado a história daquele Milan. O jogo acontecia sob uma densa neblina. E o Estrela Vermelha, empurrado por uma inflamada torcida, fez valer o seu mando. Aos cinco minutos do segundo tempo, Savicevic acertou um chute no alto e venceu o goleiro Giovanni Galli. Naquele momento, os visitantes jogavam com um a menos, após a expulsão de Virdis – considerada absurda pelo atacante, mas que quase ninguém de fato viu. A neblina, afinal, tinha se intensificado muitíssimo e dificultava demais as condições do encontro. Não era possível ver absolutamente nada na transmissão da TV e a visão no campo era limitadíssima. Assim, com a situação piorando gradativamente, a 30 minutos do fim a arbitragem optou por suspender o encontro. A névoa tornou o jogo impraticável. Os dois times voltariam a se encontrar no dia seguinte.

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O ponto é que, segundo a regulamentação da Uefa, a partida teria que recomeçar do zero. E o Milan tiraria proveito da situação, com um preparo físico superior para aguentar a jornada extenuante. Por conta da expulsão, Virdis não pôde entrar em campo, assim como Ancelotti, pelo acúmulo de amarelos, e Sacchi escolheu novos titulares ao seu 11 inicial. De energias renovadas, os visitantes partiram para cima. Van Basten fez jus ao melhor começo do Milan e abriu a contagem de cabeça, aos 34 minutos. O Estrela Vermelha empatou quatro minutos depois, em lançamento de Savicevic para Stojkovic fuzilar. Já no segundo tempo, a entrada de Gullit deu novo vigor ofensivo aos italianos, mas o goleiro Stevan Stojanovic segurou o bombardeio. Além do mais, ficaria o susto quanto a Donadoni, que sofreu uma convulsão após um choque de cabeça e precisou ser levado diretamente ao hospital.

Com o novo empate por 1 a 1 se mantendo ao fim do tempo regulamentar e também da prorrogação, a definição terminou nos pênaltis. Galli virou o herói. Todos os milanistas converteram suas cobranças, enquanto o arqueiro pegou os chutes de Savicevic e Mitar Mrkela. A vitória por 5 a 3 valeu uma suadíssima passagem às quartas de final. A neblina de Belgrado, de certa maneira, mudou a história das competições europeias.

“Quase foi o fim do sonho para o Milan. Depois do jogo, eles reconheceram que deram muita, muita sorte. O Milan estava de joelhos naquela segunda partida, mas tudo aconteceu rapidamente. De uma hora para outra, tudo ficou invisível. O árbitro queria nos deixar jogar, mas não tínhamos escolha, ficou impossível. Não dava para ver a bola!”, relembrou Stojkovic, em entrevista à BBC em 2013. “Quando perdemos nos pênaltis, como capitão, disse para meus companheiros se sentirem orgulhosos. Rijkaard veio até a mim e disse que eu era um grande jogador. Falou que o Milan teve muita sorte. Estávamos jogando bem, então quem sabe até onde o Estrela Vermelha poderia chegar se eliminasse o Milan? Culpe a neblina por isso. Não tenho mágoas, é ótimo ser parte da história do futebol. Mas o Milan nunca esquecerá esses dois jogos em Belgrado. Eles nasceram na neblina”.

Não foi apenas contra o Estrela Vermelha que o Milan passou dificuldades. Nas quartas de final, teria outra pedreira pela frente. O Werder Bremen de Otto Rehhagel havia encerrado a hegemonia do Bayern de Munique na Bundesliga e possuía um time extremamente competitivo, pautado na defesa. Os Verdes estavam recheados de jogadores com nível de seleção, entre eles Karl-Heinz Riedle, Oliver Reck, Mirko Voltava e Rune Bratseth. Seria uma antítese à postura agressiva que os rossoneri adotavam.

Os jogos aconteceram em março, após uma longa pausa na Champions. A esta altura, o Milan já sabia que não alcançaria a Internazionale na Serie A. Além disso, Gullit já tinha se recuperado da persistente lesão. O que não evitou o tropeço dos rossoneri na visita ao Weserstadion. O empate por 0 a 0 prevaleceu, em noite de arbitragem polêmica. O árbitro português José Rosa dos Santos não assinalou um gol dos italianos em que a bola foi afastada já depois de passar a linha, assim como anulou um tento dos alemães-ocidentais de maneira inexplicável, alegando uma falta sobre Galli. De qualquer maneira, os milanistas criaram mais chances e viram o goleiro Oliver Reck manter o confronto aberto.

O Milan assegurou a classificação para as semifinais no San Siro, com a vitória por 1 a 0 sobre o Werder Bremen. A superioridade dos italianos foi indiscutível, forçando um punhado de milagres do goleiro Reck. Mas, de novo, o apito estaria no centro da discussão. Desta vez a arbitragem ficou sob a batuta do escocês George Smith e ele viu uma falta imaginária dentro da área, anotando um absurdo pênalti aos rossoneri. Donadoni girou e tentou chutar, se embromando com Gunnar Sauer. Mesmo com o defensor de costas, o juiz assinalou uma infração contra o italiano. Na cobrança, Van Basten mandou no cantinho e venceu Reck, que chegou a triscar na bola. Era possível respirar aliviado, com o avanço à próxima etapa.

Nas semifinais, o Real Madrid representava uma grande prova de fogo. Os merengues atravessavam o seu pentacampeonato espanhol e, além de dois títulos recentes na Copa da Uefa, vinham de duas semifinais de Champions. Conquistar a taça continental era visto como uma obsessão no Bernabéu, diante do forte elenco com Emilio Butragueño, Hugo Sánchez, Bernd Schuster, Míchel, Manolo Sanchís e outros ídolos. Em contrapartida, o embate com os espanhóis surgia como uma baita oportunidade ao Milan. Era o adversário perfeito para ratificar a excelência do esquadrão de Arrigo Sacchi. No fim das contas, aqueles duelos foram o marco de uma revolução – conforme contamos com mais detalhes aqui na Trivela, há um mês.

O primeiro jogo, diante de 100 mil no Bernabéu, deu as primeiras pistas sobre a dimensão do que ocorreria. O Milan dominou o meio-campo e o Real Madrid não sabia lidar com a pressão dos adversários na marcação. Assim, o empate por 1 a 1 caiu como alívio aos merengues. Os rossoneri invadiam a área com frequência, mas a zaga adversária conseguia se safar. As ameaças madridistas vinham somente em raros ataques rápidos. E o time da casa deu sorte ao abrir o placar aos 42 minutos, com um voleio de Hugo Sánchez. Durante a etapa complementar, mais Milan. A arbitragem anulou um gol inexplicável de Gullit. Apesar disso, Van Basten assegurou a igualdade a 13 minutos do fim. Não deixava de ser um bom resultado aos visitantes, mas pouco condizente ao que ocorrera em 90 minutos de domínio total dos italianos.

Já no San Siro, em 19 de abril de 1989, não houve o que contivesse a noite magnífica do Milan. Desta vez, a goleada tomou forma no marcador: 5 a 0, inapeláveis. A dinâmica do jogo se pareceu com o já observado no Bernabéu. A compactação sufocou os merengues, a linha de impedimento evitava os ataques adversários, a movimentação incessante criava oportunidades. Dinamismo puro dos rossoneri, desta vez transformado em muitos gols. O primeiro tento saiu aos 19 minutos. Já uma pintura de Ancelotti, aproveitando a jogadaça de Gullit para soltar um petardo de fora da área. Seis minutos depois, Rijkaard ampliou de cabeça. Já aos 45, Gullit deixou o dele. Donadoni entortou Sanchís e botou a bola na cabeça do craque.

O início do segundo tempo, acredite, foi ainda mais trucidante. O quarto gol do Milan, aos quatro minutos, teve assinatura totalmente holandesa. Rijkaard deu um lançamento cirúrgico, Gullit ajeitou de cabeça e Van Basten dominou, antes de mandar um chute indefensável no ângulo de Buyo. Por fim, após a substituição do lesionado Gullit pelo talismã Virdis, Donadoni completou o massacre aos 15. Com meia hora no relógio, se mantivessem o ritmo, os rossoneri poderiam ter ampliado ainda mais a diferença. Acabaram tirando o pé do acelerador, já satisfeitos com o resultado antológico.

O favoritismo do Milan rumo à final era natural. Os rossoneri prometiam uma noite inesquecível no Camp Nou. Mesmo assim, muita gente acreditava nos adversários. Do outro lado, estava um oponente que acumulava mais de 100 jogos de invencibilidade no campeonato nacional e tinha mais experiência na Champions durante as temporadas recentes. O Steaua Bucareste faturou a Champions em 1986, dentro da própria Espanha, e mantinha boa parte da base histórica. A ausência mais sentida era do goleiro Helmuth Duckadam, herói do título em Sevilha, que precisou encerrar a carreira precocemente por conta de uma trombose. Em compensação, Silviu Lung era um grande substituto no gol. E apareciam ainda Marius Lacatus, Victor Piturca, Tudorel Stoica, Dan Petrescu. Além de Gheorghe Hagi, dono da camisa 10, trazido justamente para a Supercopa Europeia de 1986.

Na caminhada até a final, o Steaua Bucareste marcou mais gols do que o próprio Milan. Goleou o Sparta Praga por 5 a 1 na Tchecoslováquia, fez 5 a 1 no agregado contra o Spartak Moscou, meteu 5 a 1 no Göteborg em Bucareste, encaminhou a vaga na final com os 4 a 0 sobre o Galatasaray. Além da qualidade do time e da grande forma, o clube contava também o ambiente intimidador no Stadionul Steaua. Visitantes eram costumeiramente intimidados pela Securitatea, a truculenta polícia secreta do regime comunista romeno, que apoiava a agremiação ligada ao exército.

No Camp Nou, empurrado por cerca de 80 mil italianos que invadiram a Catalunha, o Milan não enfrentaria qualquer insegurança. Pelo contrário, foi o Steaua que precisou evitar o massacre. Os rossoneri chegaram à sua melhor forma para a partida e registraram uma incontestável goleada por 4 a 0. Hagi, o que mais preocupava do outro lado, terminou no bolso de Ancelotti. Baresi e Costacurta também viveram imensas atuações na zaga. De qualquer maneira, o protagonismo era mesmo do trio holandês. Rijkaard foi um dínamo na faixa central. O motor que impulsionava a máquina, pronta para triturar com Gullit e Van Basten. Os dois craques anotaram dois gols cada.

Anos depois, ao site do Milan, Giovanni Galli relembrou os sentimentos daquela noite: “Tudo deu certo em campo, mas sabíamos que o Steaua era a base da seleção romena. Além disso, eles vinham em uma sequência de dezenas de jogos de invencibilidade na liga nacional. Estávamos em estado de alerta máximo. Mas não esperávamos o jogo fácil, entre aspas, que acabou sendo. Quando vimos a quantidade de torcedores no Camp Nou, falamos a nós mesmos: ‘Não podemos deixar que eles voltem para casa sem a taça'. E foi assim que a final começou, entre o foco nos adversários e dedicação à torcida”.

O primeiro gol até demorou a sair. O Milan meteu bola na trave, forçou um milagre de Lung, teve um tento mal anulado. Ainda assim, aos 18 minutos a contagem era aberta por Gullit, aproveitando um rebote na pequena área. Raras eram as chegadas do Steaua do outro lado. E o bombardeio milanista rendeu o segundo gol aos 27, em cruzamento de Tassotti para Van Basten cabecear. Antes mesmo que o intervalo chegasse, os italianos marcaram o terceiro. De novo Gullit, que dominou o cruzamento de Donadoni com a coxa e soltou um lindo tiro da entrada da área. Por fim, os números finais vieram aos dois da etapa complementar. Rijkaard enfiou e Van Basten apenas tirou do goleiro. Ainda que os romenos tenham tentado anotar o gol de honra, Lung teve mais trabalho para evitar o quinto. O apito final consagrava o Milan com a orelhuda pela terceira vez, a primeira desde 1969.

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Técnico do Steaua, Anghel Iordanescu se rendeu a Sacchi durante a coletiva de imprensa: “Não posso começar esta entrevista sem parabenizar o Milan. Eles jogaram uma partida excepcional e conquistaram uma grande vitória. É um time com fantasia, inteligência, grande senso tático. Acho que o Sacchi encaixou sua equipe perfeitamente. Meus jogadores não conseguiram se expressar como gostariam”. Hagi, por sua vez, estava resignado: “O que eu posso dizer? Com essa pressão tão grande que eles exercem, é impossível que alguém mostre sua qualidade técnica. Estou desapontado e triste, me desculpe. Mas, acredite em mim, não poderíamos fazer mais do que fizemos”.

Já nas páginas do jornal La Repubblica, o célebre cronista Gianni Brera exaltou: “O Milan envolveu o respeitável Steaua e esmagou nas irresistíveis engrenagens de seu jogo. O fabuloso Ruud Gullit, tão rico de urânio, recarregou a bateria atômica do time como se fosse mágica. O Milan radiou sua ideia de futebol como nos melhores dias. Vimos nesta noite o futebol que o Milan consegue expressar quando a imaginação o inspira e o orgulho o motiva. […] A imagem que vem espontaneamente à minha cabeça é a do monstro que, nos poemas clássicos, é induzido por uma deidade amiga a deixar os abismos para vencer o odioso inimigo. Devo admitir que eu havia perdido a esperança de ver uma maravilha dessas outra vez. A vitória do Milan é uma daquelas que produzem uma grande impressão a todos”.

A crônica de Brera certamente conferiu um prazer especial aos olhos de Arrigo Sacchi. O jornalista sempre foi um entusiasta do futebol defensivo e do catenaccio. O Milan campeão europeu representava justamente o oposto, e negou as palavras do analista às vésperas da final. Em outro artigo no jornal La Repubblica, prévio ao embate no Camp Nou, Brera dizia que os romenos eram os “mestres com a bola” e que os milanistas “só teriam chances se buscassem o contra-ataque”. Sacchi levou o periódico aos vestiários e mostrou aos jogadores. Ouviu a promessa de Gullit: “Iremos atacá-los desde os primeiros segundos”. Brios motivados, os rossoneri produziram uma mítica atuação para ficar nos anais. E para Brera se curvar.

Na entrevista de Sacchi depois da vitória, era possível perceber a clara referência ao jornalista. O treinador falou sem modéstia: “Tinham nos advertido sobre os perigos do Steaua e de seu futebol moderno. Mas este Milan, quando joga bem, sempre ganha. E quando exibe o futebol que hoje apresentou, ninguém pode frear. Dominamos o encontro desde o primeiro minuto e os romenos precisaram jogar no nosso ritmo. Formam uma grande equipe e os 4 a 0 não premiam seus méritos. Mas é que nós fizemos muito…”. E exaltou Gullit: “Ele fez uma partida admirável, se converteu na chave do confronto. Nem eu poderia imaginar que, saindo de uma lesão, jogaria neste nível, dando um recital de futebol”.

Curiosamente, aquela final quase permaneceu oculta. Como aconteceria no Camp Nou, a TVE seria encarregada de realizar a transmissão e distribuir as imagens para as emissoras no restante do planeta. Contudo, os funcionários do canal estatal espanhol iniciaram uma greve justamente às vésperas da decisão. Sem uma solução para o impasse, a TVE permitiu que outras companhias estrangeiras fossem ao Camp Nou para captar as imagens. Virou assunto de estado à Itália. O Ministério da Defesa disponibilizou um avião militar e levou a equipe da RAI até Barcelona. Graças a esta intervenção, 300 milhões de pessoas em 80 países puderam assistir ao massacre do Milan ao vivo – inclusive o Brasil, em exibição da TV Globo, com narração de Luiz Alfredo e comentários de Juca Kfouri. Tanta gente pôde testemunhar a fantasia.

O título encerrou um jejum do Milan nas competições continentais que já durava 20 anos. Além disso, sublinhava a excelência da Serie A naqueles anos dourados, em que nem sempre a força local repercutia na Champions. A sensação da conquista europeia era inédita para todos os jogadores. E eles só foram perceber a magnitude do que fizeram na volta à Itália, quando seu avião pousou no aeroporto. Uma multidão estava pronta para recebê-los, celebrando a façanha. O encantamento que os rossoneri provocavam marcou gerações.

A conquista, ao final, se tornou um meio para o Milan. Foi o caminho que Arrigo Sacchi percorreu para comprovar suas ideias e apresentar ao mundo como era possível praticar um futebol tão dinâmico, tão ofensivo, tão sufocante. O Calcio, conhecido por sua mentalidade defensiva, tinha uma máquina que produzia arte. O esquadrão rossonero elevou o jogo a um estágio acima de preparo físico, de mentalidade tática e de refinamento técnico. Uma superioridade expressa pelos resultados, mas também visível pela empolgação de quem assistia ao timaço. A noite no Camp Nou serviu de júbilo a uma revolução. Desde então, o futebol nunca mais seria o mesmo.

Foto de Leandro Stein

Leandro Stein

É completamente viciado em futebol, e não só no que acontece no limite das quatro linhas. Sua paixão é justamente sobre como um mero jogo tem tanta capacidade de transformar a sociedade. Formado pela USP, também foi editor do Olheiros e redator da revista Invicto, além de colaborar com diversas revistas. Escreveu na Trivela de abril de 2010 a novembro de 2023.
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